Número de sílabas (desde 11/2008)

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sábado, 10 de novembro de 2018

DOCUMENTO DO MAR

Houve um dia em que o mar se abriu sem cajados
E, depois disso, houve no fundo do mar uma reunião
Em que os homens, e os peixes, e os crustáceos
Decidiram a contragosto de Deus
Que não tinha permitido nada disso
Que, se havia havido um motivo para êxodos
Não haveria deuses no mundo
E que, se havia havido um dilúvio
Em que homens abandonados moraram com os peixes e crustáceos
E que todos esses foram ignorados na Arca
E que um bêbedo devasso determinara o futuro dos filhos de Deus
Também não haveria deus
E que, se a harmonia edênica
Havia sido posta inteiramente à mercê de uma curiosidade infantil
E que, se o destino da Criação houvera estado oscilando na língua de uma serpente
Que nem serpente era
E que, se o destino das mulheres
Havia sido determinado por uma costela masculina
Também não haveria Deus
Este, com D maiúsculo
Pois os peixes não tiveram sua raça multiplicada
Para alimentar famintos a fim de provar milagres
Posto que a luta no mar é dura demais
Para que se banalizem seus nascimentos
Nem bisparam sandálias sobre o mar
Nem emprestaram sua espécie para baleias leviatânicas
Que indigestaram Jonas
Nem acordaram com o ícone pascoal
Nem se hão suicidado graciosamente às bocas cristãs em Semanas Santas
Nem nada disso
Então, de acordo com o movimento ondular daquele dia
O ir e vir do mundo passariam a ser da conta dos mundanos
Que usariam dessa alcunha livremente
Que não mais perfurariam a Terra por fazer velas
Que nunca mais seriam queimadas ante cruzes
Ou túmulos
Visto que o mar é grande
E ressuscita todos
Quer queiram, ou não

10/11/18

ASSIM É A VIDA

Assim é a vida:
uma ponte entre duas culpas.
Cruzamos sedentos o rio da redenção,
— que chama ao suicídio coletivo
e é veloz nos afogamentos —
e estreitamo-nos,
e o atrito inevitável produz as faíscas
que deflagram diferentes incêndios.

2018

domingo, 28 de outubro de 2018

NOTA DE ENLUTAMENTO

(Manchas de sangue da travesti morta a facadas no Fortaleza Bar e Bilhar, no Largo do Arouche, SP. Clique na imagem para ampliá-la e aqui, para acessar o site.)

Este foi um dos anos mais difíceis de minha vida, e ainda faltam dias. Hoje, agora, sinto como se houvesse morrido alguém. Uma clausura entreaberta, de onde se sentem o cheiro do horror e o amargo de gritos retorcidos, é o que parece minha janela. Os fogos lá fora fumam à morte. Tudo sabe à morte. Os sorrisos, a histeria a dois dedos de explodir em um ataque de ódio simiesco. Nas avenidas, nas ruas da periferia, os bares têm gosto de morte. Pessoas atravessam as ruas como cães fugindo das toneladas automobilísticas, bólides do sangue urbano. Fogem da morte. Da sacada, um que queria ser militar para defender a pátria dos ladrões de bicicleta saca do 38 escamoteado da Feira dos Pássaros e atira para cima como se alvejasse todos os favelados do mundo, mesmo morando em favela. A noite se contorce moribunda. Estertora-se uma prévia de como será a agonia desta madrugada.
De fato, morreram muitos. Perdi um dos meus melhores amigos, também se foi o meu maior professor. Morreram outros. Morreu Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, morador de uma favela do RJ, por isso e por ser negro. Morreu Charlione Lessa Albuquerque, pacajusense, por manifestar sua cor vermelha e seguir sua estrela. Morreu uma travesti que não pôde ser identificada devido aos golpes de faca que levou no rosto e pelo fato de, para o Estado, ser apenas mais um viado na geladeira do IML. Morreu Mestre Moa do Katendê, baiano, 62 anos, 12 facadas nas costas destinadas a matar tudo que não fosse branco. Morreu Marielle Franco, vereadora carioca, fuzilada junto com seu motorista, Anderson Pedro Gomes, por amplificar a voz das minorias. Morreram outros, ainda. Morreram professores no fundo de seus corações. Morreram negros de todas as cores, morreram quilombolas, indígenas, ribeirinhos, morreram cristãos e ateus, gays e lésbicas, artistas, morreram todos em um lugar irreparável de seus espíritos. Morremos os nordestinos. Morreu Luís Inácio Lula da Silva no seu cárcere, cercado de indignidades e vulturinismos. Morre hoje também a democracia; esta, por suicídio. O Brasil morreu. Mas, que Brasil? O de Chico Mendes, o de Dorothy Stang? Esse Brasil nunca constou no rol da cidadania. Sua morte ou sua agonia não ecoam. Essa pátria sem bandeira vem sendo torturada a frio e a brasas nos camburões, nos quartéis da Marinha, no abandono das periferias e das cidades interioranas do Norte-Nordeste, que é a grande periferia deste país, há muito tempo, mas o tempo da dor causada não se conta. Não se mede a extensão do horror da inanição intelectual. Não se contabilizam os futuros esquartejados no entre-carros das cidades.
Talvez, o que se ouça sejam os gritos de paroxismo oriundos dos porões do Leviatã, reverberados no silêncio dos peitos quebrados, dos olhos arrancados, das genitálias queimadas. Talvez, sejam os gritos dos que sabem da morte vindoura, talvez, os dos que não nasçam. O fato é que a sensação de morte ultrapassa os túmulos e os gavetões dos IML. É palpável. Só nos resta a História, com suas lições de ressurreição. Só nos restam os livros que não foram queimados, os olhos que não foram arrancados, as mentes que não foram apagadas. Só nos restam o trabalho e a resistência de quem carrega nas costas a tarefa de repetir a lição. Talvez, haja num futuro não muito distante um obituário menos cruel e mais justo, e ensinemos o nome dos verdadeiros mortos a fim de que assim permaneçam.

