Número de sílabas (desde 11/2008)

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quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

AURORA Nº 1

Foto: Talita Laila.

(Para Clarice, minha filha, minha Aurora e minha vidinha.)

foi a tua voz feiinha, gritante, zangada,
que fez nascer o dia
e ressignificar-se o silêncio,
que antes não sabia nada de ti

foram os teus olhinhos grandes,
ictéricos,
que, ao se livrarem das ataduras
da agonia,
raiaram nos meus um sol inédito
nas manhãs ordinárias de dor e sono

foi o teu cheirinho, foi a tua pele,
foi teu cabelinho acastanhado
que ensinaram o beijo
aos sentidos desabitados de ti
e sentaram praça
como a Aurora faz com a serra
e dá à flor lições de vida

foi a própria vida,
que acordou brincando
com aquela grande novidade de estar viva:

— eis que nós e o mundo
tivemos de aceitar o apenas
de sermos para ti brinquedos
e objetos de transformação
como o Sol, que de tudo extrai as cores
e com todas traquina na sombra,
desordenadas como tua risada,
as reinações de estarem vivas

20/12/20

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

PRECIPITAÇÃO


foi um corisco numa noite
de falta de energia elétrica
— era Deus dizendo
que é mais bonito assim

foi a chuva subindo raios
do mar às nuvens
na praia de minha infância
— meu céu era feito de búzios salgados
e auroras

foi a rua molhada
com meus filhos
foi o sertão colorindo as virgens
foi a folga do trabalho
que a cidade inundou

foi uma chuva forte essa de quando
nem se notava
mas na hora certa
a semente guardada entendia
que sua casa era aquele chão
e que era possível raiar
naquele escuro

18/12/20

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

CARTA-CRÔNICA AO MEU AMIGO JOÃO, ANIVERSARIANTE HOJE (NASCIDA DE UM DIÁLOGO COM NOSSA AMIGA NAIANA)

Gambiarra Blues Band - Foto: Bruno Marques.
(Clique na foto para ampliá-la.)
 
Fortaleza, 25 de novembro de 2020.

    Hoje, você faria cinquenta anos. Com o tempo, a distância entre nossas idades — a minha, 46 — se tornou irrelevante. Nossas experiências nos aproximaram, e nossas diferenças não eram maiores que um copo de cerveja. A música, em minha vida, ocupou vários corpos: primeiro, o de minha mãe, minha cantora do rádio; em meu pai, o baixo patriarcal cantarolando o “Zé Marmita” enquanto se barbeava; meus irmãos e irmãs, com o prenúncio do que me seriam a juventude e a rebeldia; e, depois de tantas pessoas, você, com o conhecimento e a vontade de fazer o que gostávamos de ouvir.
    Sinto falta, meu amigo, imensamente. Todos os dias, eu penso em você. Gravamos aquele blues no microfone do seu computador de mesa, ainda na época da Gambiarra. Um canal, microfone ruim, eu, na gaita, você, no violão. “Rascunho de blues” eu batizei. É minha música sagrada, é uma de minhas melhores memórias. Nunca mais toquei como então, nem minhas dúvidas historiográfico-musicais tiveram lugar em nossas conversas. Foi um silêncio que se instalou, foi a incomunicabilidade de uma grande amizade que não aceita monólogos nem simples remissões transcendentais. Como cantou Belchior, “eu quero corpo, tenho pressa de viver”. Comprei uma guitarra, tentei um aprendizado. Você falta aqui. Às vezes, toco um berimbau solene, o que me parece mais adequado. Acredito que você ouve, mas ri dos descompassos. E eu rio, acreditando que rio junto de você. Elaboro uma molecagem com os nossos amigos que estão aqui, e, ao compartilhar, faz falta encaminhá-la a você. Rio da risada que você daria. Todos os dias.
    Foram tantas músicas, tantas conversas, tanta intimidade e parceria que não houve jeito de você se acomodar em minha lembrança apenas, com a vida seguindo seu curso em outras mesas, outras cervejas, outras canções. Não deu pé, compadre. Contudo, a vida seguiu, ainda que capenga, e o 2018 provou ser o início de uma provação que você me anunciou, em todos os sentidos. Você anteviu até cinicamente o Brasil que nos esperava e alertou sobre a derrocada em minha vida pessoal. Foram como piscadelas que sinalizavam um segredo, e eu percebi. Você talvez só não imaginasse a dimensão do desastre. Depois de você, perdi mais, muito mais. Emprego, família, parentes, saúde, juízo. Perdi, no final de tudo, a minha vontade de cantar, de tocar, de criar música. Parece que tudo só era possível se canalizado por você. Nossos amigos estão aqui e por aí, dando aulas, escrevendo livros, musicando a vida o melhor que podem. Eu, não… Mas espero que saiba isto: por onde você esteve, só houve alegria, música, amizade e vida, muita vida. Sem você, haveria pouca felicidade que se lembrasse na escuridão destes dias. Espero também que me perdoe toda esta pieguice, estas palavras que foram tanto economizadas, e à toa… Nas minhas contas, faltam muitas cervejas a tomarmos. Não sei como é o tempo fora de mim, não sei nem se há alguma possibilidade de espera, mas, como só nos resta a esperança, eu espero. Espere você aí por mim, que eu chego já. Quero saber se São Saruê é mesmo bonito como você me descreveu. Até mais, meu irmão, e feliz aniversário.

Um abraço fraterno,

Fernando de Souza

25/11/20

CONJURAÇÃO

    — Tem coisa que é palavra demais.
    — Como assim?
    — Coisa que só acontece quando a gente diz.
    — Isso é conjuração, Alberto.
    — Coisa de outro plano…
    — Então, quando disse que me amava, foi pra acontecer ali?
    — Isso. No mesmo instante, aconteceu.
    — E quando a gente terminou, foi assim também? Que eu me danasse, que eu sumisse?
    — Não. Ali a palavra atrasou. Queria dizer eu te amo, mas não sei por que não disse. Acho que era pequeno demais.

25/11/20

POEMINHO VAGABUNDO

era um dia comum, banal,
mas banalzinho mesmo,
sem fazer falta ao calendário
nem dos santos nem dos pecadores:
um dia sem milagres, sem heresia,
vazio de horas,
um encadeamento de passos curtos
e dores nos pés.

somente à noite,
o tédio acumulado sortiu do espírito
um caco agudo de ócio
— lâmina primitiva do homem —
e sangrou da pele macilenta um poeminho
que dizia

“tenho pena das horas que me perderam;
nunca mais, vadias, nos encontraremos”

e o corte, torrente, exclamava do corpo estuporado
a indignação dos vagabundos:

— maldita és tu!, poesia,
sempre a forçar-se contra mim!,
sempre a arrancar-me os trapos!,
sempre a querer-me nu, a frio!,
sempre a tirar-me a fome,
que é tudo que tenho de meu!

24/11/20

domingo, 22 de novembro de 2020

CONTENDA


a vingança da memória
é matar o amor:
— ai, coração, tu
é que não sabes fazer outra coisa
senão matar-me todo dia…

21/11/20

QUESTÃO

Foto: Fernando de Souza
(Clique na imagem para ampliá-la.)

comovente e inútil,
ela, a poesia, acontece.
resta saber
quem por quem:
se o muro, cuja greta possibilita a flor;
se a flor, cuja vida dá sentido ao muro.

20/11/20

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

SEXTOU

 



28 DIAS (OU TUDO O QUE OLHOS COMPOSTOS DEVERIAM VER)

(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.) 
 

