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quarta-feira, 19 de setembro de 2018

DESAMORAÇÃO

Ficou lá pelas quebrada
Mei da mata, oco do mundo
No moirão, mula arriada
Sem governo, o vagabundo
Que de si não tinha rumo
Nem no seu querer jornada
Que não fosse a esparramada
Água no poço sem fundo

Querer bem moça donzela
Tira do home a razão
Num sertão chei de janela
Curiando a sedução
Desatina o ser cristão
Esse mundão de tramela
Gera no peito uã procela
Põe na cela o coração

Sobrante a chama no esprito
Fria facada certeira
Fartante é a voz no grito
Que ecoa na caatingueira
Lamenta a voz verdadeira
Chora de vera o aflito
Traz no infinito o maldito
Ata na vista a cegueira

Vara o mundo a criatura
Vai de a pé ou cavaleiro
Sem sentir as rachadura
Dos gretado nos lajeiro
Sem comida nem dinheiro
Doente apartad' da cura
Que mora na fremosura
Daquele olhar feiticeiro

Vai vivendo o piligrino
A lonjura sem guarida
Cada légua, um desatino
Cada agrado, uma ferida
Leva a vida desvalida
De quem tem como destino
Ser besouro pequenino
Num jardim sem flor nem vida

Inda traz uma viola
Uã dolência em servidão
Que nos dedo desenrola
Esta desamoração
Vai no mei da multidão
De visage que lhe assola
E destrava o nó que esfola
A mola do coração

19/09/18

sábado, 1 de setembro de 2018

SE EU TIVESSE O TEMPO DA INVERNADA

(Para meu irmão João, que se mudou de vez para os campos de São Saruê)

Se eu tivesse o tempo da invernada
Um chuveiro do céu desabaria
No sertão, sob o sol do meio-dia
Banharia a caatinga descampada
O roçado daria sem enxada
A boneca do milho afloraria
Jerimum no pau-darco enramaria
E o coentro encheria o chão da estrada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Cheiro verde, quiabo em carreada
No canteiro de cada moradia
O melão-caetano enfeitaria
E o maxixe engordando na ramada
Mandioca torrando na fornada
Mais que muita da roça chegaria
Macaxeira com nata troaria
No festim comensal da farinhada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

O algodão bem branquinho na almofada
A rendeira tramando em cantoria
E na reza tardã d'Ave-Maria
A fartura na voz gratificada
Sertanejo só quer terra emprenhada
Que a semente na mão transformaria
Sem pavor de estiagem ou carestia
Sem dever nem penar vida explorada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Trocaria o vaqueiro a disparada
Pelo trote macio atrás da cria
Folgazão, o alazão relincharia
No verdume da mata recopada
Toda rês passeando apascentada
Novilhada na coreografia
Cavaleiro sua veste trocaria
O gibão por cambraia entrecortada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Verde o pasto e gorda a galinhada
Criação solta em toda a pradaria
O jumento e o sapo, em cantoria
Caboré e carão na luarada
Carcará caçaria em revoada
Asa-branca a avoante ajuntaria
Leite, queijo, coalhada e ambrosia
Carneirada e cuscuz com panelada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Rapadura, cauim, quindim, cocada
De alfenim ruas pavimentaria
Cajuína das bicas verteria
De paçoca, o reboco da calçada
Cantador largaria a embolada
Pois a boca e o bucho encheria
Aluá do olho-d'água brotaria
Na vereda, no pasto e na picada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Flamboaiãs vermelhando em pleno nada
Mata branca não mais se chamaria
Um jardim aflorado de poesia
Brotaria no peito e na chapada
Pluma nova a cada despetalada
A pedra do lajedo adornaria
Xique-xique e mandacaru na pia
Teimariam na flor sua punhalada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Pescador mudar profissão sagrada
Saberia que não precisaria
Pois o rio, de fundo, afundaria
Tudo o mais que não fosse a luta honrada
Desse homem que, a cada tarrafada
Para casa, feliz, carregaria
O fremir escamado em prataria
O milagre da paz multiplicada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Sem credor nem exploração danada
O Nordeste então se livraria
Do grilhão que a fartura quebraria
E da dor da desolação finada
Sua memória seria adorada
Para cá, marchariam romarias
Sanfoneiro faria a liturgia
Cada alma, de amor, revigorada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Se eu tivesse o tempo da invernada
Estação sem colheita não teria
Toda mesa a família espelharia
Toda casa, não faltaria nada
Mulher, homem e toda a filharada
O futuro, enfim, contemplaria
A possibilidade da alegria
Viraria a certeza da jornada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

31/08/18