Número de sílabas (desde 11/2008)

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quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

DO CORAÇÃO TRANSPARENTE


Jamais escreva com a tinta da dor
Ela é massa amorfa
Pérola barroca no ventre da concha
E no fundo do mar

Escreva invisivelmente
Não permita que nem seu coração o note
Deixe como que notas
Onde, um dia, o desaviso
Faça o texto

Só assim, desapaixonado,
Translúcido, anatômico,
Insensível,
Sensibilizar-se-á o seu coração
No dos outros

25/12/19

FELIZ NATAL


A areia sertaneja que o nordestino carrega na alma é a medida exata do valor de sua terra, mais mãe que as outras terras, porque seus filhos têm raízes firmes e profundas e sofrem e vicejam com ela sem abandoná-la. Podemos adornar o tronco e empenduricalhar os galhos, mas nossas raízes, no escuro, fornecem a energia da nossa luz. A todos os filhos da terra, um feliz Natal.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

FANTASMAS


    Estou plenamente convencido da existência dos fantasmas. Não falo de alma nem de espírito. Fantasmas. Aqueles de lençol branco, não, nem correntes. Acho que um morto tem muito pouco que fazer, aliás, nada a fazer. Os mortos gastam a eternidade tentando ser, eles gastam todo o tempo tentando ser. Dessa forma, acho que um morto não tem a intenção de metaforizar nada. Os males da vida e também os seus bens ficam na história, que já é um fantasma em si, mas de outro tipo, o que assombra, pois nunca existiu como deveria. A morte tem seus próprios sofrimentos, suas próprias revelações, sua própria dinâmica, que é incompreensível a quem não consegue enxergar as revoluções dentro da estagnação que é tudo o que não é aqui.
    Eles existem. Pensam, sofrem, amam, odeiam, gozam, entediam-se, acima de tudo, entediam-se e desenlaçam os nós emocionais a fim de tecer longuíssimas imaginações, cidades, continentes de tecido cosido de fiapos de fome e sede, inveja e desesperança, mas também de exaltação e euforia, orgulho e ternura, um mantel universal fruto de todos os escrutínios que existiram, e não esqueçamos aqueles que foram imaginados, as ilusões, ah, as ilusões... Há tantas, no fantasmário escalonado, que se confundem com a própria inexistência da matéria e dos movimentos.
    Tudo, para eles, é em desacordo com os movimentos. Houve um que me visitou, pensamento que era, quando eu estava ocupado em tentar não pensar, o que sempre dá muito trabalho. Invadiu, maçadoramente, minha tentativa frustrada de ausência e ficou a encarar-me, envolvendo-me com os fios que desatava e tecia na minha frente. Não fluía. Espalhava-se. Quando dei por conta, ele era uma série de pensamentos que não eram nem nunca foram os meus, sendo pensados sem a minha permissão, como um filme diante de mim num cinema sem portas. O fio narrativo que se desenrolava na tela e me envolvia vestindo-me, ao mesmo tempo em que me desnudava de mim mesmo, ia contando coisas que sucederiam possíveis apenas se fosse eu o roteirista da película, se, como num sonho, a irrealidade substituísse com a mais aceitável perfeição a totalidade da falta de estratégia do exército mundano das horas marchantes que é a minha vida, mas dando-me controle sobre o seu curso, dando-me a divindade de criar um mar e um vento, e pondo-me náufrago numa ilha de espectros mutáveis ao meu comando, na qual eu seria o imperador e o náufrago, o deus exilado. Nesse ponto, espantado com tanta liberdade, perguntei-lhe "isto é a morte?", ao que, numa gargalhada condescendente, silenciou outros tantos fios, todos coloridos com minha ignorância de tudo aquilo. Entendi a estupidez da pergunta, sentei-me na poltrona mais ao centro da sala e me deixei ser contado na tela.
    Mostrou-me misturas de sensações que nunca imaginei serem possíveis. No momento exato do medo, vinha a preguiça. Quando atingi a vertigem em seu máximo, deu-me a indiferença. Mesmo as cores e as outras percepções sensoriais que substituíam a imagem e a forma eram inéditas, impossíveis. O mínimo som que emanava metálico do que me parecia ser um carrilhão brotava do imprevisível, e onde deveria haver o subsequente espanto, instalava-se algo como uma memória embaçada pela vida, pelas formas que me cercam, pelos nomes das coisas. Eu mesmo, naquela narrativa, não tinha a minha forma nem o meu nome. Meu peso era aéreo, e eu respirava o líquido que era o ar. As chamas eram sedas cálidas, e o frio era agradável como uma tarde na praia. Havia, afinal, um enredo. O sol era uma ideia morna que eu deveria atingir, como um Ícaro exitoso. Porém, atingi-lo demandava esforço, e vários outros fantasmas que se desfiavam sólidos e inconstantes ora auxiliavam-me, ora me ignoravam, e a solidão como eu conhecia se personificava ao meu lado, um fantasma novo, sorridente e compreensivo, com o meu próprio rosto, dando uma nova perspectiva a cada fracasso. Ali, eu comecei a entender, estava a mensagem, impossível de ser dita, inviável de ser exemplificada. Foi-me assim instruindo que nada se opõe e tudo se complementa, existindo, ainda, independentemente, como os vários eus que todos os outros fantasmas se configuraram, trocando de lugar conforme a conveniência do que eu queria que acontecesse.
    Assim como num sonho, senti despertar ao fim do filme. Ali estava ele com os mesmos olhos, instruindo-me em silêncio que não devia procurar os pensamentos, que pensar é o mesmo que prender-se à cadeia do tempo. A morte tem a sua própria forma de viver, disse-me com os olhos. Hesitei em lhe fazer uma última pergunta. Queria saber se a morte seria uma sequência interminável de lições que daria a mim mesmo. Ele o percebeu como percebera tudo o que eu tentara pensar, desobedecendo-lhe. Isso lhe foi suficiente para antecipar-se numa nova gargalhada, ainda mais humilhante. Em seguida, foi-se da mesma forma como veio, incômodo e tirano.
    Deixou-me vazio, e senti que me roubara algo. Corri ao papel e tomei-me o pulso, medindo. Certificado, tentei escrever. Só então, percebi o que me fora furtado. Sem que eu me desse do que ele pretendia, ao me encher de significados, não me dera palavra alguma que lhes fosse corpo, e nenhuma das que possuía se prestava ao trabalho. Ali, entendi. Deitei, epifanizado. Fantasmas existem sim. Não têm nome, não têm forma, não têm idealização possível. Mas existem mais reais que a sua própria ausência, que somos nós e que é a íntima essência da vida.

15-16/12/19

sábado, 14 de dezembro de 2019

A SOBREVIVENTE


    Eu já ouvi que era uma adolescente com a simpatia de uma velhinha. Queriam dizer, talvez, que meu comportamento não era atrevido nem arrogante como o das minhas amigas de então — porque essas coisas de amizade mudam! —, cheias de bravatas e crueldadezinhas com todos. De fato, eu sempre achei essa vitrine espinhuda em que as meninas costumavam transformar sua fala, seus gestos e suas atitudes um artifício tão pobre, um desperdício de ironia existencial tão grande A maioria era frágil, gentil e carente como é o natural nessa idade, assim como os meninos também, inclusive. Todavia, com estes, a vitrine era uma hipérbole macaqueada do que eles achavam que um homem deveria ser. Sempre achei que era mais prática a transparência prudente; e mais segura, a verdade encarada no espelho.
    Hoje isso me lembra minha avó, D. Menininha, que morreu sendo chamada por esse apelido, o qual carregava o sentido exato do que ela fora a vida inteira: uma ispilicute.  Minha avó foi uma ispilicute mesmo inválida em sua cadeira de balanço, no sopé da calçada alta, implicando com o povo da rua, dando coió para espantar morcego e fumando escondido até a morte um cigarro pé-duro que ninguém sabia como obtinha.
    — Invente seus mistérios e me deixe com os meus, Ritinha.
    Esse foi o melhor conselho que recebi na vida, junto com o outro de procurar homem só pela manhã.
    — É quando eles traem, minha filha. Melhor lado do chifre é o lado de fora. E procure homem da perna fina. Trabalha, que é um danado