    Ponderava se era assim também com as outras: susto, fuga, risco de morte, velocidade e caos. Não frequentava enxames; era tímida. Voejava, quando podia, o mais lentamente possível para não cair, somente para sentir a vida fluir mais lentamente. Porém, a sua maldita natureza a compelia a extremos constantes, a vilezas e indignidades que suportava estoica, porém limiarmente. Queria ser como os marimbondos, autoenclausurados em seus arapuás, respeitados, temidos, deixados em paz. Ou, pelo menos, como as mutucas, suas parentas mais afortunadas e hematófagas, em sua rotina campesina de parasitar vacas e jumentos. A ela lhe deram os monturos, os excrementos humanos, os piores de todos. E essa insustentável vida de não-viver, de pária, de nitrificante alada da cadeia alimentar? E essa sua abjeta natureza, que sequer lhe permitia o suicídio — tentara bocas de fogão, pás de ventiladores, circuitos elétricos; seu corpo de reflexos autônomos funcionava à sua revelia, e a morte sempre lhe escapava, escapava inclusive quando lhe desferiam tentativas de mãozadas, raquetadas, envenenamentos —? Seu corpo era feito para a sobrevivência, e ela expiava na dúvida de uma eternidade daqueles sofrimentos e imundícies.
    Contudo, nas poucas vezes em que se permitia ajuntamentos, percebia sempre parecer o bando diferente, com raras e cada vez mais avolumadas exceções. De uma hora para outra, o corpo daquela uma cintilava cores diferentes, discernidas pela infinidade de seus olhos-colônia, subitamente curiosos, estranhamente interessados. Quase não reconhecia a familiaridade dela consigo, não fora pela química obscura que suas antenas e patas lhe comunicavam como tal. Já as outras lhe pareciam ser tão outras quanto possível. Estranhava também a absurda heterogeneidade naquela aparente monotonia de formas. Será que somente ela o notava? Não incomodava também às outras aquela eterna novidade, aquela coletividade harmoniosa de completas estranhas? Perguntava-se o que as unia além da involuntária irmandade de espécie. Não lhe era aceitável que a resposta fosse aquele ciclo, aquela rotina coprofágica, necrófila, carniceira. Seriam todas filhas da mesma mãe sob o sol de Deus apenas pela abjeção de suas existências? Seria possível que o que as igualasse fosse a miserável condição de marginalidade essencial, que não poderia ser romantizada nem na sacralização da morte conservada em alfinetes, como era privilegiada às borboletas e aos escaravelhos? Já os vira assim — pois seus olhos viam tudo, assim como sua teimosia o registrava numa memória que era mais rancor do que saudade — em breves clarões de luzes que intermitiam na frente das pessoas. Tentava compreender o fascínio que as luzes e as cores exerciam tanto sobre ela quanto sobre as pessoas… As pessoas! Várias de sua espécie eram mortas por elas a toda hora, por que não ela? Se bem que as pessoas, quando se agrupavam, pouco se distinguiam também entre si. Eram dadas a reuniões vorazes, quando, a bem da verdade, viviam o tempo inteiro sós. Somente lhes invejava a hipocrisia pela inerência do arbítrio que ostentavam. Queria ser uma pessoa, queria poder escolher, queria as opções. As pessoas possuíam o hábito que mais lhe agudava o desejo, com a pungência de um nó cego muito fino, muito entranhado, indesatável: elas se destruíam. Como desejava… Via-se trucidando todo o seu enxame com suas patinhas, vomitando-lhes seu ácido gástrico e lhes abandonando os corpos às formigas, sobre as quais planaria como uma ave, rainha, senhora da vida e da morte, das quais disporia como se de uma gravata ou de uma pulseira de prata. Queria ser como as pessoas, consciente e impune, assassina natural, fera temida.
    A brevidade de seus pensamentos era causada por sua própria condição física e social. Sempre que aprofundava um raciocínio, operava uma brisa qualquer, tinha lugar uma mudança de luz ou de temperatura, anunciava-se um movimento humano, premia-lhe a percepção de um alimento. A tudo isso seu corpo respondia prontamente, e o gérmen de ideia que a fazia tão diferente das outras se partia. Vivia de catar os pedacinhos e recompor-se eternamente uma criatura como idealizava que uma criatura tinha de ser: autoconsciente. A agonia só lhe era tolerável pela distinção que lhe dava entre suas pares: orgulhava-se intimamente de sua própria angústia, de pastar sobre a bosta não por vontade, mas por natureza, e de ser a única a saber, dentre todo aquele gado minúsculo, a diferença entre ambas. A derrota de sua vontade era a sua vitória, consistente apenas em saber de sua participação agente naquela luta.
    Sentiu, naquele momento, a vibração costumeira no ar a que seu corpo tão prontamente respondia e, antes que pudesse formular o pensamento habitual de contrariedade, disparou no caos como se nunca houvesse outra coisa dentro da qual estar. Porém, algo estava diferente. Tudo foi muito rápido como sua própria vida. Sentia diferente, e aquilo, que não tinha nome, converteu-se instantaneamente em frase. “Estou tão cansada…” Surpreenderam-na tanto o próprio sentimento quanto a capacidade de tê-lo. Dedicou-se pela primeira vez à possibilidade do gozo do momento seguinte, que se revelou não um fim, como temeu no primeiro susto, mas sim como um meio. Queria estar distraída, pestanejada, e podia deleitar-se na recém-apropriada consciência de que podia vencer a vida simplesmente abraçando aquela novidade.
    Seu pensamento não se havia partido como sempre. Conseguia pensar além daquela realidade entômica, sem que essa natureza lhe obstasse a razão. Entendeu finalmente a sensação de cansaço, leito em que se revirava entre lençóis rasgados a sua tão íntima agonia. Sentia-se banhada por ela, premiada pela indignidade de sua vida inteira: estava cansada, e essa concepção libertava-a das obrigações do corpo, da consciência do corpo, a qual, até aquele instante, tinha-lhe roubado toda possibilidade de transcendência, de apartação, de liberdade. Num instante, aprofundou-se vertiginosamente em outro caos, a despeito do ar. Parou. Estática, experimentou a sensação novíssima de não conseguir mover-se, embora a natureza em seu corpo a compelisse ao corisco. Ao seu redor, um único espectro dominava o panteão de cores que era capaz de enxergar — era ele também uma revelação. Sua carapaça vibrava, mas ela não se movia. Seus olhos compostos gritavam ao seu cerebrozinho que se aterrorizasse, e, a isso, seu corpúsculo lutava por converter o terror em voo, inutilmente. Ela não se movia. Fascinada, entendia pela primeira vez uma natureza sua que era superior à anterior, fazendo-a, assim, superior a si mesma naquela onipresença monocromática. Contudo, agradou-lhe algo remanescente de sua natureza original: não podia fechar os olhos. Felizmente, viu tudo. Na contagem normal, a humana, findavam-se ali os seus 28 dias. Na dela, tudo, absolutamente tudo se iniciava ali, enormemente como um voo em linha reta, lento e revelador.

05-06/11/20

terça-feira, 3 de novembro de 2020

RITO DE PASSAGEM

(Clique na legenda para acessar a página de origem da foto.)

    Este ano já me levou quatro: meu irmão Cláudio, minhas tias maternas Lourdes e Tate (esta última ajudou a me criar) e, no dia de hoje, minha avó paterna Jesuína. Não lhes fui aos velórios nem aos enterros. Enterrei-os e velei-os (exatamente nessa ordem) eu mesmo no que tenho de mais íntimo, no meu próprio chão, na minha própria capelinha. Foram cerimônias muito simples, quase anônimas. Somos todos anônimos na morte. Não faz diferença à matéria o nome que lhe damos. Os nossos nomes, os verdadeiros, não são passíveis de morfologia ou fonética, não cabem nos registros. Os nossos nomes são coisas que se sentem. São alegrias e tristezas, ódios, rancores, perdões. São presságios. São contemplações.
   Chegamos à idade de aguardar. Esperamos confinados, receosos, conformados. Abnegamo-nos de qualquer luta; apenas sobrevivemos e aguardamos. Porém, dentro de nossas salas de espera, entrincheirados, mascarados e besuntados de álcool em gel, corremos o risco ainda maior de uma rendição, essa, sim, irrevogável: o risco de desejarmos.
   Nesse caso, o encouraçado nuclear em que nos convertemos mira seus canhões aos faróis e torreões desprotegidos de nossa própria costa. O que resta de nossas praias, já sem sol e sem mar, traga como um ralo de areia movediça o acumulado de relicários que protegíamos — a última traição da terra, que se negou a ser chão à sua própria gente.
    Aquilo a que chamamos mal somos nós, morrendo a vida que levamos. Somos nós, permitindo-lhe a existência. Somos nós, adaptando-nos ao inadaptável: plantando e colhendo miséria à revelia do solo.
   É nesses ritos que eu ladainho a liturgia diária de sobreviver e enterrar, de indignar-me e envolver-me fetal no lençol velho, sudário sertanejo desse calor de fim de mundo. Não sei que deus louvo, não sei contra qual diabo peço proteção. Chegou o tempo de enterrarmos os nossos mortos, sem lágrimas, sem surpresas, mas com uma inquietação íntima muito própria da pedra que derrete na frágua, sem adivinhar se será ferro de grilhão ou aço de punhal.

03/11/20

domingo, 1 de novembro de 2020

MEMÓRIA DA PELE

 (Clique na legenda para acessar a página de origem.)

esta é a memória da pele:
do aço, a faca sempre deixa um pouco da pedra mansa
pavimentando o corte,
assim como há o mugido distante do boi
no sulco da chicotada,
e a sombra da árvore ainda entardece na solda do osso
partido pelo porrete.

a pele lembra melhor
à tarde, à tardinha,
quando os dedos buscam nela,
dedilhando notas casuais,
a música de adormecer o espírito.

31/10/20

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

ARMORIAL

 

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(Em homenagem a Susassuna, o Ariano armorial, e ao meu primeiro grande amor, que me sertanejou a vida.)

a cultura que renegas
eu, íntimo, abraço:
um abraço feito de pele e fome,
tapioca agreste e macia com café
na manhã nevada e serrana de minha casa.

nela, eu, antigo e novo,
encavaleiro-me,
vestido com o gibão de minha própria pele
cosido com as histórias de meus pais
e armado com o delírio dos cegos:
cravejada em meus olhos,
a alucinação solar que nos norteia.

minha morte é minha vida:
é cobra que me rasteja;
é a onça espreitando por mim;
mas também é a montaria,
égua encarnada e ligeira,
que pisoteia o que não é vida
e me galopa os segredos
dos sertões adiante.

pelejo por esporte
e sobrevivo por profissão.
comigo, levo pouco de meu:
minhas letras, meu nome,
meu silêncio.
mas, no sangue
— moto-perpétuo ancestral —,
trago aboios e novenas,
incelenças e cordéis,
litanias e tiranas,
canções de nascer nos corpos
as almas de antes,
cheias de novidades de cacimbas
e maravilhas do além-mar.

a cultura que renegas
é o mandacaru que te dá flor,
mas te rasga na pele o atrevimento
de te achares
— tu, que és seco e estéril de poesia —
o inverno
de que ela é chuva.
não é palavra nem silêncio
o sertão que não carregas.
é o olhar cheiroso que não tens,
é a saudade mansa que não sentes,
é o orgulho fibroso que não te acocha
esse peito mole sem amor nem ódio,
sem jeito de amar mordendo,
sem pátria onde querer morrer.

23/10/20

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

FORNICAÇÃO

(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

só,
ou em meio a números
— casal, ménage, swing, bacanal —,
o artista é,
essencialmente,
um sozinho.
 

caso não,
erra das duas uma:
a arte
ou a conta.

