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quarta-feira, 25 de novembro de 2020

CARTA-CRÔNICA AO MEU AMIGO JOÃO, ANIVERSARIANTE HOJE (NASCIDA DE UM DIÁLOGO COM NOSSA AMIGA NAIANA)

Gambiarra Blues Band - Foto: Bruno Marques.
(Clique na foto para ampliá-la.)
 
Fortaleza, 25 de novembro de 2020.

    Hoje, você faria cinquenta anos. Com o tempo, a distância entre nossas idades — a minha, 46 — se tornou irrelevante. Nossas experiências nos aproximaram, e nossas diferenças não eram maiores que um copo de cerveja. A música, em minha vida, ocupou vários corpos: primeiro, o de minha mãe, minha cantora do rádio; em meu pai, o baixo patriarcal cantarolando o “Zé Marmita” enquanto se barbeava; meus irmãos e irmãs, com o prenúncio do que me seriam a juventude e a rebeldia; e, depois de tantas pessoas, você, com o conhecimento e a vontade de fazer o que gostávamos de ouvir.
    Sinto falta, meu amigo, imensamente. Todos os dias, eu penso em você. Gravamos aquele blues no microfone do seu computador de mesa, ainda na época da Gambiarra. Um canal, microfone ruim, eu, na gaita, você, no violão. “Rascunho de blues” eu batizei. É minha música sagrada, é uma de minhas melhores memórias. Nunca mais toquei como então, nem minhas dúvidas historiográfico-musicais tiveram lugar em nossas conversas. Foi um silêncio que se instalou, foi a incomunicabilidade de uma grande amizade que não aceita monólogos nem simples remissões transcendentais. Como cantou Belchior, “eu quero corpo, tenho pressa de viver”. Comprei uma guitarra, tentei um aprendizado. Você falta aqui. Às vezes, toco um berimbau solene, o que me parece mais adequado. Acredito que você ouve, mas ri dos descompassos. E eu rio, acreditando que rio junto de você. Elaboro uma molecagem com os nossos amigos que estão aqui, e, ao compartilhar, faz falta encaminhá-la a você. Rio da risada que você daria. Todos os dias.
    Foram tantas músicas, tantas conversas, tanta intimidade e parceria que não houve jeito de você se acomodar em minha lembrança apenas, com a vida seguindo seu curso em outras mesas, outras cervejas, outras canções. Não deu pé, compadre. Contudo, a vida seguiu, ainda que capenga, e o 2018 provou ser o início de uma provação que você me anunciou, em todos os sentidos. Você anteviu até cinicamente o Brasil que nos esperava e alertou sobre a derrocada em minha vida pessoal. Foram como piscadelas que sinalizavam um segredo, e eu percebi. Você talvez só não imaginasse a dimensão do desastre. Depois de você, perdi mais, muito mais. Emprego, família, parentes, saúde, juízo. Perdi, no final de tudo, a minha vontade de cantar, de tocar, de criar música. Parece que tudo só era possível se canalizado por você. Nossos amigos estão aqui e por aí, dando aulas, escrevendo livros, musicando a vida o melhor que podem. Eu, não… Mas espero que saiba isto: por onde você esteve, só houve alegria, música, amizade e vida, muita vida. Sem você, haveria pouca felicidade que se lembrasse na escuridão destes dias. Espero também que me perdoe toda esta pieguice, estas palavras que foram tanto economizadas, e à toa… Nas minhas contas, faltam muitas cervejas a tomarmos. Não sei como é o tempo fora de mim, não sei nem se há alguma possibilidade de espera, mas, como só nos resta a esperança, eu espero. Espere você aí por mim, que eu chego já. Quero saber se São Saruê é mesmo bonito como você me descreveu. Até mais, meu irmão, e feliz aniversário.