    Adaptei esse conselho ali pelos catorze, quando dei em cima de alguém pela primeira vez. Maria Luíza, um chuchu. Perninha fina, mas uma cinturinha
Fiquei com vontade de contar para minha vó do alvoroço, da lambança de quem faz sem saber o que está fazendo, do susto e da carreira, da risadaria e do gozo, o primeiro de vera, o que me abriu uma greta lascada na pele e no juízo, que eu tinha de preencher pelo menos uma vez por semana, senão ficaria doida. D. Menininha nem sabia como era certo aquele conselho das pernas. A pessoa é mais ágil, sem ser bruta, é leve e maleável, sabe intuir onde colocar o corpo, uma delícia. Perna grossa vem normalmente com uma modorra inata, uma leseira, um arrastado de chinela. Peguei mais regra que exceção, posso afirmar: mulher de perna grossa só presta para homem.
    Malu foi a primeira que me disse aquilo de parecer uma velhinha, numa tarde de um falso trabalho escolar no seu quarto cheio de pelúcias. Ela queria dizer que eu era mais experiente, imaginei na época, mas depois a entendi. Isso de não fingir ser outra pessoa, não dissimular esse eu-mesma, que era de acordo com o ela-mesma, me atribuía uma aura de alegre segurança, me incluía num grupo do qual eu não escolhera fazer parte, mas já fazia: o dos guias, o dos conhecedores dos caminhos. O que aconteceu de verdade foi que eu intuí tanto quanto a Malu todos os toques, o tempo certo em que as minhas mãos deveriam ficar entre as suas pernas, a sucção adequada para cada beijo e chupão, a quantidade perfeita de saliva em cada linguada. A diferença foi que eu agi com a mesma naturalidade de quem faz uma traquinagem qualquer, como tocar a campainha da dona Lourdes — que a havia instalado para estabelecer a diferença entre ela, que se arrogava ares de evoluída, e nós, o canelau, os zés-povinhos —, a única que havia naquela época, e sair correndo, calculando o tempo e a velocidade, o risco e o prazer, e tudo isso com a consciência da subversão e sem me questionar um só segundo sobre a simbologia ou a aceitação daquela molecagem pelos adultos, o que sabiam os adultos de ser criança?, o que uma criança deveria sofrer por ser quem é? Foi assim, como uma perna que se põe após a outra numa carreira desabalada, que eu descobri a doçura do proibido e a urgência de mais, porque aquilo era eu, e aquilo era muito bom.
    Não foi fácil, contudo. Guaiúba era, naqueles anos setenta, a despeito de ser um interior perto da capital, de um atraso pouco possível de ser imaginado hoje, mesmo com este retrocesso mental que ascende contra pessoas como eu. O que hoje escandaliza era usual na época, era encartilhado e ensinado na fala e no cinturão. Escondi muito bem meu romance com a Malu, mesmo quando estávamos ulceradas pelas brigas que depois levaram ao rompimento. Escondi bem, porque possuo a arte de encaixar minhas máscaras sociais firmemente e de trocá-las com perfeição. Para meus pais, eu era só a moleca cheia de meiguice, estudiosa, boa filha, menina direita, porque era isso que eles precisavam saber de mim, e essa era a minha verdade para eles, a única. Não precisava ser
com outras pessoas quem eu era para a Malu. Para ser lasciva, depravada, puta, mulher, eu já tinha a Malu. Ninguém mais precisava me ver daquela maneira. Entretanto, já queria… Olhava as outras meninas da escola, fingia-lhes amizade para sondar possibilidades.
    No entanto, D. Menininha, por trás de sua quase cegueira desdentada e entrevada, me sentiu os guardados. Talvez pela sua própria experiência com a sexualidade, que continuo imaginando ter sido uma sequência de violências e resistências — porque ela, apesar de um conhecimento doutoral no assunto, que não hesitava em passar adiante desbocadamente, não falava do meu finado avô, por respeito ou nojo, os quais ela nunca deixou ninguém discernir exatamente, resguardando-se nessa dúvida —, ela adivinhava que eu já teria experimentado homem.
    — E aí, minha filha, já tá mexendo direitinho?, perguntava com uma cumplicidade e uma malícia que me emocionavam, porque eu sabia serem, daquele jeitinho dela, só para mim.
    — Oxe, vó, e eu lá mexo em nada? Sou bem quietinha, respondia no mesmo código.
    E ríamos, e assim nos entendíamos, cifradamente. Ela sabia de maneira sangrenta o preço da liberdade, pois esta lhe havia custado tempo, saúde e juízo, e, por isso mesmo, cuidou muito bem da minha durante aqueles dois anos em que o amor e o sexo cresceram em mim, e eu floresci. Quando ela morreu, experimentei uma solidão e um abandono que me amadureceram quase instantaneamente. No fundo da minha rede, enlutada, rasgando o desespero de uma órfã, acabei esquecendo a hora certa de trocar a máscara, e aquele rangido de dentes deu por faiscar na mamãe o corisco da desconfiança. Ela sempre soube que eu era mais próxima de sua mãe do que dela mesma, não que ela não fosse amorosa ou que fosse uma tirana, mas, simplesmente, porque estar ainda encoleirada ao meu pai limitava a mulher que ela era, e isso abria um abismo entre a sua subserviência sublimada e a minha liberdade vivenciada.
    Mamãe era um bastião, um arrimo, a viga mestra da casa. Papai, ocupado com a criação e com o açougue, homem honesto, muito limpo, bigode calado, devoto da Virgem, só era pai no manter-nos e no prover-nos. Éramos dignos em nossa vida de família pequena: eu, filha única, devido a mamãe ter perdido o útero no parto, eles e vovó, única sobrevivente de uma longa linhagem de maus-tratos. Isto ela ensinara à mamãe: “Pra mão de macho levantada, tem peixeira na cozinha. Ai de tu, se ficar igual a mim”. Sua filha, talvez por amor ou pelo buraco deixado pela morte do meu avô, anuíra a tudo, à simplificação, ao silêncio, até à usura, mas seu temperamento havia deixado bem claro a papai que, se ele sinalizasse qualquer menção de agressividade, não viveria muito. Eles haviam se casado logo depois que meu avô morrera por infecção generalizada devido ao cancro que contraíra nos puteiros e nas cocheiras de Guaiúba e Pacatuba, em cima e embaixo, de um lado e do outro da Aratanha, e só o fizeram porque, se ele ainda estivesse vivo, não o permitiria. De fato, namoraram em segredo, acoitados por vovó, que tentou fazer com minha mãe o que fazia comigo. Ela só não adivinhava que o temperamento medroso e adolescente do meu pai viesse a se transformar numa beatice azeda e numa anulação paulatina da mulher que minha mãe poderia vir a ser. Talvez, ele tenha se tornado assim para compensar o tipo de homem que meu avô era. Na tentativa de criar o seu oposto, assemelhou-se a ele, exceto na violência, a qual era tão típica sua que o fizera temido na região toda e, eu soube bem mais tarde, o havia tornado mais de uma vez contratado pelo prefeito para matar opositores, o que nunca lhe foi atribuído às claras devido ao temor criado pela sua figura alta e vermelha, seca e viperina. Dele herdei os olhos verdes e a chumbregagem, que já me latejava entre as pernas e viria a jorrar em xiringadas de sangradouro pouco tempo depois, quando vim dar em Fortaleza, à ocasião de minha fuga de casa.
    A cumeeira alta, ornada de morcegos amofinados, foi a testemunha. Mamãe chegou, olhou aquela desesperação de dois dias primeiro com piedade, com maternidade. Puxou o tamborete, sentou, esperou. Na ocasião da morte do pai, a culpa de havê-la desejado assombrava-a e lhe atravessava a barriga e lhe rasgava a garganta. Havia dor e amor em seu olhar, quando eu o encontrei. No meu, onde ela imaginara encontrar um semelhante ao dela, surpreendeu-a o medo. Mamãe não era boba. Sertaneja, silente uma vida inteira de suas dores, havia aprendido a ouvir bem os silêncios alheios. Adivinhava traições, anunciava intenções de crimes, compreendia martírios. Era mulher de ouvir escutando com os olhos, com a pele, a temperatura daquilo que lhe diziam e a frieza do que lhe calavam. Súbito, carregou-se de outro silêncio, beligerante, ameaçador, um silêncio de mãe. Olhou-me de cima abaixo, arrastou-me para fora da rede e começou a me arrancar as roupas, ao que eu, também já versada naquelas necromancias femininas em meus dezesseis anos, ao não me opor, ao não me proteger, dizia-lhe que nada encontraria. Mas ela já sabia que ali existia outra filha, uma que traíra, que dissimulara, ela não sabia o quê, mas estava ali, na carne, mesmo com a presença do cabaço, havia já uma mulher ali, onde ainda não deveria haver.