21/10/20

domingo, 11 de outubro de 2020

O GLUTÃO

Hieronymus Bosch - Fragmento de A mesa dos pecados capitais.
(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

 
    — Bom dia, pessoal! Vamos começar nossa entrevista de hoje aqui no Café com Paula com o notório glutão, o Sr. Marcondes Gamela. E vamos começar logo com a polêmica, que eu sei que o senhor gosta de uma. Quer dizer então que o senhor tem ódio aos veganos, é isso mesmo, Sr. Gamela?
    — Bom dia, querida Paulinha, bom dia, pessoal de casa. Não, não é isso. O que eu sinto é uma preguiça enorme de dialogar com eles. Veja só, outro dia, vieram me perguntar num restaurante se havia algum vegetal que eu não comia. Perguntaram assim, pra me provocar mesmo. Ora bolas, se eu dissesse aquilo em voz alta, brotaria um vegano ovolacto das profundas pra tentar me converter! Sim, porque aquilo, quando querem, é uma religião, e eu sou o Belzebu! “Quem você pensa que é pra falar assim da Santa Abobrinha?”. Ora, meu amigo, eu não sou ninguém, sou só um homem que gosta de comer e que assume o onívoro que é. Agora, tem exceções, é claro que tem… tanto na comida, quanto nos veganos. Veja, eu até já namorei uma. Sou amigo de vários, até. Não tenho preconceito, Nenhum mesmo. Você é vegana?
    — Sou.
    — Opa!
    — É… Então o senhor já NAMOROU uma vegana? Conta aí como é que foi!
   — Não, minha querida, quem come, opa!, quem beija não fala.
   — Sei. Machista disfarçado de cavalheiro. Mas, não pode contar nada?
    — Bom, posso contar como terminou.
    — E como foi?
    — Foi porque ela me acusou de traição. Veja bem, eu não sou contra você não querer comer bicho. Acho que cada um come o que quiser. Eu mesmo crio bicho, cachorro, gato, passarinho. Não comeria nenhum deles porque são meus, tenho afeto, mimo… Mas acho que isso não pode limitar você. Eu comeria tranquilamente um filezinho de buldogue ou uma passarinha de angorá. Sem preconceito! Não mataria pra comer, porque eu crio. É por isso que eu não condeno quem cria boi, porco de estimação. Bicho é bicho. Também sou experimentalista. Comeria um escorpião, um gafanhoto, se tivesse a chance. Quando for à China, vou fazer a festa naqueles mercados de rua. Eu sei que é ruim, já me disseram. Mas é bicho, e bicho é bicho.
    — Sim, mas e a traição?
    — Eu chego lá. Então, um dia, ela, irritada com o fato de a gente ter ido a um rodízio de pizza que não tinha opção vegana, começou a surtar e me escolheu, óbvio, como alvo! Começou a dizer que tinha medo de mim, que eu era capaz de cortar um pedaço dela pra comer, coisa e tal. Eu respondi calmamente que comeria sim carne de gente, gente é bicho, e bicho é bicho, né?
    — Meu Deus, o senhor a comparou com um bicho?
    — Peraí, que vai piorar. Eu também já não estava  muito feliz naquele relacionamento, muita implicância, muito mimimi. Ela me fez essa mesma cara que você tá me fazendo agora. Ainda calmamente, eu disse a ela: “Veja só, não há muita diferença entre você, uma vaca ou uma baleia pra mim no nível alimentar. A diferença é que matar você seria crime, e, além do mais, você é próxima como a Tchutchuca”. Tchutchuca é a minha cadelinha. Rapaz, ela empalideceu, ficou da cor de um palmito. Deu até mais fome, pensei em pedir uma pizza de palmito naquela hora.
    — É… bem…
    — Sim, sim, a traição. Pois foi aí que eu disse que também não se comeria uma pessoa qualquer. Tinha de ser um hedonista, um bon-vivant, alguém narcisista, de bem consigo mesmo acima de tudo. Nem políticos, nem professores, nem psicólogos. Nesses aí, a carne é estragada pelo excesso de toxinas produzidas pelo corpo. Tipo cabrito, quando morre apavorado. Fica com gosto amargo, sabe? Ela envermelhou, começou a me xingar baixinho, que ela era dessas, uma lady. Mais calmo ainda, eu disse a ela que a moça da mesa ao lado deveria ter um gosto bom, era cheiinha, a gordura deveria ser bem docinha. Rapaz, essa mulher endoidou. Começou a me chamar de tudo que era nome, que eu não a respeitava, que eu era um porco… Sim, sim, eu me comeria, olha esse toucinho aqui. Pois bem, eu, morrendo de rir, disse que não se preocupasse, que comer, sem ser com a boca, só ela mesmo, mas isso piorou ainda mais a situação. De tudo que eu disse, ela só lembrou o que eu falei da moça. Terminamos ali. Sorte que eles tinham pizza de palmito.
    — Sr. Gamela…
    — Eu entendo a sua expressão indignada. Mas olha, você até que daria um bom prato, viu?
    — O senhor me respeite!
    — Calma, calma, que é isso? Falo alimentarmente. Apesar do seu porte atlético, porque, veja, isso de levantar peso deixa a carne muito dura, acho que um suco de abacaxi poderia dar uma boa amaciada…
    — Vamos encerrar a entrevista por aqui. Muito obrigada, Sr. Marcondes Gamela pela sua participação no nosso programa…
   — Sabe o que vai bem com suco de abacaxi? Vodca. É chegada?
    — …
    — Então?
   — Nem que o senhor fosse o último homem do mundo, Sr. Gamela. Além do mais, eu não gosto de homens. Todos são meio assim como o senhor, uns porcos. A diferença é que o senhor, pior que os outros, assume a chauvinice.
   — Tudo bem, tudo bem, sem preconceitos. Poderia ser um jantar a três. Olha, eu tenho uma amiga…
   — O senhor vá para o inferno! Gente, vocês me desculpem, mas assim não dá. Diretor, diretor!
    — Mas nem um fast-foodzinho?
    — ME SOLTA! ME SOLTA, QUE EU VOU DAR NELE!
   — Tá vendo? Vegana. Só podia ser vegana. Com um mau humor desse…
   — VERME! VERME DESGRAÇADO! GORDO ESCROTO, MACHO ESCROTO!
    — Verme é bom, mas com tequila. Dizem que escroto de boi é afrodisíaco, comem na Espanha com os testículos.
    O diretor:
    — Ok, que é isso, gente, corta, corta… O senhor tenha mais respeito pela Paula!
    Última fala antes de entrarem os comerciais:
    — Mas eu sempre tenho respeito pelas mulheres, comidas ou não…

11/10/20

PROSPECÇÃO

 

(Clique na imagem para ampliá-la e na fonte, para acessar a página de origem.) 

    Vou escrever. É o que eu sei fazer, e, nessas horas, é preciso confiar no que se sabe fazer. Todo dia, a vida vem parecendo uma coisa que só acontece aos outros. Nas redes sociais, ela pulula. Este, no boteco, nos aniversários, nas academias de ginástica; aquela, na praia, no trabalho, nas boates dançantes. Todos, enérgicos e relaxados; todos, produtivos e lassos. Todos vivendo. John Lennon o disse, e eu, por muito tempo, repeti que a vida é o que lhe acontece enquanto você se ocupa fazendo outros planos. Tradução minha, e livre. Faltava acrescentar a essa tradução as circunstâncias de produção da frase. Ou melhor, faltava a definição desse “você” e desses “planos”. A música era para o Sean, cujo irmão, Julian, filho do casamento anterior, fora tratado como lixo pelo mesmo pai. Os planos desse pai consistiam em continuar vendendo a falsa imagem branca do propagador da paz e do amor que lhe rendeu milhões de dólares e de fãs. Os planos consistiam em vender. O você fazia parte do produto ideal. Não sou vendedor, já tentei, atrás de balcão e de porta em porta. Não conseguiria convencer um faminto a comprar comida. Muito menos, uma amante a permanecer amando. Parece que, a mim, a vida lennoniana aconteceu ao contrário. Parece que, ao ser incapaz de praticar os “outros planos”, outorguei à vida que lá acontecesse, e de lá desdenhasse da minha espera por seu acontecimento.
    Não foi bem assim. Do lado de cá, eu me debati bastante por viver. Tentei amar, tentei confraternizar, tentei participar, tentei me integrar. Tentei produzir, funcionar, compartilhar, influenciar. Tentei ser filho, irmão, amante, namorado, marido, pai, tio, primo etc., etc., etc.… Nada disso aconteceu como deveria, e a vida — essa, lennoniana — sobrava na vida dos outros. Na minha, na minha vida, eu me descobri um simples espectador de tudo. Isso, muito antes de as redes sociais existirem, muito antes do palco virtual onde a vida dos outros eclode radiante e glamorosa. Antes de professores terem de se preocupar com a qualidade das câmeras, por trás de cujas captações sua imagem, conhecimento e experiência passaram a competir com as de outros professores por likes, follows e retweets (e contratações, pois não?).
    Espectador e expectante, a isso meio que se resumiu a minha vida. Exceto aqui, na escrita. Aqui, escavei, prospectei, fingi verdades. Lapidei-as, poli-as para exposição em galerias, ao mesmo tempo em que as pus a chafurdar na pior imundície do exagero. Porém, nunca as menti. Mentir é uma ferramenta muito útil para se atingirem os “planos”, principalmente, se a vida está lá, e não cá. Dessa forma, para viver, menti, menti bastante. Menti como quem respira, sempre na esperança de a onipresença da mentira convertê-la automaticamente em verdade, em vida. Sempre fui eu o principal objetivo de todas as mentiras, assim como o assunto de todas elas. Mentindo-me, coisa que nunca consegui em literatura, talvez fizesse algo mais que existir observando. Talvez, assim, pudesse ser eu a estar lá, nos púlpitos da vida, propagando imagens de quem sou, todas elas orgulhosas de mim, todas reluzentes e sombrias, todas paradoxalmente belas e invejáveis como uma androginia de percepções casuais e incopiáveis, todas boas demais para o copidesque ou a maquilagem existenciais. Talvez, se eu houvesse sido outro, não física, mas animicamente, como um vasilhame cujo conteúdo se troca, talvez eu conseguisse ser suficiente, talvez dançasse, sorrisse e rolasse nos lençóis brancos lennonianos, fingindo não ser aquilo a vida, mas sim algo que me aconteceu enquanto eu estava distraído. Se eu acreditasse que conseguiria… Meu Deus, por que eu nunca acreditei? Por que votei minhas crenças a uma beleza somente possível se prospectada como um mineral? Continuam lá, as imagens, vivendo. Cá, eu, assistindo. Faminto e resignado, limpo como um vidro de aquário, imperceptível de tão transparente, que não fragmenta raios nem oferece sombras. Ou negro, tão negro quanto o écran que reproduz as letras que digito, sem questioná-las, sem interferir nelas. Porém, quem digita as letras que reproduzo está ciente também de que só existe nelas e, ainda assim, somente se lhe perfurarem a crosta e lhe adentrarem as escuridões?
    O que sei fazer se resume a isto: escavar-me, escrever-me, publicar-me. Devo confiar no que sei fazer, mesmo que minha prática possa revelar-se uma mutilação na rocha sempre quebradiça sobre a qual resido e atendo, sempre desconfiado, sempre cansado e triste, sempre sem esperança.