28/10/18, 22h56min

domingo, 21 de outubro de 2018

JUÍZO

(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar informações sobre o artista)

As almas estão gordas, obesas,
mórbidas com seus 380kg,
prostradas nas bancadas pentecostais.
O banquete pago a dízimos
dizima fígados, entope as artérias,
ulcera os estômagos das almas,
que cagam dezessete vezes por dia
não pelo reto, obstruído de medo,
mas na mais imunda, abjeta e vociferante
coprolalia.

No céu — posta a imobilidade, lá chegam caindo —
dessas almonas brancas, espessas, celulíticas,
há um Deus ocre ainda mais gordo e suíno,
exsudando adiposidades neoliberais,
meritocratizando em sentenças:
“merecei!, tomai e comei, pois, da minha carne”.
No inferno, estão os outros; ele, não.
Não há diabo cá.
O inferno é feito de diferenças,
cada alma com sua exclusividade:
almas rosa, vermelhas, marrons e negras,
meias-almas,
almas secas, divergentes.
Todas refugiadas.
De cá, esperam por um juízo,
ainda que supremo, ainda que mundano,
ainda que final,
um juízo que desnivele os baixios desse novo céu
que se abriu nas profundezas
e que tudo traga como um vórtice,
na ferocidade do bem dos novos homens.

21/10/18

PESTE NEGRA

 (Guarda-chuva que foi confundido com um fuzil pela PM do RJ. Clique aqui para ler a notícia)

(Este poema é por Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, assassinado pelo Estado por ser negro)

A pele ictíica
A têmpora esponjosa
Sob a pele hematômica
Fibras imóveis permanentemente
Sujos a roupa, a carne, a calçada
O nome e a estatística
Grão de morte anônimo
No monturo da favela

Fora filho, pai, irmão
Só não fora gente
Elemento fora da tabela
Partícula substancial do povo
O oposto da utopia meritocrática
O incômodo trágico do liberalista
O cálculo renal da diurese urbana

Súbito
Encontrou a bala perdida
No diálogo entre o Estado e o povo
Alimentou, banguela, a cárie do Leviatã
E o telepronto vespertino
Acumulou circunstantes
Favoreceu discursos
Virou argumento de sargento
Em péssimo português técnico-instrumental

Fugira da escola
Que não o quis
Aprisionou-o a palavra
Óbito
Virou discurso jornalístico