    Gritou-me por fim todos os nomes. Ameaçou-me de morte. Trancou-me no banheiro, onde me encolhi encostada na parede da cisterna. Abraçada aos joelhos, olhei a cuia velha pendurada na parede, olhei as teias recentes ainda vazias de muriçocas. O banheiro era frio como o riachinho que dividia o terreno da casa com a mata que antecipava a Serra. Eu também estava fria. Ali, sem saber, já havia decidido um fim, também não sabia de quê, mas amanhã eu não seria mais eu mesma. Malu me cobrava os olhares, os silêncios, as pequenas manifestações do que eu viria a ser, e aquilo me enervava como um cabresto que me queriam pôr. Sua família nem sonhava, graças unicamente à minha proficiência na dissimulação, que nos azunhávamos no quartinho, cavando a pele uma da outra, buscando o gozo da primeira vez, poucas vezes reencontrado. Contudo, aquilo, ao mesmo tempo em que me atava, começara a me enojar pelo mesmo motivo, e esse binário de opostos, somado à morte de minha avó, foi o que minha mãe quase adivinhou.
    Acalmei, entrei na cisterna, coisa que já havia apanhado para não repetir — “E nos outros que vão tomar banho, tu não pensa não?” —, e me entreguei àquele frio até os ossos, esperando o que já sabia. Meu pai chegou, minha mãe lhe expôs o caso, longo silêncio dele. Apesar de ele vestir a tradição de usar as calças na casa, temia de certa forma as três mulheres que viviam ali. Protegia-se naquele silêncio masculino, patriarcal, onipresente mesmo na ausência. Mas nos temia. O silêncio era o seu jeito de ser homem e de ser pai de forma efetiva e definitiva: o silêncio, naquela casa, não deixava dúvidas. Eu não sentia medo, mas sim uma espécie de ansiedade. Assim como minha mãe, eu adivinhava, e precisava daquela culminância que mudaria tudo. Nem cuidei de desfazer o engano, e, se o tentasse, de nada adiantaria. Mesmo constatando minha virgindade, minha mãe estava convencida de que eu já era mulher, e foi isso que meu pai entendeu.
    — Maria Rita, se vista.
    Minha mãe, com minhas roupas na mão, a porta entreaberta.
    — Seu pai quer conversar com você.
    Pelo vão, vi meu pai sentado, já com o relho de dar nos jumentos pendurado no pulso direito. Imediatamente, lembrei minha avó, mas não com o desamparo de havia pouco. Lembrei as vezes em que ela me dizia, repetindo as orientações que dera à mamãe: “De homem não se apanha nem na putaria”. Arregalei os olhos, e o ódio me tomou inteira e me levantou da cisterna, ensopada, tilintando de frio. Abri a porta, nua como estava, e desafiei, a boca crispando as palavras metálicas, inesperadas, firmes naquele tremor. Eu era já alta, e meu corpo já havia se arroliçado na formosura e na força. Meus olhos, como os de meu avô, eram dois punhais de esmeralda apontados na direção do meu pai, que lhes sentiu a pungência e calou o próprio silêncio, engolindo-o seco e engasgando-se numa tosse de cachorro que o fez sentar de novo, a mão no peito, a cara amarela.
    — Venha! Venha! Venha, se for homem!
    A isso, minha mãe, a boca aberta, avermelhada de repente, entendeu. Ali havia, sim, uma mulher, mas de outra forma. Não pelas mãos nem pela jeba de um homem, como havia sido com ela e como ela intuía. Eu era a mulher que ela poderia ter sido, eu era a antagonista do meu avô, eu era a força que ela nunca teve, a força que roubaram à minha avó, D. Menininha, a força que havia nascido da liberdade do corpo e da aceitação orgulhosa do espírito.
    Durou um instante apenas. Ela correu ao meu pai, que arquejava o malassombro de ser impotente diante daquela mulher-homem, como que para acudi-lo, mas, em vez disso, arrancou-lhe o relho do punho e surrou-me gritando, como um porco em agonia, “Morre, morre, morre!”, e me batia cada vez com mais fúria. Como o escrúpulo havia cedido à animalidade, ela não escolhia um alvo, como acontecera nas poucas vezes em que me surrara, quando mirava minhas pernas e minha bunda. Nas suas convulsões de égua, acertou-me um olho, que vazou imediatamente, lacerou-me os seios, esfolando-lhes os bicos com a ponta do chicote. Meu pai, de boca aberta, apavorado, gemia infantilmente que ela parasse, que já estava bom, que eu já tinha aprendido. Ela não parava. Ensanguentada já, acocorei-me e lhe cedi as costas, que receberam uns bons minutos de lambadas. Quando tudo acabou, foi a sua vez de desfalecer, mas de exaustão. Caiu no chão ao meu lado e foi socorrida pelo meu pai, que a levou à cama deles, me gritando que lhe levasse uma água com açúcar. Eu ardia. Juntei o que podia dos panos que estavam ali, me arrastei até a arca onde guardava minhas roupas, vesti uma bonitinha, de que Malu gostava, era a que estava mais em cima.
    Hoje, relembrando esse dia, não sinto remorso do derrame que vitimou minha mãe nem da depressão que meteu o meu pai na cachaça e o levou a uma morte solitária, somente descoberta bem depois, pelo mau cheiro na casa. Nunca mais vi Malu, a única que me negou guarida depois de minha fuga. Dei-lhe à porta, mais molambo do que gente, ao que ela gritou, primeiro de terror, depois de medo, “Vai embora, sua louca, meu pai tá aqui, vai embora!”. A bem da verdade, eu não havia ido a ela por motivos românticos. Hoje eu sei disso. É que a dela era a única casa com cujo endereço eu atinara, de tão esgarçada que estava. Seus gritos me despertaram, e o meu olho bom deseclipsou-se daquela sangria. Meu corpo vermelho de sangue debaixo do vestido amarelo me deixava com o aspecto de um enorme crisântemo no batente alto daquela casa. Passaram, me viram, me socorreram, quiseram prender meu pai, e só não o fizeram por se apiedarem daquela sua viuvez imediata. A tragédia virou causo, e falavam de minha mãe como de um fantasma, uma visagem que vinha surrar as filhas desviadas por macho. Sim, porque, para todos, aquilo havia sido por causa de um macho.
    Se me perguntassem hoje, tantos anos depois, eu diria que fora justamente pelo oposto. É uma pena que não haja ou eu não conheça uma palavra que signifique o oposto de macho. Não, não é fêmea nem é mulher. Homens e mulheres não são opostos, eu sei, provei ambos. São apenas dois universos diferentes, com um balanceamento diferente de forças e magnetismo. Entre os corpos celestes, o vácuo é o mesmo para os dois. Não, não faltava em meu pai a masculinidade que abundava em meu avô. Tampouco, havia em mim um excesso de mulher do qual carecia minha mãe. O que havia naquela casa era uma despolarização, uma desarmonia, uma balança corrompida que igualava a desigualdade de três contra um. Havia um organismo guenzo, uma deformidade da qual eu sou o único fruto e a única sobrevivente, condenada e abençoada a ser o oposto de mim mesma em cada corpo que possuo e ao qual me entrego. Justo eu, que nunca me neguei no espelho, vivo hoje a eterna aventura de me descobrir sempre diferente, sempre outra, como se fosse a mim mesma que eu buscasse nesses corpos. Mas eu não quero isso de me encontrar, não. Tomara Deus que, em vez disso, eu encontre de novo D. Menininha, fumando seu cigarro misterioso, enxuta mesmo sob aquela minha saudosa chuvinha serrana, sorrindo banguela um deboche qualquer, que eu completaria com uma gaitada que nos irmanaria e encaixaria de uma vez por todas e para sempre.