11/10/20

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

PARALELO

domingo, 27 de setembro de 2020

FUNERAL

Foto: Fernando de Souza

àqueles que perderam
ou foram amputados:
é outro o tempo das almas;
aqui
é o tempo dos corpos.

27/09/20

sábado, 26 de setembro de 2020

DA BELEZA

Alexandre Cabanel - The Birth of Venus (1864)
(Clique na imagem para ampliá-la.)

não posso aceitar beleza
que não faça sofrer.
ser belo é ser,
nos olhos dos outros,
a angústia da miséria do corpo
e a mendicância do amor.

eis que a fome,
até então incógnita, sem prenúncio,
crava os dentes na traqueia
e surra o baixo-ventre,
socando a boca do estômago:
é lá que passa a beleza
no vento maldito das saias.

beleza que não faz sofrer
é faca cega
passando margarina em pão seco
numa tarde faminta de banquetes.

25/09/20

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

IRMÃO AUSENTE


gíria é quase sempre
puro contexto.
veja a palavra “mano”:
quando dita por um capoeira,
um pescador, um roceiro,
com o afeto intensificado
pelo adjetivo “velho”
e suas corruptelas tão bonitas,
é carinho no espírito,
que se entende irmão e filho,
há muito tempo,
da terra e dos homens.

mas, quando ela vem
bem paulistinha,
ou com as vogais deformadas
pela poluição comportamental das praias,
ou carrega a efemeridade
do aluguel da juventude
aos estrangeiros
nos shoppings e na web,
em troca de espelhinhos e miçangas,
ela é prego no ouvido
e estupro na esperança
de que se possa estar entre irmãos.

melhor se fosse brother,
ou melhor,
bróder,
palavra furtada
que não mata ninguém
no sertão da minha memória,
que ainda é jovem o suficiente
para morrer todo dia
e renascer palavra por palavra
no silêncio desse mundo.

22/09/20

PARADOXO EXISTENCIAL

(Clique na foto para ampliá-la e na legenda, para acessar a página original.)

sempre existem pessoas
com quem se falar.
porém,
como elas só existem
e nada mais,
deixam
automaticamente
de
existir

nesse silêncio,
onde tudo que existe
transcende.

22/09/20

terça-feira, 1 de setembro de 2020

DESABRIGO

 
(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)


minha casa sempre foi cheia de enormes solidões
e cresci habituado à mesma companhia

hoje, face a face com o esmero da vida
no fazer-me inteiro com os outros,
não sei mais qual pedaço arrancar para encaixá-los
e me vejo sem braços e sem pernas,
roendo com os cacos dos dentes
as horas inoportunas em que tenho de ser vário

de minha casa antiga, ficou o alicerce
robusto, profundo, arrochado com o passado da Terra

nele me sustento e resisto ao esquartejamento
das relações
e existo erodindo, como minha casa velha,
como os corações velhos enterrados no quintal
ao lado do poço seco
e dos esqueletinhos dos cães de minha história

quando for caverna, quem sabe, habitável,
talvez acomode melhor
os que me bateram na porta

talvez, num veio ou num olho d’água,
dê-lhes de beber e de banhar
no reverso do vinho da parábola bíblica:
a simplificação da festa familiar,
o sangue finalmente convertido em coisa
que mate a sede que tiveram de mim

talvez, também, menos possível, embora,
haja nos minerais em volta algo de precioso,
algo que, recebendo um pouquinho da luz
na hora certa do dia,
lhes recompense a fadiga dos músculos
e a desesperança dos punhos
cansados das chibancadas
com uma liga ou uma gema qualquer
que lhes valha as alianças
que nunca fui capaz de forjar

assim, prospectado, devidamente convertido
em sítio arqueológico,
ou retiro espiritual,
ou mina abandonada,
eu possa responder, ainda que ecoando,
a todas as perguntas, a todos os inquéritos,
ou então, como sói às cavernas,
eu seja o lar de mistérios e morcegos, que, finalmente,
possam ser deixados em paz

01/09/20

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

ATÉ O FIM


Não posso prestar mais
muita atenção ao que diz meu corpo.
Quase sempre, são fragmentos de fim,
entretrapos de uma bandeira derrotada pelo tempo.
No entrecortado de sua fala,
ora arquejante, ora gemedora,
estalam-me os ossos
e guincham-me as fibras sob a pele,
como se, com o seu barulho,
tentassem suplantar o sangue,
que, de sua parte, me grita:
“assoreei, meu filho!,
aqui ninguém navega mais!”
Não lhes posso dar ouvidos.
Há algo que me surge debaixo de tudo,
algo suave, congênito, febril, eterno.
Algo que tem o som que tem o sol
quando ele me jorra sombras no torrão das ruas.
Algo que me canta os sucessos dos meus mortos
que nem cheguei a conhecer ou prantear.
Algo que me veste
com a insensibilidade a mim mesmo,
com essa dormência nevrálgica,
sem a qual sou — e sempre serei —
alguma coisa sem mim.
Esse algo me diz,
sem voz nem palavra,
sem silvo nem trinado,
que meu nome é medo na boca da morte,
e que, trêmula, ela me pragueja todos os dias.
Que esta rota, onde me perco,
é a avenida principal de meu retorno a casa.
E que, seja como for,
a condenação de meu corpo
é conduzir-me nela até o fim,
depois do qual, ele, silenciado pelos vermes,
e eu, por estes desacorrentado dele,
desencadearemos de nós dois o sonho
da útil e pacífica continuidade.

03/08/20

segunda-feira, 20 de julho de 2020

REUNIFICAÇÃO


(Ao meu querido Rafael Sousa, que me instigou a escrevê-lo.)

eu me desaparelhei
como uma flor que se despetala
— um malmequer desses da vida.

hoje, nem sou nem tenho.
perdi todos nesta última década,
meus dez últimos anos de amor,
e sê-lo esqueceu-me.

o vento curou no rastro
e me achou o estame hirto, seco,
a face voltada para o muro,
uma sombra sob a sombra.

no caminho, apagou-me as pegadas,
e parece que nasci aqui.

não importa.

ao tocar-me, voejou-me,
e amanhã serei vento também,
um movimento sem começo e sem fim,
que tem uma tendência linda,
indiferente e justa
à reunificação.

20/07/20

terça-feira, 14 de julho de 2020

JUÍZO


(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem)

Não são a ciência
Nem o amor
Muito menos a chama da revolução
Que irão salvar o mundo

A beleza
Somente essa estúpida e inútil fraqueza da percepção
Poderá comover a alma dos homens dentro de seus corpos
Onde ainda, bem distante
Mas ainda
Rescende à terra molhada
A criança que eles mataram

14/07/20

sexta-feira, 10 de julho de 2020

SÓIDÃO DI CORPISTRÃIO

um dia mi dissero
queu miricia morrê
suzin

tumara mermo
quiá Dona Morte mi pegue num dia desse
di sóidão gostosa
merecedô dimin, vitorioso,
cheide paz

— púxuma cadera
tem café quentin
i muita istora pacontá

mar num pricisa não
quela mi cunhece
sab dimin faz tempo, tempo…
nunca li foi nem li fiz
segredo
di queu num sô daqui
i qui meu corpistrãio perambulô
si raspano
nu amô alhei
sem si misturá

mereço não, Dona Maria, mereço não
a vida diagunia
di só tê serventia
si fô cumeno nas mão
mereço mermo sô eu i mĩa sóidão
qui mi há di sê mĩa
nem qui seja oto dia
mais palá quiu sei não

09/07/20

quinta-feira, 9 de julho de 2020

SÃO MIGUEL ARCANJO

(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)


(Para Miguel Otávio, filho de Dona Mirtes, morto em Recife em junho de 2020 pela cor de sua pele, que o havia condenado à morte muito antes dos nove andares de sua queda, pela cor de seus assassinos.)