Um abraço fraterno,

Fernando de Souza

25/11/20

CONJURAÇÃO

    — Tem coisa que é palavra demais.
    — Como assim?
    — Coisa que só acontece quando a gente diz.
    — Isso é conjuração, Alberto.
    — Coisa de outro plano…
    — Então, quando disse que me amava, foi pra acontecer ali?
    — Isso. No mesmo instante, aconteceu.
    — E quando a gente terminou, foi assim também? Que eu me danasse, que eu sumisse?
    — Não. Ali a palavra atrasou. Queria dizer eu te amo, mas não sei por que não disse. Acho que era pequeno demais.

25/11/20

POEMINHO VAGABUNDO

era um dia comum, banal,
mas banalzinho mesmo,
sem fazer falta ao calendário
nem dos santos nem dos pecadores:
um dia sem milagres, sem heresia,
vazio de horas,
um encadeamento de passos curtos
e dores nos pés.

somente à noite,
o tédio acumulado sortiu do espírito
um caco agudo de ócio
— lâmina primitiva do homem —
e sangrou da pele macilenta um poeminho
que dizia

“tenho pena das horas que me perderam;
nunca mais, vadias, nos encontraremos”

e o corte, torrente, exclamava do corpo estuporado
a indignação dos vagabundos:

— maldita és tu!, poesia,
sempre a forçar-se contra mim!,
sempre a arrancar-me os trapos!,
sempre a querer-me nu, a frio!,
sempre a tirar-me a fome,
que é tudo que tenho de meu!

24/11/20

domingo, 22 de novembro de 2020

CONTENDA


a vingança da memória
é matar o amor:
— ai, coração, tu
é que não sabes fazer outra coisa
senão matar-me todo dia…

21/11/20

QUESTÃO

Foto: Fernando de Souza
(Clique na imagem para ampliá-la.)

comovente e inútil,
ela, a poesia, acontece.
resta saber
quem por quem:
se o muro, cuja greta possibilita a flor;
se a flor, cuja vida dá sentido ao muro.

20/11/20

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

SEXTOU

 



28 DIAS (OU TUDO O QUE OLHOS COMPOSTOS DEVERIAM VER)

(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.) 
 