14/12/19

domingo, 8 de dezembro de 2019

O MILAGRE DE SANTA CLARA


    — Olha aquele um: não foi marcado. Feliz, sem marcas, quase santo. Nesse aí, a vida errou o tiro.
    — A vida não mata com bala não. Isso é sonho, Francisco. A vida mata lento, e é com veneno, e veneno no homem pode ser na veia ou na ampola. Esse não tem cara de quem porta porque administra.
    Sempre achei que era branca a pessoa da morte. Francisco ria disso e me dizia que a vida é que era branca, e os homens a sujavam. Esse outro lado que jamais atingiria me divertia nele. O amor é algo que também mora nesse outro lado. Ele era cheio de sorrisos venturosos, um peito de passarinho. Dizia em meus ouvidos que toda melancolia tinha o seu mel, e que eu era a “sua melancolia”. Francisco era um ponto brilhante que eu orbitava encolhida, enegrecida de sombras e crateras carbonizadas.
    Olhei de novo o homem, mais atenta, enquanto Francisco me recitava versinhos do Jeneci. Realmente, ele parecia uma versão definitiva e irretocável do Francisco. Era velho sem ser gasto, era branco e iluminado, andava como se se espalhasse pelo caminho e se tornasse mais completo a cada passo. Acredito que os polos, as extremidades de tudo, de alguma forma se encontram num paradoxo perfeito em algum lugar. Se aquele homem era, como dizia Francisco, um não-marcado, ele era, segundo eu mesma, todas as dores juntas. Contudo, o que era, naquela situação, diferente de nossa habitual discordância das coisas era que eu não acreditava que as marcas nele eram dele. Parecia que essas marcas eram aquilo que ele espalhava, tornando-se mais belo à medida que regava o mundo das dores, sombras e crateras que eu conhecia tão bem.
    Francisco, ele, sim, era um santo. Conversava comigo como se eu fosse um bichinho, punha flores em meus cabelos no final de um dia de trabalho. Aquela semicalva também parecia a do Santo, o Outro, e eu gostava de fingir arranhá-la com minhas unhas. Foi ele quem me ensinou a olhar o sol na hora certa, a tomar cerveja na hora certa, a fazer amor na hora certa. Talvez fosse isto o que me dificultasse amá-lo: não me sentia transformada, mas sim consertada. Aquele excesso de luz me aniquilando a escuridão acabava por tirar de mim o que poderia me fazer sentir-lhe amor: a necessidade. Francisco era onipresente. No universo, a escuridão é onipresente. A luz é que é pontual como postes iluminados numa estrada noturna e sertaneja, saindo ou entrando nas cidades. Naquele universo franciscano, a luz era insidiosa, e eu era obliterada em vez de iluminada. E eu sabia que não era assim com aquele velho. A luz que vinha dele não me obscurecia; eu era atraída por ela. Aquele homem branco era, sim, a morte, eu sabia. Sabia porque, quanto mais eu o olhava, mais eu mesma eu me sentia, e era tudo de uma claridade que não me matava, como a de Francisco fazia, mas que me revelava. Enquanto Francisco ia me contando das cores do sol na linha do mar atrás de mim, servindo como assento no qual me recostava na Ponte Metálica, eu ia me sentindo mais nua e distante, olhando para aquele homem branco passeando calmo na noite que purpurejava o céu crescente diante de mim. Aquele homem era a morte porque não me matava.
    — Francisco, eu preciso andar. Vamos até o Joca? A gente vai pela areia, molhando os pés.
    Isso era entrar na noite que entrava na cidade.
    — Vamos. De lá, a gente vai pros barcos, talvez ainda tenha camarão.
    Incomodou-me um pouco ele aceitar. Tinha a esperança de que ele dissesse não, e eu diria que tudo bem, que iria assim mesmo, que ele poderia voltar, que ele não me fazia falta, que eu não o queria. Encandeada, eu fui. Sabia que o velho tinha ido por ali. Sabia que eu tinha esse dom de rastrear gente, de farejar gente igual a mim. Talvez conseguisse. No mar, ele não entrou, estava em roupa de passeio. Há quem se banhe à noite, ainda mais naquele novembro quente dos infernos. O mar de Fortaleza tinha essa propriedade de esquentar o frio e resfriar o calor, além de ser um limite que só transpassam os barcos e os suicidas, e ele não era nenhum dos dois. Por que eu queria alcançá-lo? O que eu faria, o que eu diria? Diria? “Oi, boa noite, o senhor é muito bonito”. Ele não era bonito; era outra coisa. O que eu sentia era outra coisa. Não o queria como homem, não lhe cobiçava o corpo. Eu queria mesmo era perguntar “Oi, boa noite, o senhor me leva?”. Preciso ir. Preciso me escurecer de novo, preciso de mim negra para poder olhar as estrelas. E Francisco? Francisco era bom. Eu não o apagaria.
    — Você quer dar um mergulho?
    — Eu, não. Por quê?
    — Tá muito quente. Olha aquele lugar ali. Tem pouca gente.
    — Francisco, e se eu quiser, mas não contigo?
    — …
    — É, sozinha. E se eu quiser entrar, e não voltar?
    — Tá, tudo bem, a gente não vai. Não precisa apelar. É que a gente já andou tanto…
    — É, a gente andou muito. Aqui tá bom. Consegue uma água de coco?
    — E uma cervejnha?
    — Pode ser. Deve ter vendedor de camarão por aqui. Já vi gente vendendo ali, no Espigão.
    E se eu aproveitasse e entrasse mesmo? O homem branco deve estar lá… Ou chegando. Sei que andei mais rápido que ele. É quente mesmo, Francisco tem razão. Se bem que, sei lá… Estou respirando melhor. Nesse céu sem nuvens, já dá para ver as estrelas, apesar da cidade. Por que tem tanta luz em toda parte? Isso sufoca igual aos fios e aos postes e aos prédios. Igual ao Francisco. Sozinha, seria bom entrar. A água está boa, quase não há ondas. Aliás, nas ondas, eu penso melhor. Já consigo pensar melhor. O barulho das ondas não vira palavra, e a palavra atrapalha o pensamento, o verdadeiro pensamento. As palavras pesam como âncoras, como a que prende aquele navio lá… O barco lá longe, que, no mesmo corpo, espera e parte, sou eu, um estado fixo e itinerante, esta vontade de ir, indo, mas estática, ancorada, contemplando a jornada. Falar atrapalha a viagem.
    — Aqui, o coco. O rapaz lá vai trazer o camarão e as cervejas junto.
    — Então, pra quê o coco?
    — Ué, você pediu, ora. A cerveja foi ideia minha.
    — E o mar?
    — Olha aquele navio ali. Deve vir carregado de quinquilharia. Nessa recessão, é só o que se consegue vender. Deve ser bom ficar parado no mar, o vento, a espera… Sabia que, dependendo de onde eles vêm, eles podem esperar mais tempo pra aportar do que pra chegar aqui? Se vierem do Recife, com certeza… Olha, viuvinhas. Deve ser época de tatuí. Nem sei como ainda tem, com essa poluição.
    — Eles se adaptam, eu acho.
    — Olha aquele senhor de novo. Olha, sem preocupação, sem peso… Acho que não é rico. Gente rica anda torta ou dura, desfilando pra ninguém.
    — É…
    — Ué, não vai discordar não? Você tinha dito que o homem carregava veneno.
    — Acho que tem mais veneno no barco.
    — Opa, chegou a cervejinha, E o camarão. Valeu, irmão. Pedi pra você também, Clara. Olha, até o senhor lá vai dar um mergulhinho. Também, com esse calor…
    — É. Agora eu quero também. Vamos apostar quem nada mais longe?
    — E nossas coisas?
    — Deixa com o moço da cerveja.
    — Tá, mas isso de nadar…
    — Qualquer coisa, você me salva.
    — Certo.