    Miguel também é o nome do meu filho, um ano mais novo que o Miguel Otávio, filho da Dona Mirtes. O meu foi batizado em memória de Don Quijote, o meu cavaleiro. O de Dona Mirtes, eu não sei, mas suponho que tenha sido em honra de São Miguel Arcanjo. Em ambos, a pureza essencial humana, que se vai perdendo com o tempo, infelizmente. A de Miguel Otávio, não. Esta foi usada contra ele. Não só porque tinha cinco anos. Mas principalmente porque tinha cinco anos, era negro, filho da empregada doméstica da casa da mulher branca, mulher do homem branco, homem branco político do interior do Nordeste. Tudo isso junto dava ao Miguel Otávio a mesma pureza de um filhote de gato atropelado na pista: a pureza de quem vai sendo inúmeras vezes misturado ao asfalto pela cidade indiferente. Miguel Otávio teve uma morte negra: foi assimilado.
    Pranteou-se por ele por uns instantes — um pouco mais do que pelos gatinhos —, e, depois, estatistificou-se: só mais um. Mais um entre tantos, negros como o asfalto, invisíveis como o asfalto, pavimentando a cidade, que não pode parar, não pode! Não pode parar o ar sob seu corpo, impedindo sua queda, não pode parar o sangue no coração da patroa branca, sincopando-o, assustando-a a olhar para ele, percebê-lo, cuidar-lhe a vida.
    A cidade é movida a sangue negro, moído junto aos músculos, aos ossos, às vísceras e aos nomes. Só as palavras ficam. São os milhões de Souzas, como o meu Miguel e o de Dona Mirtes. São os Silvas, os Santos, os Ferreiras. São palavras evitadas, não têm grife, não têm pedigree. Mas nós voamos, com certeza. Nossas asas nos sustentam e nos elevam como povo e como ideia. Miguel, suas asas não foram cortadas, não puderam fazê-lo. Você voa entre nós como uma canção, como um poema de liberdade, tão puro, tão lindo que comoveria todos os mortos à memória no remorso dos vivos.
    Quem escreve isto é um pai nordestino, caboclo filho de caboclos e sertanejos, armado de lança e escudo, face a face com os moinhos. Voa, meu anjo.

09/07/20

O AMOR

tem uma dor aqui
uma angústia
a desesperação de uma fragilidade
recém-nascida no sal crispante do lajedo

tem uma dor aqui
que me chama dentro dela
e o meu nome é grito e sussurro
e a única palavra que ela conhece

meu deus, como eu queria
saber falar a língua dela!

tem uma dor aqui
que quer doer só para mim
e meu coração se enche todo
de amor por ela

do outro lado, que importa o outro lado?
não importa se ele existe
tem uma dor aqui
que é uma casa de mil quartos
de mil jardins
e de cornucópias na despensa

e só sabe dizer meu nome, tadinha

08/07/20

sexta-feira, 3 de julho de 2020

POLIGLOTA DE ALMAS


    Ler é ouvir de si mesmo as palavras de todos os outros e tornar-se daí um poliglota de almas.
    Não ler é trocar todas as vozes do mundo pelos gemidos dos fantasmas da casa assombrada pelo próprio silêncio.
    Ler não é só decodificar os signos, tampouco um bom leitor o é pela quantidade ou pela diversidade de temas, gêneros ou idiomas a que se dedica.
    Ler de verdade é ser generoso com o universo alheio a ponto de partilhar do que é oferecido, mesmo completamente diferente, mesmo que choque, mesmo que leve a conflitos e impasses. Ler não é apenas “colher” do texto, mas sim trabalhar a terra, semeá-la, enfrentar o estio e as águas, matar as pragas, para, somente assim, compreender o que se colhe e, por conseguinte, o valor do alimento que os dois, autor e leitor, levaram à mesa.
    Dessa forma, um bom leitor não pode ser como um glutão, guiado apenas pelo prazer da mesa posta. Muito pelo contrário. Um bom leitor é aquele que senta à margem do rio sob o sol, enfia os dedos na terra imunda de vida e compreende assim, totalmente sensorial, o milagre na semente.

03/07/20

SALVAGE

(Clique na foto para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

a calma e o silêncio
com que o fundo do mar
oxida o corpo férreo dos navios de guerra
comove as bombas sepultadas em seu ventre
— titãs que nunca nascerão.
elas sabem melhor que o mar
o valor daquela finita eternidade.
nas depressões abissais
é que as explosões, dentro do seu impossível,
descobrem a sua razão de ser:
a aniquilação dosada a conta-gotas
comprimida pela escuridão absoluta do mundo
é o perdão terminal dos deuses da guerra.

01/07/20

quinta-feira, 2 de julho de 2020

POEMA CRÔNICO DE DESAMOR

Dói muito mais desamar.
Há coisas que doem, como derramar sal nas chagas ou enterrar os mortos.
Desamar não é nada disso.
Tampouco, lavrar a terra nova depois da fazenda incinerada.
Muito menos, conjurar nuvens que renasçam essa terra.
Desamar não é renascer.
Não é um processo de cura.
Não é ajoelhar-se ante o deus dos tolos, condescendente e perdulário de perdões mal ajuizados.
Não é fazer as pazes com o eu-menino que foi violentado durante o mau amor.
Desamar requer muito mais do que a esperança cândida das madalenas arrependidas.
Desamar não é arrepender-se.
No eito da vida, das estórias dentro da história, jazem nas valas abertas de beira de estrada todos os instantes que a memória cuida de tecer, fiar e refiar em tecidos quase corpóreos, de tão tangíveis que são em sua malha.
Eles são as mortalhas com que se vela o amor morto, e carpida-se, e destroça-se a alma dentro dos ossos que se remoem em desesperação.
Isto ainda não é desamar.
Desamar não é autoflagelação.
Desamar dói muito mais.
Mais que o ciúme e a injustiça, que as injúrias e as humilhações.
Dói muito mais que a simplificação medíocre que é o apodrecer silente na alucinação da rotina que não se escolheu, porém se arrasta bovinamente em carroças de madeira rangentes num sertão sem horizontes.
Infinitamente mais.
Desamar viola todas as leis naturais, viola Deus e o Inferno, posto que, de ambos, ignora os dogmas e as maldições, sendo-lhe inócuo tudo isso.

Desamar é o retrocesso do que não tem retorno.
E, nesse estraçalhar impossível de engrenagens impossíveis, reinventa a máquina, recodifica os protocolos, oprime com o peso absoluto da invariabilidade a explosão do amor, até que ela se reconfigure em combustível; e a chama vulcânica da paixão, em nada, como se nada nunca houvera sido.
Desamar exige mais que a morte, visto que esta traz apenas repouso e transformação.
Depois dela, o mistério.
Desamar é mais que a morte.
Desamar é matar todos os mistérios na gênese, inexistindo-os sob todas as análises.
Tudo que concerne à vida e às amálgamas sensoriais que proliferam como ondas entre os corpos, tudo que é sentimento e intuição, tudo que edifica a casa em que o amor se torna, simplesmente, inexiste.
E inexistir não é esquecer.
Não é obliterar.
Inexistir é alterar o fluxo natural do tempo, coagindo-o a uma progressão instantânea ao seu próprio reverso até chegar à sua origem e, ali, atar-lhe novamente o fio e maculá-lo tão intimamente que ele próprio não terá nunca existido antes daquele ponto.
Desamar é forçar a inexistência do amor.
E, depois disso, não há mais o que falar.

02/07/20

segunda-feira, 29 de junho de 2020

JÁ FUI CAÇADOR DE SONHOS

(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página original.)

    Sinto saudades dos meus pesadelos originais. Das aranhas intangíveis, do mar de anzóis, dos monstros perseguidores, dos diabos antropomórficos, das quedas abissais. Esses eram fantásticos, cinematográficos. Vinham o terror, o susto, então o despertar e um subsequente sorriso feito de adrenalina e endorfina. Já os de hoje são tão banais, tão novela das oito e, por isso mesmo, tão fatigantes e punitivos… Será que a vida vai apodrecendo até nos pesadelos? Ou perdeu-se mesmo foi a minha capacidade inconsciente de ser original?
    Já fui um caçador de sonhos. No redormir, pelejava com os meus labirintos de além por encontrar nem que fosse um rastro, uma sobra de mim e dos meus vilões de havia pouco. Tive pouquíssimo sucesso nessas empresas. Sonhos são criaturas de vento e fumo, desprovidas de fidelidade e teimosia. Pesadelos, então! São como assaltantes de alma, que levam a paz e deixam a aventura no lugar. Mesmo nessas caçadas exitosas, não conseguia capturar a presa inteira, em perfeito estado. Isso se dava, acredito eu, porque não deve ter muita graça para uma onça fingir que é um peba e enfiar-se terra adentro para ela mesma dormir o seu sono onírico. Caçadora é ela, sempre foi, não eu, nunca eu! Mas, aqui e ali, um sonho deixava-se pegar pelo rabo e corria de novo comigo pela mágica universal da criança que todos nós voltamos a ser quando os caçamos.
    Hoje, sonhar parece ser só algo que acontece, e ter pesadelos não deixa mais a sombra corsária do náufrago resgatado nem a angústia azul-celeste do fugitivo em liberdade. Também é só algo que acontece, arrancando a paz e deixando um buraco prenhe de perguntas renegadas. E a alma, violada, não quer nunca mais dormir. E o espírito, vigilante, de faca na mão, com sangue nos olhos, do lado de fora da casa do corpo, espera. O dia inteiro, espera, até que o dia, esse fascículo rude da vida, insípido como um chiclete frio e mastigado, traga outra vez o acontecimento do sono e vença.
    Não busquei nem fui buscado. Apenas aconteceu. Não tem nenhuma glória o tropeçar em alimento morto, mas come-se, digere-se e espera-se que, dentre o capim seco das primeiras horas, ressurja a caverna de Grenouille, e o meu mundo de aromas me ascenda novamente à selva lisérgica onde minha alma volte a ser das feras a amante medieval, expectante, apavorada e gozosa na torre do castelo.