    Ponderava se era assim também com as outras: susto, fuga, risco de morte, velocidade e caos. Não frequentava enxames; era tímida. Voejava, quando podia, o mais lentamente possível para não cair, somente para sentir a vida fluir mais lentamente. Porém, a sua maldita natureza a compelia a extremos constantes, a vilezas e indignidades que suportava estoica, porém limiarmente. Queria ser como os marimbondos, autoenclausurados em seus arapuás, respeitados, temidos, deixados em paz. Ou, pelo menos, como as mutucas, suas parentas mais afortunadas e hematófagas, em sua rotina campesina de parasitar vacas e jumentos. A ela lhe deram os monturos, os excrementos humanos, os piores de todos. E essa insustentável vida de não-viver, de pária, de nitrificante alada da cadeia alimentar? E essa sua abjeta natureza, que sequer lhe permitia o suicídio — tentara bocas de fogão, pás de ventiladores, circuitos elétricos; seu corpo de reflexos autônomos funcionava à sua revelia, e a morte sempre lhe escapava, escapava inclusive quando lhe desferiam tentativas de mãozadas, raquetadas, envenenamentos —? Seu corpo era feito para a sobrevivência, e ela expiava na dúvida de uma eternidade daqueles sofrimentos e imundícies.
    Contudo, nas poucas vezes em que se permitia ajuntamentos, percebia sempre parecer o bando diferente, com raras e cada vez mais avolumadas exceções. De uma hora para outra, o corpo daquela uma cintilava cores diferentes, discernidas pela infinidade de seus olhos-colônia, subitamente curiosos, estranhamente interessados. Quase não reconhecia a familiaridade dela consigo, não fora pela química obscura que suas antenas e patas lhe comunicavam como tal. Já as outras lhe pareciam ser tão outras quanto possível. Estranhava também a absurda heterogeneidade naquela aparente monotonia de formas. Será que somente ela o notava? Não incomodava também às outras aquela eterna novidade, aquela coletividade harmoniosa de completas estranhas? Perguntava-se o que as unia além da involuntária irmandade de espécie. Não lhe era aceitável que a resposta fosse aquele ciclo, aquela rotina coprofágica, necrófila, carniceira. Seriam todas filhas da mesma mãe sob o sol de Deus apenas pela abjeção de suas existências? Seria possível que o que as igualasse fosse a miserável condição de marginalidade essencial, que não poderia ser romantizada nem na sacralização da morte conservada em alfinetes, como era privilegiada às borboletas e aos escaravelhos? Já os vira assim — pois seus olhos viam tudo, assim como sua teimosia o registrava numa memória que era mais rancor do que saudade — em breves clarões de luzes que intermitiam na frente das pessoas. Tentava compreender o fascínio que as luzes e as cores exerciam tanto sobre ela quanto sobre as pessoas… As pessoas! Várias de sua espécie eram mortas por elas a toda hora, por que não ela? Se bem que as pessoas, quando se agrupavam, pouco se distinguiam também entre si. Eram dadas a reuniões vorazes, quando, a bem da verdade, viviam o tempo inteiro sós. Somente lhes invejava a hipocrisia pela inerência do arbítrio que ostentavam. Queria ser uma pessoa, queria poder escolher, queria as opções. As pessoas possuíam o hábito que mais lhe agudava o desejo, com a pungência de um nó cego muito fino, muito entranhado, indesatável: elas se destruíam. Como desejava… Via-se trucidando todo o seu enxame com suas patinhas, vomitando-lhes seu ácido gástrico e lhes abandonando os corpos às formigas, sobre as quais planaria como uma ave, rainha, senhora da vida e da morte, das quais disporia como se de uma gravata ou de uma pulseira de prata. Queria ser como as pessoas, consciente e impune, assassina natural, fera temida.
    A brevidade de seus pensamentos era causada por sua própria condição física e social. Sempre que aprofundava um raciocínio, operava uma brisa qualquer, tinha lugar uma mudança de luz ou de temperatura, anunciava-se um movimento humano, premia-lhe a percepção de um alimento. A tudo isso seu corpo respondia prontamente, e o gérmen de ideia que a fazia tão diferente das outras se partia. Vivia de catar os pedacinhos e recompor-se eternamente uma criatura como idealizava que uma criatura tinha de ser: autoconsciente. A agonia só lhe era tolerável pela distinção que lhe dava entre suas pares: orgulhava-se intimamente de sua própria angústia, de pastar sobre a bosta não por vontade, mas por natureza, e de ser a única a saber, dentre todo aquele gado minúsculo, a diferença entre ambas. A derrota de sua vontade era a sua vitória, consistente apenas em saber de sua participação agente naquela luta.
    Sentiu, naquele momento, a vibração costumeira no ar a que seu corpo tão prontamente respondia e, antes que pudesse formular o pensamento habitual de contrariedade, disparou no caos como se nunca houvesse outra coisa dentro da qual estar. Porém, algo estava diferente. Tudo foi muito rápido como sua própria vida. Sentia diferente, e aquilo, que não tinha nome, converteu-se instantaneamente em frase. “Estou tão cansada…” Surpreenderam-na tanto o próprio sentimento quanto a capacidade de tê-lo. Dedicou-se pela primeira vez à possibilidade do gozo do momento seguinte, que se revelou não um fim, como temeu no primeiro susto, mas sim como um meio. Queria estar distraída, pestanejada, e podia deleitar-se na recém-apropriada consciência de que podia vencer a vida simplesmente abraçando aquela novidade.
    Seu pensamento não se havia partido como sempre. Conseguia pensar além daquela realidade entômica, sem que essa natureza lhe obstasse a razão. Entendeu finalmente a sensação de cansaço, leito em que se revirava entre lençóis rasgados a sua tão íntima agonia. Sentia-se banhada por ela, premiada pela indignidade de sua vida inteira: estava cansada, e essa concepção libertava-a das obrigações do corpo, da consciência do corpo, a qual, até aquele instante, tinha-lhe roubado toda possibilidade de transcendência, de apartação, de liberdade. Num instante, aprofundou-se vertiginosamente em outro caos, a despeito do ar. Parou. Estática, experimentou a sensação novíssima de não conseguir mover-se, embora a natureza em seu corpo a compelisse ao corisco. Ao seu redor, um único espectro dominava o panteão de cores que era capaz de enxergar — era ele também uma revelação. Sua carapaça vibrava, mas ela não se movia. Seus olhos compostos gritavam ao seu cerebrozinho que se aterrorizasse, e, a isso, seu corpúsculo lutava por converter o terror em voo, inutilmente. Ela não se movia. Fascinada, entendia pela primeira vez uma natureza sua que era superior à anterior, fazendo-a, assim, superior a si mesma naquela onipresença monocromática. Contudo, agradou-lhe algo remanescente de sua natureza original: não podia fechar os olhos. Felizmente, viu tudo. Na contagem normal, a humana, findavam-se ali os seus 28 dias. Na dela, tudo, absolutamente tudo se iniciava ali, enormemente como um voo em linha reta, lento e revelador.