08/12/19

sábado, 30 de novembro de 2019

O CAFÉ DE ACÁCIO


    O café descia quente como um abraço. Era frio onde vivia. Quando descia à cidade, tinha a sensação de que o dia o abraçava, e essa sensação era nada mais que isto: uma vaga ideia de quentura, conforto e excitação açucarada. Nunca vira seus pais se abraçarem. Nos poucos domingos em que foi à missa, em dias santos ou em ocasiões de sétimos dias, sentiu que as pessoas tinham uma espécie de medo físico inconsciente, uma íntima rejeição da suavidade. Os diálogos eram brutos, peremptórios. Os apertos de mão, violentos, quase como uma pequena contenda entre as partes, cada uma agredindo a outra com toda a tradição que carregava no peito, nos ombros e que canalizava às mãos impositivamente. Dessa forma, cresceu sem memória de afeto físico, sem memória mesmo de verbalizações de afeto.
    Olhava as poucas pessoas que encontrava no seu dia a dia de roceiro filho de roceiro com uma curiosidade alienígena. Ou eram os freteiros semanais que subiam a Aratuba, descendo de volta, em suas caminhonetes, o que plantavam, ou os vizinhos, se é que se poderia chamar assim a semiparentada residente a uma légua uns dos outros, no mínimo. Quando criança, havia mais encontros, nos quais ele e os outros meninos animalizavam-se nas várzeas e às margens do riacho, caçando teiús e matando rolinhas, degolando calangos e estourando cururus. Nessas brincadeiras, os mais velhos, iniciados na usura da adolescência, fumavam escondidos e tentavam descobrir quais dos mais jovens permitiam, por inconsciência, curiosidade, inatismo ou mesmo inação, um falso troca-troca, do qual estes sempre saíam em prejuízo. Quando eram identificados, os cus-de-bacorinha passavam a ser uma espécie de bem comum, sempre ausentes, sempre misteriosos e temerosos do seu novo segredo. Lembrava que o Totim Avelino, depois de iniciado, adquiriu uma atitude que variava entre o comportamento de um maracajá e o de um gato comum. Tornou-se desconfiado e arisco, mas também manhoso e dissimulado, porém, ainda assim, não conseguiu ver nele um café que pudesse tomar, nem quando ele mesmo adolesceu, e esburacava as bananeiras para satisfazer-se. O que não entendia era que o Totim, assim como o Macedo, depois que cresceu, deu para beber e virar mesa, sempre odiento, e, diferente deste, que morrera em briga de faca numa ocasião em que lhe chamaram burra-mole, fez-se respeitar pela vileza e imprevisibilidade.
    Assim, deu-se pelos seus doze anos de autoindulgência manual a inexistência do conhecimento alheio de sua pele, anos esses que, somados aos de sua infância, a qual acabara quando da morte de sua mãe, resultavam nos vinte e um de uma vida seca no meio da fartura fria daquele sertão de estranhamentos e sovinarias. Aconteceu então de, na antevéspera do dia que marcara para descer à cidade a fim de comprar as varas de cano de irrigação que substituiriam as estragadas pelo lodo e pelo sol, surpreenderam-no quatro criaturas como nunca vira, mais coloridas que as tangerinas, as mangas-rosa ou qualquer outra fruta dali, todas de peles rabiscadas e pintadas, divididas em dois casais de óculos escuros, carregando nas costas enormes mochilas com ganchos e varetas e cordas e penduricalhos, cantando-lhe — pois nunca imaginou que se falava com melodias — se poderiam acampar naquele terreno, que era seguro, próximo da água e mais quente. Demorou a responder que sim, numa trapalhada verbal espantada, desconfiada e maravilhada, pois nenhum dos argumentos que enumeraram fazia sentido. Quanto mais reparava neles, mais se impressionava e menos articulava, o que os fez pensar que ele tinha algum tipo de retardamento. Via as mulheres usando brinco na missa, mas eram discretos e furavam os lóbulos. Os quatro pareciam tucunarés que haviam escapado a muitos pescadores, rompendo-lhes as linhas e guardando nos corpos os anzóis como troféus. Todos tinham o couro mais colorido que os cabelos, os cabelos mais coloridos que as roupas, e estas mais coloridas que todo o sertão junto. A mais falante, que lhe fizera a pergunta, ria e miava palavras que ele nunca ouvira, o que o fez pensar, em seu preconceito matuto, se eram todos também meio aluados ou beréus, pois falavam como se não tivessem músculos nas mandíbulas, e as línguas pareciam rabos de boi tangendo mutucas. Nesse imbróglio, finalmente, entenderam-se: ele, que eles ficariam por uns três dias, pois estavam de passagem para Baturité, onde ficariam no Mosteiro; e eles, que ele se chamava Acácio, que o sitiozinho era dele e que poderiam acampar, usar a água e o arremedo de garajau onde ficava a latrina.
    Carga no chão, armaram as barracas na base limpa do outeiro e deram-se aos flozôs de turistar sem sair do canto e acender uns fininhos, coisa que Acácio fora ensinado na missa a atribuir ao Cão. Lembrou que, na infância, quando os mais velhos se escondiam para fumar, os cigarros eram pés-duros, de fumo roubado dos pais, enrolados em qualquer coisa, papel de jornal ou palha de milho. Apareceu o filho do Seu Zé Saboeiro com um fumo diferente, mutucado numa caixinha de fósforos, cheiroso e clarinho, e correu gente a dar uma tragada. Lembrou também que se decepcionaram, pois o fumo de rolo com que estavam acostumados era nauseabundo, mas arrebitava o espírito e os masculinizava e amadurecia de modo a ser uma espécie de rito de passagem entre eles. Por outro lado, além do fato de parecer tempero de mezinha, aquela ervinha amolecia as juntas e dava numa risadagem besta, da qual todos se constrangeram depois. Contudo, Acácio sentiu uma certa nostalgia quando a fumaça lhe atingiu as ventas, e ficou na janela que dava ao terreiro, bispando de longe como os coloridos estavam. Nunca viu gente falar tanto, e com vozes que não reconhecia em idade nenhuma, e com uma alegria tão antinatural, herética e livre. Sentiu uma angústia entre as pernas e um segão lhe abrindo a garganta, e, sem perceber, estava com as calças arriadas, punhetando como fazia quando brechava a curra do Totim Avelino por entre as bananeiras. Não eram nem as coxas branquinhas que os quatro exibiam, nem os decotes e os cangotes magnéticos. Era o fato de, aos seus olhos, os quatro não possuírem marca alguma de cangalhas ou cabrestos — que toda gente tinha —, misturado com aquela gastança de vida, aquela liberalidade de gestos e palavras e gaitadas e lassidões, como se não houvesse Lei no mundo, como se ele, Acácio, visse pela primeira vez o coito dos anjos com as almas das virgens que o padre Abelardo dizia que tinham passagem comprada e carimbada para o Céu. Aquilo tudo lhe espremia os ovos e espasmava as nádegas de tal forma que nem percebeu que emendara uma punhetada na outra, grunhindo e salivando como um barrão, como um bicho sem alma. Deu-se que as duas moças encangaram-se num beijo de língua, num beijo simples de namoradas, e que os rapazes se recostaram um no outro, românticos como noivos, pagãos como diabos, azunhando felinamente a nuca um do outro, entrançando as pernas e baforando a maconha como sultões numa orgia. Aquilo arregalou os olhos de Acácio, que tremeu na perna e gozou violentamente pela segunda vez no reboco de taipa do peitoril da janela, esganiçado na síncope moto-contínua daquela masturbação sem alvo. Doía de uma dor nova, sem centro, e sentiu que ia morrer ou nascer, não sabia ao certo, mas sabia que tinha de fazer algo. Correu ao fogão, ferveu a água e pôs-se a moer os grãos de café como se sua vida dependesse daquilo. Era tudo novo, havia estampidos mudos na atmosfera da cozinha, e seus olhos choravam sem sentido a recente descoberta do que tinha em seu quintal: um extremo nunca imaginado do que poderia ser uma felicidade física, um gozo perpétuo de sua existência, isso, se ele soubesse proceder. O caso era que não sabia, e a ideia de perder antes de ter o assombrava como o pé-de-peia que seu pai ensinou haver do outro lado do riacho, temendo que seu filho morresse afogado na curiosidade de menino.
    Chegou trêmulo ao fundo do terreiro onde começavam o mato e os pés de fruta, e falou o mais devagar que conseguiu que tinha café e perguntou se não queriam um pouco. Desde que chegaram, os quatro simpatizaram com Acácio. Apesar da afasia, ele era simpático e só um pouco mais velho que eles, o que viabilizava diálogos. Eram todos veranistas das primeiras férias da faculdade onde estudavam Geografia e queriam voltar com experiências e histórias que lhes antecipassem um renome na turma. Ninguém namorava ninguém ali, ou todos namoravam todos, mas só porque se deu a circunstância de todos toparem a viagem e o sexo sem compromisso entre amigos que viria dela. Entenda-se que a ausência de fronteiras sentimentais possibilitava a inclusão de novos membros naquela vadiação, como ocorrera em Mulungu, onde participaram de uma festinha de piscina no sítio de um completo desconhecido, que enfiara e gozara em todos os buracos dos quatro e acabara ele mesmo por descobrir as delícias do fio-terra, que evoluíra a uma sarrada, e esta, por sua vez, a uma bela comida de rabo, que levara gritando suas revelações. Sem saber, Acácio também era uma lagartinha itinerante na teia quaternária ocasional daquela ovulação de aranhas. Eles mesmos intuíram o açúcar daquele café, mas estranharam a rapidez do contato. Normalmente, demorava dois dias, tempo suficiente para que se percebessem visual e sonoramente as possibilidades fetichistas que ofereciam.
    Entraram, sentaram, sempre rindo gentis e lubrificantes, e o cheiro do café pungiu-lhes as verdades de Acácio. Súbito, sem que tivesse havido um arranjo para tal, gemeu na fumaça o sabor da carência de uma vida inteira, uma carência encorpada, negra, forte, terral. O frio da Serra era a partitura daquele concerto, em que as cores das cordas e dos metais silenciaram ante aquelas primeiras notas das madeiras, harmoniosas em sua urgência, impactantes em sua suavidade. Pegaram das canecas, sorveram calados, e Acácio tremia idiofonicamente seus desejos íntimos. A moça que mais miava foi a primeira a agir. Não disse nada. Pôs-se de pé e cercou-o sentado no tamborete de couro de boi, roçando os bicos dos seios durinhos sob a blusa em seu cachaço teso. Acácio vibrou inteiro, gaguejou algo incompreensível e sentiu uma boca quente tomar o lugar dos mamilos e sussurrar-lhe num meio chupão um “delícia de café, brigada”. Nem bem se ergueu, e recebeu um cangote penujando-lhe a boca em retribuição, conduzindo-o ao jirau, reclinando-se em decúbito e, antes do abraço tão imaginado, ofertando-lhe o fruto branco e polpudo no fim daquela cerviz. O fumo do café fresco recebeu a marola colorida com exatidão. Logo, a cozinha era um palco de desmembramentos de vergonhas e do defloramento do próprio Acácio, que entendeu o que havia do outro lado do riacho, além dos temores de seu pai, dos malassombros dos pés-de-peia e das caiporagens brutas dos meninos mais velhos. Do lado de fora, passando o terreiro vermelho, a friagem trouxe uma chuvinha rala, engordando a travessia do riacho, que transbordou inútil numa cachoeirinha mais abaixo, onde, escondido do seu pai, enveredava-se Raimundo Avelino, arrastando pela mão um leitãozinho que descobrira na semana anterior no oitão de sua casa, desconfiado, meio gato, meio maracajá, para as locas dos pitus, que era onde tudo aquilo acontecia.