29/06/20

sexta-feira, 12 de junho de 2020

TOLERÂNCIA


    Sempre odiei o verbo “tolerar”. Oriundo do latim tolěrare (suportar, aguentar), e este, do tollere (levantar), o verbo “tolerar” sobrecarrega o seu objeto direto com a semântica odiosa do erro, da incorreção, da ausência de enquadramento, e o seu sujeito, com a perigosíssima posição de juiz paternalista detentor do poder da “tolerância”, substantivo ainda pior que o verbo. Essas palavras são exemplos tanto da hipocrisia quanto dos preconceitos estruturados na língua e, consequentemente, na cultura (pois a primeira antecede a segunda como causa desta). Pessoas, sexualidades, religiões, etnias, culturas não devem ser “toleradas”, mas sim legitimadas como soberanas em suas singularidades. Somente assim, na pluralidade legítima, poderá haver um legítimo Estado democrático de direito, pois o “tolerante” nada mais é do que um hipócrita com uma casa cheia de tapetes sob os quais apodrecem os esqueletos de seus preconceitos.

09/06/20

terça-feira, 9 de junho de 2020

MADERA


Aunque nadie lo sepa,
lo que dentro de mi canta
llena los espacios
prohibidos a quienes no soy,
donde hay un mar de espíritus bailantes
y todo el sentimiento del mundo.

Sin embargo, los de fuera
intentan callarme
incluso el silencio.

A ellos, les canto
que soy yo mismo una canción,
que reverbero en los huecos donde no estoy
con todas las voces en coro
de aquellos que, como yo,
son madera que,
en el instrumento más precioso
y ante el fuego del infierno,
canta.

09/06/20

ROUPA DE SAIR

(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda para acessar a página.)

de tanto mudar a roupa
de sair
fiz que o domingo passasse
que todos os dias fossem a experimentação
teórica apenas
da rua e do mundo

na agonia da nudez
é que vivia
e o entra-e-sai n(d)os tecidos
polia a pele
para um sol que nunca me viu

09/06/20

quarta-feira, 27 de maio de 2020

SOPA DE LETRINHAS

    Não é isso que quero escrever. Quero escrever que sinto saudades. Faz falta andar de bicicleta de madrugada. Faz falta escrever de madrugada à luz de velas como se isso fizesse o texto melhor. Sinto falta dessa ingenuidade… Conversar horas no telefone com minha amiga N., que não quer mais falar comigo. Com razão. Nunca fui um bom amigo nem a ela nem a F., W., O. etc. Sinto saudades deles todos como sinto de mim mesmo, que fui quem eu mais traí. Não que isso seja de modo algum uma reviravolta surpreendente ou uma obra de forças ocultas a que chamam de acaso, não é nada disso. São favas contadas. Eu só esperava, do fundo do coração, que tivesse se desenrolado diferente, com talvez, digamos, um atraso nas contas do carma ou um adiamento, quem sabe? Eu esperava que eu mesmo só aparecesse para estragar tudo no final da história, numa risada nervosa ou num ataque de fúria, deixando transparecer finalmente que eu não sou, não era, nunca fui direito quem lhes foi amigo, professor, amante, familiar. Eu, eu mesmo, não me sinto nada disso. Talvez, escritor. O caso é que eu sinto enormes saudades… Sinto falta agora, depois de ter visto filmes e ouvido tantas músicas, de conversar com meu amigo W., que já morreu, sobre esse eu que sentiu o que gostaria de compartilhar, mas está sozinho. Como sempre desejara estar. Sinto falta de mostrar meus textos a N., a primeira (a única, na verdade) a me esfregar na cara que eu era um merdinha de um parnasiano. Nunca mudei completamente, mas conversávamos sobre isso, e era tão bom… Perdeu-se. Sinto falta de uma certa injustiça, que era justamente a de me saber desconhecido dos que me amavam. Minha mãe, T., nunca me leu. Tampouco, meu pai, L. Hoje, com tantos textos tornados públicos (menos equivocado que “publicados”), sei que pouquíssimos me leem, e isso não me dói, ainda que haja no fundo um desejo de a ou b os lerem, mas não me dói sobremaneira que não o façam. Porém, sinto falta de sentir falta de ser lido. Existia alguma coisa de romântico naquilo que eu tinha e, principalmente, no que não tinha. Eu me fechava completamente ao mesmo tempo em que desejava ser aberto, mas algo acabava por entrar, contaminando. Com o tempo, essa sílica entranhada na carne emperolou-se numa enorme esfera de cinismo e insipidez que hoje gosto tanto de fazer confundir com literatura. Mas é só isso mesmo. Contudo, sinto saudades de ser uma ostra legítima, aquela que sofria legitimamente uma prenhez forçada de alguma coisa bela na escuridão do fundo do mar. Essa coisa, que eu escrevia, sangrava, silenciava, essa coisa tinha lá sua beleza. Sinto saudades de falar dela… Sinto saudades porque havia um certo encanto na inutilidade daquele martírio, e conversar com C., L., T., R. sobre aquilo me validava enquanto seu amigo. Sinto saudades de me embriagar com eles, ainda que não houvesse ali nenhum pertencimento de minha parte. Era só minha solidão compartilhada no fundo do copo. Mas, como me faz falta… Hoje, não sinto mais vontade de beber nem de sair para beber. Não sinto saudades do blues, que tanto ouvia com I. e com O. Mas sinto saudades de mim com eles. Eu estar com eles era eu. E isso já não existe mais definitivamente. Hoje, eu me contento, infelizmente, com saber de tudo isso. Saber que, se W. estivesse aqui, eu poderia ligar para ele e comentar sobre a descoberta tardia da Lhasa de Sela, via L., amiga nossa em comum, e dizer de todas as maravilhas que a voz dela me refez sentir. Se não tivesse me distanciado de R., de A. ou de M., eu poderia ou estar bebendo debruçado sobre uma crítica de filme ou pedalando numa noite qualquer dessas, rindo das pessoas no meio da rua. Poderia estar jogando vôlei com F., J. e K., poderia estar ouvindo Led Zeppelin com M. Poderia ter, se não houvesse acontecido tanto, de novo a companhia de F. numa de nossas aventuras impossíveis e absurdas de quem não tinha dinheiro e conseguia realizá-las. Saber disso é o que tenho. Isso e as letras, que tomaram o lugar de seus nomes numa sopinha de lembranças de um enfermo crônico de gripes e de crônicas. Padecer ainda é sonhar, e sonhar, bem… Sonhar ainda é interceder com violência contra essa vida besta drummondiana.

27/05/20

sábado, 9 de maio de 2020

O COLECIONADOR


    E se ele fosse desses homens que são definidos pelas posses? Desses, a quem a vida só marcou na coleção de canecas ou nos discos acumulados na estante? Agora, quando tudo parecia estar se pondo a termo, inclusive lá fora, a vida dos outros, inclusive a terra, o ar, os pandas-vermelhos, agora, ele seria desses com gavetas no caixão? Sofreria em vida com a avareza dos mortos, que, não mais tendo outra coisa que não a própria matéria, reconstroem-se no fetiche que outros poderão vir a sentir pela matéria acumulada por eles? A matéria, essa sim guarda os acontecimentos, porque acontecimentos, para serem memória, precisam estar documentados, registrados — “Aqui, esta pedra eu catei no jardim do passadiço que dava na entrada da casa dela, naquela noite de tanto medo e fatalidade, que se converteram em cãs, filhos, barriga e dívidas, inclusive e principalmente comigo mesmo…”. Disso ninguém saberá? Inaceitável! Mas são coisas demais… Tudo parece demais. Andou tendo amnésias do que não poderia esquecer, do antes, do imaterializado, do sem registro. Sua incomunicabilidade não lhe permitia passar adiante essas coisas. Mas essas coisas… essas coisas não se passam adiante, soa até errado, como um contágio, um espargimento de moléstias, ainda que sejam, de fato, em sua maioria, lástimas, lástimas pelo que não teve, pela consciência da impossibilidade de ter, lástima pelas perdas, e foram tantas… O que seria dele sem suas perdas? Havia por certo de mantê-las, mesmo que fossem materializadas em expressões, em silêncios e em inações. Haveriam de ser vistas, todos haveriam de sabê-las, elas não se perderiam no tempo. Lembrou Blade runner, estava chovendo. Onde estariam os pombos naquela chuva? Mas pombos espalham doenças, e lhe vieram de novo as visões de pragas e pandemias. E se escrevesse? E se rabiscasse tudo em alegorias floreadas, acumulasse as brochuras e deixasse, como último bilhete, o desejo de que fosse tudo incinerado junto com seu corpo, tornando-se tudo uma só matéria, esfumaçando a atmosfera em fuligem e pó, que incomodariam, que fariam todos saberem? Mas, de certa forma, a memória das coisas que incomodam tende a só ser recuperada na presença da causa. Ele, como causa, nunca mais seria presente… Tornou-se sem efeito sua divagação. Não havia jeito. Tinha de desfazer-se de tudo. Deletar-se, aniquilar-se. Na inexistência, talvez, na lacuna deixada como uma pergunta — “Ué, cadê?” —, causasse o efeito que tanto temia não causar. Talvez, inexistindo, existisse. Pôs em prática imediatamente o projeto. Etiquetou o que dava, arrolou tudo em listas, que deixou em locais estratégicos. Não faria estardalhaços. Nada de bilhetes, e-mails nem gritos na janela. Haviam de achar tudo, haviam de testemunhar seu desaparecimento em todas as coisas testamentadas, e só. Ao final, aflito e orgulhoso, abandonou-se no sofá. Diante dele, a tevê. Sentiu vontade de assistir à última programação, que era sempre a de costume. Endilemou-se entre ligá-la ou não, já que estava com alguns post-its no monitor. Pensou em como odiava a maneira canalha como a língua inglesa havia feito embaixada em sua vida. Post-it! Seria lembrado como aquele que deixara post-its? Arrefeceu, achou melhor ler alguma coisa na internet ou algum e-book de estimação. Os livros já estavam encaixotados, o celular teria de dar conta. Levantaria, abriria a caixinha original, colocaria de volta o chip e o cartão de memória — dera-lhe tanto trabalho etiquetá-los! —, veria alguma coisa… Não, era enfadonho demais. Olhou em volta, havia papeizinhos por toda parte. Pensou em sair, em fugir, em realizar o desejo do José, o do Drummond. Sorriu. Também não tinha parede nua para se encostar. Quem sabe, uma mulher nua, então? Àquelas horas, mas… não há tempo em que elas não trabalhem. Precisou de ar. Percorreu a sala, chegou à porta, mudou o último post-it de lugar a contragosto — dera-lhe tanto trabalho! —, saiu. Sentiu vontade de comer pão passado com café. Adorava café. Ao lado da padaria, haviam aberto uma papelaria moderninha, com esses post-its coreanos. Quem sabe, não seriam colecionáveis?