Deixou gritos, silêncios e sirenes
Filhos reparidos em aborto reverso
Direto na barriga de Jonas travestido de baleia
Lá dentro, encontrou Nínive
Sodoma e Gomorra
E, no subdiluviano mundo
Jazeu morto
Mazela morta
Porém viva graxa preta
Nas engrenagens dolentes do intestino urbano

18/10/18

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

DESAMORAÇÃO

Ficou lá pelas quebrada
Mei da mata, oco do mundo
No moirão, mula arriada
Sem governo, o vagabundo
Que de si não tinha rumo
Nem no seu querer jornada
Que não fosse a esparramada
Água no poço sem fundo

Querer bem moça donzela
Tira do home a razão
Num sertão chei de janela
Curiando a sedução
Desatina o ser cristão
Esse mundão de tramela
Gera no peito uã procela
Põe na cela o coração

Sobrante a chama no esprito
Fria facada certeira
Fartante é a voz no grito
Que ecoa na caatingueira
Lamenta a voz verdadeira
Chora de vera o aflito
Traz no infinito o maldito
Ata na vista a cegueira

Vara o mundo a criatura
Vai de a pé ou cavaleiro
Sem sentir as rachadura
Dos gretado nos lajeiro
Sem comida nem dinheiro
Doente apartad' da cura
Que mora na fremosura
Daquele olhar feiticeiro

Vai vivendo o piligrino
A lonjura sem guarida
Cada légua, um desatino
Cada agrado, uma ferida
Leva a vida desvalida
De quem tem como destino
Ser besouro pequenino
Num jardim sem flor nem vida

Inda traz uma viola
Uã dolência em servidão
Que nos dedo desenrola
Esta desamoração
Vai no mei da multidão
De visage que lhe assola
E destrava o nó que esfola
A mola do coração

19/09/18

sábado, 1 de setembro de 2018

SE EU TIVESSE O TEMPO DA INVERNADA

(Para meu irmão João, que se mudou de vez para os campos de São Saruê)

Se eu tivesse o tempo da invernada
Um chuveiro do céu desabaria
No sertão, sob o sol do meio-dia
Banharia a caatinga descampada
O roçado daria sem enxada
A boneca do milho afloraria
Jerimum no pau-darco enramaria
E o coentro encheria o chão da estrada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Cheiro verde, quiabo em carreada
No canteiro de cada moradia
O melão-caetano enfeitaria
E o maxixe engordando na ramada
Mandioca torrando na fornada
Mais que muita da roça chegaria
Macaxeira com nata troaria
No festim comensal da farinhada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

O algodão bem branquinho na almofada
A rendeira tramando em cantoria
E na reza tardã d'Ave-Maria
A fartura na voz gratificada
Sertanejo só quer terra emprenhada
Que a semente na mão transformaria
Sem pavor de estiagem ou carestia
Sem dever nem penar vida explorada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Trocaria o vaqueiro a disparada
Pelo trote macio atrás da cria
Folgazão, o alazão relincharia
No verdume da mata recopada
Toda rês passeando apascentada
Novilhada na coreografia
Cavaleiro sua veste trocaria
O gibão por cambraia entrecortada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Verde o pasto e gorda a galinhada
Criação solta em toda a pradaria
O jumento e o sapo, em cantoria
Caboré e carão na luarada
Carcará caçaria em revoada
Asa-branca a avoante ajuntaria
Leite, queijo, coalhada e ambrosia
Carneirada e cuscuz com panelada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Rapadura, cauim, quindim, cocada
De alfenim ruas pavimentaria
Cajuína das bicas verteria
De paçoca, o reboco da calçada
Cantador largaria a embolada
Pois a boca e o bucho encheria
Aluá do olho-d'água brotaria
Na vereda, no pasto e na picada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Flamboaiãs vermelhando em pleno nada
Mata branca não mais se chamaria
Um jardim aflorado de poesia
Brotaria no peito e na chapada
Pluma nova a cada despetalada
A pedra do lajedo adornaria
Xique-xique e mandacaru na pia
Teimariam na flor sua punhalada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Pescador mudar profissão sagrada
Saberia que não precisaria
Pois o rio, de fundo, afundaria
Tudo o mais que não fosse a luta honrada
Desse homem que, a cada tarrafada
Para casa, feliz, carregaria
O fremir escamado em prataria
O milagre da paz multiplicada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Sem credor nem exploração danada
O Nordeste então se livraria
Do grilhão que a fartura quebraria
E da dor da desolação finada
Sua memória seria adorada
Para cá, marchariam romarias
Sanfoneiro faria a liturgia
Cada alma, de amor, revigorada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Se eu tivesse o tempo da invernada
Estação sem colheita não teria
Toda mesa a família espelharia
Toda casa, não faltaria nada
Mulher, homem e toda a filharada
O futuro, enfim, contemplaria
A possibilidade da alegria
Viraria a certeza da jornada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