30/11/19

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

TODAS AS CORES DO UIRAPURU


    Nem ligava mais se a entendiam. “Isso é gente que não chove”, dizia às rolinhas. Todos os dias, fazia pelo menos uma coisa sem sentido algum aos olhos tão acostumados com o pragmatismo da capital, e isso a tornava ridícula em seus farrapos de mendicância, mesmo aos outros desgraçados como ela. Vira e mexe, conversava numa língua pagã com uma árvore ou dedicava uma tarde incinerante a andar curvada pela Praça, catando os lixos minúsculos que os garis haviam ignorado. Talvez, fosse a sua infância iluminada por um sol diferente, a qual lhe ensinou como andar descalça e o tom de voz certo para chamar passarinho. Fortaleza era tão pobre de passarinho, só tinha pardal e bem-te-vi. Enojavam-na os pombos. Ela, que se acostumara a comer avoantes e hamburguesas no sertão de sua avó, sentia um certo ódio quieto daquela ave tão urbana. Achava-a feia como os prédios e os postes, e, pior, sentia-se oprimida de tal forma que se impressionava como se vendo uma visagem quando vinham em revoada, à semelhança de marimbondos enormes. A cidade inteira lhe era como um gigantesco arapuá que não podia queimar como o fazia seu avô, quando ia colher mel nos campos da vazante. Ali era sempre verde, mesmo na estiagem, e o aroma dos cravos-de-defunto, dos jasmins e das flores das mangueiras adoçava a atmosfera como uma grande roupa natural, como uma grande alma, dentro da qual brincava a dela. Já o pombo combinava com o poste, que combinava com o prédio, que combinava com o cinza quase tátil que se respirava no Centro.
    Na Praça do Ferreira, ela era a “doida do assobio”. A galhofa tão típica do fortalezense é, na verdade, a maior violência desta cidade, ensinada desde o berço e aplicada até o pós-túmulo. É como se todos existissem nos dois extremos apenas: os defeitos, laureados pelo coió — patrimônio imaterial —, e as virtudes, sempre associadas ao poder que inviabiliza o coió. Entre os polos, um pêndulo que dança entre a hostilidade e a subserviência. No sertão dela, também tinha disso, mas não era ambiental como aqui. Aqui, na falta da parede do açude, fugia assobiando para as viuvinhas e um ou outro sibite, que ornavam os velhos oitis da Avenida do Imperador.
    Também, com as décadas, fora perdendo a memória, tanto que não se lembrava mais do assassinato do pai pelo avô na ocasião em que aquele fora pego tentando estuprá-la. Não se lembrava mais das foiçadas e dos gritos, mas ainda guardava uma predileção inconsciente pelo vermelho. Também não se lembrava de ter sido expulsa pela mãe, que nunca lhe perdoara os ganidos que lhe roubaram o homem. Tampouco do desgosto do avô, que pegou maniconia e apaixonou-se pela morte, gemendo pela esposa finada no terreiro da cacimba, onde fora encontrado meses depois, mole e podre, os quartos quebrados. Viera de caminhão em caminhão, sempre pagando com a moeda que matara o pai, até dar em Horizonte, donde andou até sangrarem os pés na esperança de ver o mar. Viu. Era grande como lhe contara a avó, que guardara numa garrafa vazia de cachaça um litro de sua água, o seu bem mais precioso, atrepado na prateleira dos santos, ao lado de um Sagrado Coração de Jesus e de um Imaculado Coração de Maria, onde votava seus terços de saudade. Contudo, decepcionou-se com a solidão do mar. Esperava algo parecido com o que sabia de água, que era o Jaguaribe dando no Orós, algo como um encontro, uma comunhão. Sua alma doeu um pouco, pois rezara para aquela água em menina, e esperava uma espécie de Deus sertanejo, turvo, violento e bom, um Deus como seu avô. Em vez disso, encontrou imensidão e sal e não entendia como as pessoas adoravam se salgar naquela água de onde sempre se saía mais sujo do que quando se entrava. Nem entrou. Molhou os pés, que arderam nas lazeiras e nas unhas perdidas. Daquele dia lembrava-se bem. Começaram ali os coiós e as arengas. Nunca pensara que ser matuta era coisa que se usasse como ofensa, e era uma ofensa tão aguda, pungente como aquela ondinha suja que lhe chupava o sangue dos entrededos. Sem saber o que fazer, acentuou a matutice num esconde-não-mostra da cara entre os ombros, e foi-se andando torta pela dor do sal e das tampinhas de garrafa sob os pés. Subiu a rua da igreja, igreja feia demais, parecia um malassombro cinza, pontiagudo. Desde que entrara na cidade por Caucaia, sentiu um acinzentamento de tudo, do céu, do ar, das pessoas, até que, para não ficar também cinza, coloriu o ar à sua volta com os assobios, que era o seu jeito de passar pelos aperreios. Foi escorraçada de casa assobiando, assobiou enquanto os caminhoneiros e freteiros lhe comiam o resto de infância, assobiava para não se perder, pois seguia o som que projetava alma nas coisas que lhe tiravam, família, virtude, vida. Assim foi. Existia dentro das musiquinhas de menina e das imitações de sabiás, graúnas e bigodeiros, de que tanto o pai gostava. De alguma forma, nessa amnésia, sentia-se bem, como se um santo lhe houvesse agraciado com a percepção de um sentido íntimo das coisas passageiras e a dessignificação dos traumas, dos quais pareciam ser compostos todos os outros. Retinha os sorrisos das crianças filhas de outros mendigos como ela, aos quais retornava sempre uma imitação de passarinho, mas não perdia nem um momento considerando a própria miséria ou o olhar ascoso das outas crianças com as suas mães, que só não lhe passavam por cima por nojo, até porque, como não se lembrava como fora dar ali, não era capaz de pensamentos dessa profundidade. Lembrava o sertão iluminado, paraíso para o qual, um dia, voltaria. Lembrava a decepção do mar e o início e o então do cinza urbano, e isso era como o seu diabo. Para o resto, assobiava e se coloria toda, sem lhe atingirem os escárnios e os coiós cotidianos.
    Naquele cenário, no centro do Centro, no centro do início daquele aglomerado de fins, visitavam-na e aos outros mendigos, casualmente, voluntários de igrejas e assistentes sociais. Achava graça neles. Ninguém dizia coisa com coisa. Falavam de higiene e de Deus, como se ela não pudesse lhes ensinar assobiando a anatomia e a Bíblia, a ciência atômica dos corpos e a metafísica absoluta do universo. Contudo, numa manhã em que assobiava para um saco preto de lixo de lanchonete, de onde retirava os restos que lhe calavam momentaneamente os silvos, parou diante dela uma mulher velha, branca, mais ou menos da sua idade, com o olhar silente e duro como o de uma matriarca que manda o filho se calar. Assombrou-se de súbito, mas logo abriu um sorriso podre de volta, pois não viera dela nada de ruim. O olhar da velha dizia muito. Ela o ouviu atentamente. A velha abaixou-se, acocorando-se ao lado dela, sempre lhe dizendo o que ela sabia ser só para ela, pois não havia palavras nesse dito. Desabituara-se das palavras, pois o nome das coisas era música, e ninguém lhe dizia nada de importante. Sentiu que a velha se apequenava à medida que o diálogo prosseguia, esvaziando-se pelo olhar, que a preenchia de sons que nunca ouvira nem saberia imitar. Também lhe pareceu que ela não era mais velha, que ambas não eram mais velhas, que ambas iam suavemente se colorindo — uma, preenchendo o seu branco de laranjas e crisóstomos; outra, atenuando o seu negro em tons lilases e amagentados. Foram, no tecido daquele silêncio, vestindo-se uma da outra, tornando a ser quem foram, sob os umbuzeiros e entre as gravioleiras, ambas bebendo daquela sertania, tão misteriosa aos que as rodeavam — pois nunca enxergaram aqueles espectros luminosos nem ouviram aqueles segredos compartilhados de beira d’água —, mas tão identitária, e íntima, e telúrica, que pareciam ambas mãe e filha, filha e mãe, terra e planta, sertaneja e sertão. Seu coração crescia, e ia se lembrando de todas as coisas. Lembrou-se de outro mar, de outros pais, de outros crimes. Lembrou-se alegremente de quando era inconclusa, feita apenas de pensamentos e imaginações. Lembrou-se ainda mais distante, quando, na mais absurda liberdade, existia inimaginável, etérea e ampla, parte intrínseca de coisas que ainda nem existiam. A velha, já remoçada e multicolorida, confidenciava-lhe o segredo que guardava o que lhe diziam todo aquele tempo os passarinhos, quando ela os imitava declarante de si, mas ignorante deles. Ela compreendeu com a surpresa de quem não sabia como não percebera antes. Ali, ela, também moça, irradiante de tons de opala, iridescera finalmente àquilo tudo que poderia ter sido quando lhe roubaram corpo e alma e resplandeceu em cores impossíveis dentro dos ouvidos do chão, das árvores e das águas. Face a face, ambas se perpetuaram num trinado de uirapuru, bicho lendário que seu avô lhe contara ter visto com as oiças, uma vez só, sorrindo banguela as suas lembranças de São Saruê.