05-06/11/20

terça-feira, 3 de novembro de 2020

RITO DE PASSAGEM

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    Este ano já me levou quatro: meu irmão Cláudio, minhas tias maternas Lourdes e Tate (esta última ajudou a me criar) e, no dia de hoje, minha avó paterna Jesuína. Não lhes fui aos velórios nem aos enterros. Enterrei-os e velei-os (exatamente nessa ordem) eu mesmo no que tenho de mais íntimo, no meu próprio chão, na minha própria capelinha. Foram cerimônias muito simples, quase anônimas. Somos todos anônimos na morte. Não faz diferença à matéria o nome que lhe damos. Os nossos nomes, os verdadeiros, não são passíveis de morfologia ou fonética, não cabem nos registros. Os nossos nomes são coisas que se sentem. São alegrias e tristezas, ódios, rancores, perdões. São presságios. São contemplações.
   Chegamos à idade de aguardar. Esperamos confinados, receosos, conformados. Abnegamo-nos de qualquer luta; apenas sobrevivemos e aguardamos. Porém, dentro de nossas salas de espera, entrincheirados, mascarados e besuntados de álcool em gel, corremos o risco ainda maior de uma rendição, essa, sim, irrevogável: o risco de desejarmos.
   Nesse caso, o encouraçado nuclear em que nos convertemos mira seus canhões aos faróis e torreões desprotegidos de nossa própria costa. O que resta de nossas praias, já sem sol e sem mar, traga como um ralo de areia movediça o acumulado de relicários que protegíamos — a última traição da terra, que se negou a ser chão à sua própria gente.
    Aquilo a que chamamos mal somos nós, morrendo a vida que levamos. Somos nós, permitindo-lhe a existência. Somos nós, adaptando-nos ao inadaptável: plantando e colhendo miséria à revelia do solo.
   É nesses ritos que eu ladainho a liturgia diária de sobreviver e enterrar, de indignar-me e envolver-me fetal no lençol velho, sudário sertanejo desse calor de fim de mundo. Não sei que deus louvo, não sei contra qual diabo peço proteção. Chegou o tempo de enterrarmos os nossos mortos, sem lágrimas, sem surpresas, mas com uma inquietação íntima muito própria da pedra que derrete na frágua, sem adivinhar se será ferro de grilhão ou aço de punhal.

03/11/20

domingo, 1 de novembro de 2020

MEMÓRIA DA PELE

 (Clique na legenda para acessar a página de origem.)

esta é a memória da pele:
do aço, a faca sempre deixa um pouco da pedra mansa
pavimentando o corte,
assim como há o mugido distante do boi
no sulco da chicotada,
e a sombra da árvore ainda entardece na solda do osso
partido pelo porrete.

a pele lembra melhor
à tarde, à tardinha,
quando os dedos buscam nela,
dedilhando notas casuais,
a música de adormecer o espírito.

31/10/20