31/08/18

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

DA PERTENÇA

(Para o meu compadre João, que virou música)

Nossa morte não nos pertence.
Conclui-se, portanto, que os que ficamos não comemos da carne
nem dos ossos,
a exemplo de urubus e hienas.
Matamos o intangível.

Não me importo com o espírito;
não tenho onde guardá-lo.
Ele está por aí, onde estive e nem lembro ou nem sei.
Ele mesmo não é meu.
Não o tratei bem.
É como um cão que fugiu, em quem a coleira só serve de insígnia:
tinha dono, coitado.

No dia em que nos reencontrarmos,
direi: ...
Não direi é nada. Terei vergonha.
Serei o medo do pai diante do filho abandonado
ou o nó na garganta do filho
seja de vômito ou de pranto
das saudades corrosivas e das palavras apodrecidas.

Contudo, aos que ficarão
caberá pisá-lo num cadinho com outras especiarias,
misturá-lo às lágrimas concernentes numa lama adocicada
com que, a despeito da incongruência,
untarão meu corpo
até que eu seja quem amaram, odiaram, esperaram e expulsaram,
numa forma totalmente diversa
de quem fui.

Se pertenço?
Pertencer é luxo de coisas,
e sou a ausência delas nos bolsos dos meus.

Guardo o ar no peito só pelo tempo de estar vivo.
Viver é suspirar.

29/08/18

sábado, 26 de maio de 2018

VAMPIRISMO

Existem dificuldades na vida de qualquer um. O tamanho delas é sim relativo à resistência e à resiliência de quem as encara todo dia.
Tenho as minhas.
Não espero que me ergam do chão nem que me sustentem do outro lado da corda.
Sim, sou orgulhoso.
Herdei isso de meu pai.
Sofro o mais silenciosamente possível.
O que espero daqueles que gastam comigo a palavra amigo é uma memória, um pensamento e, no máximo, um olhar de camaradagem. Empatia. Isso me basta, pois me confirma a amizade.
O que me revira as tripas é me chamarem amigo sem serem capazes de se solidarizarem não materialmente, mas sim (pois é o que me importa) humanamente. O que me enoja é a superfície, o chão ordinário onde arrastam no meio dos egos inflados a palavra amizade e o meu nome, encangados em filigranas e louçanias de falsidades. O que me esgota o espírito é esse egocentrismo radiado em teias que capturam somente o que é agradável ao paladar exigentíssimo de caráteres que espelhem apenas as anuências, as concórdias, os sim-senhores. Não sou comida de ego. Não sou alimento de aranha.
Meus amigos todos são indivíduos. Todos têm defeitos e peças faltantes. Todos são, à sua maneira, inadequados. Mantenho de todos uma certa distância, pois não sou fácil e não quero fatigá-los, mas olho para todos com olhos e coração. Sinto falta deles legitimamente, pois amo-os legitimamente e, também legitimamente, quero-lhes o melhor. Vale-me mais a mão que vai ao peito de seu próprio corpo em meu nome que aquela esfregada na perna da calça após me ajudar a levantar do chão. Sim, entendo a rejeição e aceito rejeitarem-me. É humana a fraqueza e é humana a covardia. Deixem-me onde estou, pois estes são os meus pés. Porém, olhem-me como seus corações me olharam quando estive ao seu lado e vejam quem sou. Não me ergam por obrigação. Nunca os reduziria assim.
Que não se desperdice, enfim, a palavra amigo. Se não os tem, guarde-a honestamente para si. Se é extensa a sua teia e numeroso o enxame de insetos nela, entenda que sou pesado e insustentável. Não me insulte com a magnanimidade de sua esmola falsa. Deixe-me, por fim, em paz, que a minha pobreza é o que tenho de melhor neste mundo de deidades.
26/05/18