18/11/19

domingo, 17 de novembro de 2019

O HEREGE

    — E quem te disse que eu queria?
    — Não quer?
    — Não é da sua conta.
    — Claro que é da minha conta. Quem vai ou não te dar sou eu. Aliás, essa marra toda não tá te ajudando em nada. Gente assim acaba tendo o que não espera.
    — Você não me conhece pra nada. Não preciso de ti! E vá baixando essa bolinha murcha de juiz, certo? Marra é cabeça de bode e mãozada na cara.
    — Já engrossou… Como é que, só pra efeito de lógica, você vai me dar essa mãozada?
    — Tem uma infinidade de maneiras de te quebrar a cara e a pose. Só você, debaixo desse manto sagrado, acredita que é inatingível. Você é a criatura mais cheia de expectativa que existe! Quando não é do seu jeito, lá vêm fogo e enxofre, sete anos disso, sete daquilo, dilúvio e o caralho a quatro. Quem sabe é a Lilith…
    — Ah, agora vai citar os renegados… Essa é a tua violência?
    — Não.
    — Não vai vomitar as tuas blasfêmias agora mais não?
    — Não.
    — Sei. Monossílabos. Acabar, o misterioso sou eu.
    — Não tem mistério, Vossa Onisciência. E, se tem, que diabo é que tu tá fazendo conversando comigo? Quer respostas?
    — Sei todas, criatura.
    — Então me responde. Por que não é da tua conta?
    — Orgulho.
    — Mas é muito arrogante mesmo… Cheguei até aqui me despedaçando, arrastando minha miséria por décadas, mendigando existência, evitando contrariar o que o padre me disse quando eu tinha sete anos, sete anos! Que pecado um cristão consegue ver numa criança de sete anos pra dizer a ela que a vida dela é de outro? E não fazer nada além da ameaça? Não é orgulho! Nunca foi isso, que isso eu nunca tive! Nem agora! É independência! Independência, entendeu? Esta vida aqui, esta merda de vida, é minha! Se sou mais desgraçado que ela, é porque a graça não me importa! A graça foi pra todos os outros que me desgraçaram, inclusive pra ti. Pois não me interessa mais a tua graça, não quero mais, porque querer foi o que mais me desgraçou. Lembra aquele teu silêncio quando eu era roído pelos ratos e disputava comida com eles? Aquele teu silêncio era tão alto, mais, muito mais alto que o meu choro e os meus gritos. Quando apanhei, quando calei todas as injustiças, onde é que tu estava? Me dando graças? Ou era eu que devia me ajoelhar na merda enquanto apanhava e era mijado pelos outros e te dar graças?
    — Entendi a referência. Você quer fazer o que acha que meu filho deveria ter feito.
    — Pobre homem! Coitado! Fez tudo, tudo! Morreu pela gente uma porra! Morreu por ti! Porque foi tua ordem!
    — Sei que isso é muito pra tua capacidade de imaginação, mas já se esqueceu de que eu sou três?
    — Olha, essa história pode ter colado pra Maria. Nem teus padres acreditam nisso. Zeus, pelo menos, era honesto. Descia, estuprava e ia embora, como todo bom canalha, e não negava! Mas dava sempre uma ajudinha aos filhos. Já tu…
    — Hum. Agora, vamos apelar pra poesia…
    — Que é que tu entende de poesia?
    — Olha, você já está ficando irracional. Antes que perca a capacidade de articular as ideias, me responda: quer ou não?
    — Não se preocupe, que eu tô mais lúcido que Lúcifer. N Ã O   T E   I N T E R E S S A.
    — Ok, depois não acrescente mais este à sua lista de arrependimentos. Estou aqui pra te ajudar. Depois daqui, pela minha lei, não pode mais contar comigo. Pra onde vai, não tem volta.
    — Meu querido, se eu, por uma recaída de falta de amor-próprio, sonhasse com uma redenção vinda de você, uma redenção de um crime que você mesmo inventou chamar de crime, igual a uma dondoquinha rica dando esmola no sinal, fingindo ignorar o seu peso no esmagamento dos pobres, essa sua redençãozinha automasturbatória, essa sua merdinha de redenção pra se manter branquinho e limpinho no seu troninho, calando a boca da oposição a cada dia mais crescente e perigosa, apesar dos esforços do Francisco, se eu fosse contar com essa sua redenção, eu seria mais besta que a pobre da Madalena, acreditando naquele teatro das pedras.
    — Olha o respeito com a minha mulher!
    — Arrá, olha aí! Olha aí, rá, rá, rá rarrarrarrarrá!!! Vai pro céu, patriarca de merda, vai pro teu mundinho de reizinho! Aqui, não! Aqui, só tem liberdade! Vai fazer o quê, me matar de novo? Hein? E vai fazer isso como? Minha alma é minha, porra! Minha! Besta foi quem caiu na tua e tá aí azedando na espera do teu juízo. Quem me julgou fui eu, e eu me libertei!
    — Pois bem, seu herege. Agora, nem que tu quisesse. É feita a minha justiça! Vai-te!
    Caiu rindo, caiu sabendo que toda queda é um voo, e todo voo é a administração de uma queda. Sentiu o calor pela primeira vez e ardeu, mas não como o prometido. Ardeu gostoso, ardeu aceso como uma lamparina sertaneja numa noite fria de bacuraus, mochos e caborés piando nos juás e nas barrigudas. Sabia que não haveria mais vento que lhe apagasse a chama, nem de boca, nem de céu, nem de mar. Naquela infinitude de si e de mais ninguém, lembrou-se de quando dormia no papelão molhado sob a marquise dos fumadores de crack, lembrou-se do frio que a fome fazia sentir mesmo sob o sol cearense. Olhou em volta e sorriu, manso, inteiro, concluso. O que nunca fez em vida deu-lhe a morte: dormiu em paz pela primeira vez.