08/05/20

terça-feira, 28 de abril de 2020

NÊMESIS

Mosca-varejeira
(Fonte: Google Imagens. Clique na imagem para ampliá-la.)

   Talvez tudo tenha começado quando leu Kafka na adolescência, ali pelos treze anos — “Praza a Deus que tenha sofrido muito em vida, esse desgraçado!” Ficara tão desesperado com A metamorfose que retornou a mijar na rede, obrigando sua mãe a lançar mão de bacias e muita água sanitária, cujo aroma passou a lhe dar uma certa reconfortância. Virou o seu cheiro preferido desde então. Sempre fora um menino frágil, filho único, e a mãe o mimava. Já o pai, bruto que era, achou aquilo um caminho aberto para o afrescalhamento que vaticinara à esposa já adivinhar rondar seu filho e apelou para o cinturão e as humilhações — “Antes morto que viado! Aqui, não!” A gota d’água foi a manhã em que o obrigou a ficar só de cueca do lado de fora da casa, com a rede mijada enrolada em trouxa sobre a cabeça, levando coiós e o nome de mijão, gaiatice atiçada pelos entregadores de pão e jornais. Haveria de aprender, ora se não! Mas não se deu assim. Aquilo custou ao pai um divórcio litigioso, a negação sumária do direito à visitação e, de quebra, um enquadramento no crime de violência contra um menor. A pensão foi gorda, os advogados deram um jeito, ninguém foi preso, mas o pai voltou para o interior de vez e não quis mais saber da família. Chegava a querer brigar se lhe perguntavam do filho. Quanto a ele, somando-se os pesadelos oriundos da imaginação de um inseto gigante, a mijadeira, as surras, a humilhação e o abandono do pai, aquilo lhe custou a perda definitiva da saúde mental, a qual dera lugar a um senso extrapolado de esmero com a higiene física e um subsequente pavor de insetos.
   Para ele, insetos eram uma coisa detestável, mesmo os coloridos e mais populares como borboletas, joaninhas e esperanças. Imaginava-se envolto numa casca superprotetora de tecido e loções que lhe assegurava a imunidade aos ferrões e às patinhas infinitas munidas de asas — como drones espargindo doenças e morte — das muriçocas e afins. Não se vestia; encouraçava-se. Eram camadas e mais camadas oleosas e pastosas que, mal ressecavam, eram sobrepostas de outras, o que lhe deixava a pele ictíica e a aparência encerada, tudo isso sob tecidos semiendurecidos de produtos em aerossol comprados on-line que garantiam afastar de mosquitos até cobras de pequeno porte. Contudo, mantinha um respeito espectral às baratas, ainda que as considerasse as próprias emissárias do inferno encarnadas. Depois que descobrira que elas resistiriam a hecatombes, que viveriam sem a cabeça, que faziam hábitat em três dos quatro elementos — “Uma barata-fênix seria demais!” —, passou a imaginá-las como algo além do ordinário peçonhento-vampiresco-primaveril dos outros insetos, algo quase sobrenatural.
   Porém, o que odiava acima de tudo eram as moscas — “Mosca pousou, é o fim. Pode enterrar.” Tinha-lhes um asco refinado, uma ojeriza pungente. Dedicava horas a odiá-las, nemesificando-se, engendrando alucinações de destruição em massa. Moscas pousavam na bosta e nos cadáveres, na podridão do mundo. Além do mais, estava certo de que elas possuíam uma inteligência maligna e rudimentar, maquinada à moda de uma espiral, que lhes capacitava a propriedade, entre outras, de intuir o local exato do corpo humano que era impossível de se alcançar para espantá-las, matá-las ou, simplesmente, coçar o rastro ultrajante que deixavam na pele.
   Assistira a uns vídeos na internet — talvez por masoquismo — que mostravam o estado putrefato em que ficavam animais vítimas das larvas da mosca-do-berne depositadas neles subcutaneamente. As moscas inseriam seus ovos num inseto hospedeiro, uma mutuca, um mosquito, por exemplo. Esse arauto da destruição, por sua vez, picava o gado, no qual depositava as larvas do berne. Essas larvinhas devoravam os músculos do gado ainda vivo e causavam infecções que os consumiam, para, quarenta e cinco dias depois
— quarenta e cinco dias! , caírem no solo, onde se enterrariam até eclodirem na forma alada, alastrando a pior morte que ele jamais concebera até aqueles minutos de agonia informativa.
    Em virtude dessa fobia toda, seu apartamento se tornara um ambiente praticamente estéril, faltando um quase-nada para ser nocivo à própria vida em si, dada a quantidade de dispositivos repelentes que decoravam tomadas, paredes e aparadores. Nenhum dos víveres ficava à mostra, nada que cheirasse a doce ou a qualquer tipo de refeição se identificava em lugar algum. Por todas as possibilidades de contato atmosférico com o mundo exterior que o condomínio não lhe permitira tapar, ele havia mandado instalar telas de malha finíssima, todas tratadas com os mesmo produtos que borrifava nas roupas e nos tecidos dos sofás. Dessa forma, nesse exagero, que começou com pequenas excentricidades como raquetes elétricas em cada cômodo e a incipiente compulsão pela limpeza das superfícies, ele vivia.
    Seus amigos foram migrando pelo território constrangedor que ele pavimentava de plaquinhas adesivas e veneninhos em pó. O êxodo começou com as piadas do que acreditavam ser excentricidade, falta de mulher ou TOC. Passou à mitologia que acompanhava seu nome ausente de corpo nas rodas de cerveja — “Teve um primo que morreu de H1N1, coitado. Deixa ele.” — e à indulgência piedosa por acreditarem tratar-se de uma doença — “Meu Deus, isso é entomofobia, eu vi, isso incapacita a pessoa! Esse coitado, só com terapia pesada, viu?”. Em seguida, vieram os rancores, pois ele se afastava das pessoas deixando claras coisas como “olha, esse seu cheiro, você não usa nada não?, é que, assim, você sabe… eles vêm, né?”. Terminou com o medo que os amigos restantes passaram a sentir dele, como se aquele exagero comportamental se houvesse convertido numa misantropia que poderia explodir a qualquer momento num acesso de fúria à mão armada, e não de Baygon.
   Trabalhava pela internet. Era webdesigner e bem requisitado. Passou a comprar praticamente tudo on-line e, nas cada vez mais raras incursões no mundo, saía como um foragido, evitando pessoas, organismos, vida. À exceção de visitas constantes a infectologistas e a laboratórios de coletas de sangue, não precisava sair do seu bairro. Morava bem, tudo era perto de seu apartamento. Não perdera de todo o bom-senso. Numa ocasião em que comprara um traje completo de apicultor num site de equipamentos agrários, refugou usá-lo em público, apesar de ter achado absolutamente necessário. O caso é que, depois que o experimentou em frente ao espelho, sentiu-se estranho e imaginou o assédio de curiosos na rua, que lhe trariam, juntamente com o suor e o sebo engordurado de suas peles, mais insetos para perto de si, o que seria um efeito contrário daquela determinação — “Povo burro! Além de imundo, burro! Isto deveria ser um uniforme casual em todo lugar!”
    Numa de suas rotinas matinais de assepsia, no meio de uma fomezinha mundana, sentiu vontade de comer uma daquelas tapiocas com carne de sol que se vendiam na calçada da faculdade. Ele mesmo faria a tapioca, mas lhe faltava o recheio. Não tinha incluído a carne de sol congelada na lista de pedidos que enviava periodicamente à gerente do supermercado, a qual ele descobrira também ser meio paranoica, porém com gente pobre, e achou chiquíssimo ter um cliente que atendesse on-line — “Ah, se todo mundo fosse assim, não essa gentinha que enche as filas!” Porém, é claro, mandava entregar as compras mediante uma propinazinha, que isso era contra as normas do estabelecimento. Seria de se esperar que ele estendesse à comida a mesma fobia que tinha com relação ao ambiente e que só comesse coisas praticamente sintéticas, mas, não! Guardava um paladar quase infantil, e, muitas vezes, jantava pipoca com sorvete ou um sanduíche gorduroso de pernil malpassado de porco. Esse era o único buraco perceptível naquele semi-hermetismo em que vivia. Ele sabia disso. Porém, confiava tanto na seleção de suas compras pela gerente corrupta e em seu sistema impenetrável de armazenamento e preparo da comida, que não perdia um instante de sono com isso. Ligou para ela, informou-lhe a necessidade, permitiu a cobrança do suborno e esperou. Cerca de quinze minutos depois, o entregador — que já estava acostumado com o processo de inquérito e com a desinfecção na soleira da porta, paciência que lhe era até divertida, contanto que recebesse sempre uma gorjeta por aquela paspalhice — entregou-lhe o pacote. A carne de sol já vinha pré-cozida e desfiada, pronta para se fritar na chapa, e era assim que ele fazia, com manteiga, pimenta-do-reino e gergelim, que era o mais próximo da memória afetiva que tinha do seu lanche universitário. Preparou tudo assobiando, fez a tapioca, recheou-a, comeu tudo com café, ficou satisfeito. Somente a limpeza de tudo lhe daria um prazer maior do que aquele café da manhã. Deixou a chapa por último, pois o que dava mais trabalho sempre era o melhor. Sentia-se ele próprio um gigantesco inseticida, um agente, uma força da natureza com uma missão em curso.
    Achegando-se da Croydon — comprada num site de loja de departamentos, uma pechincha! —, que parecia sempre novíssima devido à constante, completa e meticulosa esterilização a que era submetida, achou curiosa a forma dos restinhos dos fiapos da carne, enegrecidos pela fritura. Essa sensação deu lugar a um arrepio, que cresceu e foi sucedido por um terror, que também evoluiu, mas a espasmos violentos e à súbita palidez de que sofrem os covardes que esconderam em vão seu medo, revelado pela onipresença instantânea e estrondosa do causador. Diante dele, jazia um cadáver perfeito, com todas as patinhas e asinhas, de uma mosca varejeira, cujo verde-esmeralda ainda podia ser percebido apesar da carbonização. Estava ali, juntinho das sobras da carne que, havia pouco, ainda chupava de entre os dentes. Se havia uma, havia muitas, porque mosca é assim, gregária, maltesa, bandoleira, mafiosa, multitudinária, tinha de haver, tinha de haver, tinha de haver! Dentro dele, em seu esôfago, em seu estômago, em sua alma!
    Bambeou para trás, levou a mão à garganta, arranhando-a com as unhas quase transparentes de tão limpas, sufocando-se, esganando-se. Socou sua barriga várias vezes, enfiou os dedos na goela o que pôde, porém lembrou que foi por ali que elas entraram e retirou-os, sacudindo-se de nojo e arremessando-se à pia. Deu dois passos ridículos, tropeçou um pé no outro e caiu epiléptico, estrebuchando os ossos que chacoalhavam como um carrilhão de bambus. A tapioca saiu granulada, gosmenta, melecada numa lama negro-amarelada composta pelo café e pela carne, um petróleo fedorento que lhe saiu pela boca e pelas ventas e no qual chafurdou porcamente a cara em agonia de morte. No meio daquele caos espasmódico, deu-se conta de que aquilo deveria ser o inferno, mas ele era bom, era limpo, não merecia o inferno, e então, como se fosse feito de mola, distendeu-se elasticamente como uma flecha lançada na direção do banheiro, onde, debaixo da água escaldante do chuveiro elétrico, terminava de vomitar, esfregava a segunda bucha sintética com Aseptol e batia a cabeça na parede do box, na esperança de que aquilo o fizesse acordar ou morrer, o que viesse primeiro.
    Não vieram nem uma coisa nem outra. Levou a manhã toda, um pedaço da tarde, todo o sabonete antibacteriano do mês e alguns milhares de litros d’água e de lágrimas aquela purgação. Durante a limpeza — a qual se fazia necessária novamente e novamente, sempre que lhe retornava a visão do cadáver fritinho e da coloide infecta, que ele jurava ser constituída por inúmeros outros corpinhos derretidos pela bile no chão da cozinha —, ele tomou algumas decisões. De imediato, precisava internar-se para uma lavagem estômaco-intestinal urgente. Em seguida, haveria por Deus de chamar um serviço especializado para a limpeza de tudo, pois o prazer de fazê-lo tinha-se convertido em pavor, e ele jamais seria capaz. Em terceiro, contrataria alguém, algum pistoleiro conhecido da família de seu pai, que era toda de Alto Santo, para dar cabo da gerente, do entregador, do dono e dos funcionários do frigorífico, enfim, de todo o gado do Vale do Jaguaribe, de Goiás, do Mato Grosso, do inferno, se fosse necessário, já que sua alma clamava por reparação total e imediata. Nessa hora, havia nele uma mistura de medo e coragem, como se o espírito de vingança de Nêmesis surgisse por trás de seu espinhaço amarelo, exigindo retaliação de proporções olímpicas.
    Foi até o espelho, carregado de ódio e vergonha. Ainda não tinha se visto naquele dia, deveria estar lastimável. Talvez devido ao tempo em que ficou molhada, a sua pele se engelhara, formando sulcos e gretas flácidas que lhe davam a aparência de um maracujá ressecado, e a sua palidez começara a se converter num tom patinado uniforme. Todo esse arrazoado durou só alguns segundos em seu raciocínio. A lógica logo se contaminou pelo trauma, o que evocou memórias em que acrescentava masoquistamente dramas e tragédias todos os dias. Por exemplo, uma vez, conversando com um amigo entomologista, o qual considerava um antagonista, mas tinha-lhe respeito pela coragem, perguntou se alguma vez tinha se envenenado com algum inseto, ou contraído alguma moléstia, enfim, se tinha sido castigado pela escolha de vida que fizera. O amigo, que se divertia horrores com a sua neurose, que costumava achincalhá-lo de propósito, chamando-o de pupa, não estava nesse dia tão disposto assim, então falou-lhe a verdade: que não, que o máximo que lhe ocorrera foi ter sido picado por um mangangá e ter engolido mosquitos numa viagem de moto. Isso lhe foi o suficiente para vários pesadelos periódicos, e o sucedido com o amigo se converteu pouco a pouco em sua própria memória, uma memória vívida, construída, cultuada como um ídolo falso. Assimilou. Naquele momento, diante do espelho, convenceu-se: havia insetos dentro dele, uma legião de demônios que se misturaram, reproduziram, se aglomeraram no local onde deveria estar a sua alma, um corpo que, naquela manhã, havia recebido, calmamente ingerida, a sua cabeça. Ficou zonzo, lembrou o apelido com que o amigo, especialista no assunto, insultava-o: pupa. Óbvio que ele devia ter visto algo nas videochamadas e identificado o que sua profissão o treinara para classificar, um inseto em progresso, uma besta alada que se formava dentro dele em segredo. Caiu no chão, machucou a bacia, sentiu câimbras e frio, abraçou as canelas com toda a força. Rezou como fazia quando criança, quando pedia à Morte que lhe pulverizasse o corpo para que insetos não o devorassem. Rezou com a mesma força de quando o pai fora embora, queria que ele voltasse e lhe arrancasse aquilo do corpo com o seu cinturão, queria morrer ali para renascer limpo…
    Essa ideia interrompeu bruscamente aquela espiral para dar início a outra. De repente, enxergou na cadeia de eventos que formaram a sua personalidade uma lógica, um fio. O que ele era deveria ser transformado, mas não com a morte, que não era de suicídios. Deveria ser uma purificação. Não como a de Gregor Samsa, a qual materializara o que este já era em atitudes. Ou sim? Não era ele, também, como um inseto, escondendo-se, emburacando-se, aninhando-se em si mesmo na alegoria de seu apartamento? Não, não mesmo, não podia ser! Os insetos estavam lá fora, ao sol, festejando a eterna primavera fétida de seus pólens e monturos. Era sim o mundo uma imensa colônia, um pavoroso arapuá dentro do qual ele cavara uma cova estéril e se aquartelara. Os insetos eram o mundo! A infestação era a vida! Ele, pobre dele, era um dos poucos — se não o único — remanescentes da humanidade. Seu pensamento deu outra volta, e percebeu então que a própria humanidade era composta de insetos. Todos muito piores que as baratas, infinitamente mais nocivos. Todos distintos, coloridos, todos derrubando árvores e comendo lixo, todos se entredevorando e espargindo doenças. E ele, quem era ele? Não queria guerra com ninguém, vivia sem incomodar, era limpo, ordenado, organizado como uma linguagem de programação de uma bonequinha de sites de hentai, sua principal encomenda e fonte de renda. Outra volta. Então sua vida se resumia a construir imagens fetichistas para homens velhos se masturbarem? Meu Deus, o que seu pai diria agora? Será que seu pai era um dos clientes naquela linha de produção de depravações? Meu Deus, como ele queria ser punido naquele momento com um gigantesco cinturão purgativo, desinfectante, esterilizador. Começou a arranhar a pele engelhada com as unhas moles, na esperança de arrancar logo aquele invólucro e deixar o demônio alado sair e voltar para sua colônia, para sua bacia de mijo, para o colo de seu pai, o qual por certo que já o tinha posto no colo, pois lembrava-se de ter sido catado várias vezes de onde estava para ser esfregado em sua cintura, sempre que sua mãe não estava presente. Quanto mais arranhava, mais gemia e grunhia como quando era objeto daqueles carinhos de cujos abraços nenhum os colocava face a face. Foi arrefecendo, exaurindo-se. Uma fome enorme tomava conta dele, mas não se atrevia a levantar-se.
    Adormeceu da mesma forma que na madrugada do primeiro pesadelo. Sonhou com seu pai abraçando-o como um pai deveria, olhando-o nos olhos. Eram muitos olhos, muitas minúsculas órbitas iridescentes. Sua mãe lhe sorria do sofá da sala, as pinças abertas, uma enorme folha semidevorada no colo. Dentro de seu pensamento, eclodia, turva pelo onirismo daquele momento, a esperança de acordar um homem, homem como deveriam ser os outros filhos que seu pai se orgulhava de ter espalhado pelo sertão antes de ter conhecido sua mãe, Dona Inocência, tão boa, tão culpada de tudo que havia privado a ele, sua infância com seu pai, cheirando a mijo e vergonha, a brutalidade e clandestinidade. No chão da cozinha, enquanto isso, começavam a escapar da gosma algumas larvinhas amareladas, atrapalhadas com o ambiente novo em que haviam sido jogadas como um segundo e forçado nascimento.

28/04/20