17/11/19

terça-feira, 12 de novembro de 2019

COLAR DE PÉROLAS


    — “A pérola é o câncer da ostra”, dizia para si mesmo àqueles dias.
    Bêbado de palavras, deixava voejarem os sentidos daquelas no fundo do seu mar fosco, poluído de guimbas, cacos de garrafas e roupas podres de suicidas.
    — “Não jogai pérolas aos porcos… Pérola, câncer, cancro, caranguejo, carcinoma… Ostra, ostracismo, óstraco, banimento, banner, exílio… Dias, aqueles dias…”, era esse o fluxo em que se embriagava, afogando-se.
    Lembrou-se do que ela lhe dissera uma vez, perdidos ambos um do outro, traçando rotas pelas estrelas:
    — Deixe meu espírito no frio, não mexa nele, não o aqueça. Você é covarde ao fogo e não sabe lidar com incêndios.
    Realmente. Ardia em febre. Beber só piorava. Rompia o limite que assegurava a integridade do pensamento e da memória, pois a cachaça tomava-lhes as mãos e conduzia-os dançando e gargalhando cruelmente entre os cardos e mandacarus do sertão do imaginário. Contudo, na febre, delirava, e isso era o seu incêndio e tinha lá os seus açoites. Misturavam-se verdades suas e dela, na recuperação mnêmica dos gritos e dos sussurros. O que teria de fato acontecido? Onde acabavam o feito e o dito e iniciava a percepção?
    Queimava-lhe também o remorso da inércia diante da febre epitelial que dela transcendera ao extrafísico. Ele, terrenal e salgado, era de um elemento diferente, um que virava vidro quando diante da chama, e, vidro que era, deixara-se transver, deformando o que estava além de si e codificando-se na sua própria invisibilidade. As labaredas eram nada mais que um balé ruivo e alucinado sobre seu corpo e espírito, ambos incapazes de arder com ela. Punia-se intimamente, tentando incinerar o que lhe sobrara de razão, a ver se, ao menos, nas cinzas, haveria um pouco da matéria que não tinha podido dar a ela nem com flores, vestidos e babilaques tecnológicos. A rocha de que era feito tinha baixíssimo grau de fragmentação, e viraria aço muito antes de ser magma. Entretanto, como se imolava mesmo sem línguas de fogo, crepitava em estalos, irradiava ondas de lamentações infernais e encandeava distâncias homéricas, tanto que, sem saberem ao certo por quê, afastavam-se amigos e familiares, e incomodavam-se meio enojados desconhecidos de toda sorte, inclusive os semelhantes.
    Comeu o enxofre durante meses. Numa manhã que teimava em não raiar, procurou-se no espelho enquanto escovava os dentes, pois o embaçado dos olhos fizera estes acordarem por último. Porém, o que lá estava era-lhe totalmente estranho, e não da estranheza aterrorizante dos despertados do coma ou dos mutilados por ácido. O que lá estava não era um “quem”, não lhe parecia uma pessoa. Sabia como era uma pessoa, sabia! A estrutura óssea, os músculos, a pele. Por conseguinte, ainda que fosse outro, saberia que seria ainda uma pessoa, um ser, mas não reconhecia nada, não havia semelhança com nada. O que estava à sua frente era um ineditismo, uma palavra sem letras, um símbolo sem remissão. Lavou o rosto com o medo de que, uma vez limpos os olhos, a imagem lhes sumisse. Esfregou-os, e lá estava ainda, entregando-lhe algo que lhe pareceu um sorriso, a imagem. Passou a mão no vidro, retirando com as unhas os perdigotos desidratados e as marcas de pasta de dente, e sentiu o contato frio da matéria que lhe tocava de volta. Sentiu uma vertigem como a que só sentira quando criança, quando o pai acelerava na antecipação do declive, e o corpo parecia, por uma fração de segundos, flutuar para depois ser recebido pelo assento da Belina, a sempre possibilitadora de suas viagens ao sertão. Em seguida, algo lhe ascendeu a espinha, ao que o corpo todo obedeceu como se nunca houvesse sido aquilo o seu costume, e desatou-o do chão de azulejos retangulares azul-celeste do seu banheiro, tomando-lhe a forma para outra, uma forma nova e definitiva, equivalendo-se ao que jamais fora nem pretendia ser naquela vida. De mãos dadas, desincompatibilizaram-se com todo o resto, pessoas e coisas, sentimentos e memória. Olharam em volta e viram tudo se obsoletar sem que tivesse havido uma querela sequer. Ninguém era vencedor ou vencido. Tudo, simplesmente, existira, e tudo aquilo que haviam sido estava posto em uma fotografia sobre o aparador da sala, onde também jaziam uma bonbonnière vazia, uns bichinhos de porcelana e um porta-joias de concha bivalve envernizada, presente que dera a ela havia anos, quando as pérolas eram só imaginadas.

12/11/19

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

A CANÇÃO DE MARIALVA

    Queria tanto saber tocar violão! Nas vezes em que tentara, sentiu que tinha dedos de capim, de pato, de anêmona. Suas amigas ou tocavam ou conheciam um boyzinho que tinha pelo menos um ukulelê, e sempre rolava um sonzinho na calçada, passando de mão em mão junto com os baseados e os vinhos baratos. Tinha esquecido muita coisa que queria com toda a força de uma criança que não tinha nada: dançar como as bailarinas de auditório, saber brigar para matar sem esforço, ter todos os brinquedos do mundo, e, é claro, ir à Disney. Crescera e, como toda criança pobre, entendera cedo que lugar lhe cabia. Conhecera os homens cedo, e à força. Contudo, embora o tempo e a normalidade do estupro entre suas amiguinhas lhe tentassem empurrar a aceitação de que era um objeto, assim como os veadinhos do bairro e até os que não eram, guardaria para sempre outro tipo de desejo, um novo, sem nome e sem alvo, um que sabia que nunca seria satisfeito. Este lhe incomodava amiúde, sobressaltando-lhe as pequenas felicidades e o sono, à moda de uma assombração ou do estouro dos rojões que anunciava a chegada da droga na favela. Associava essa vontade ao violão nem ela mesma sabia por quê. Vinha como uma melancolia inconsolável e breve e se esfumaçava na erva que tragava, queimando-se na bia que sobrara da solidão da calçada na noite anterior. Era sozinha de espírito. Nunca soube do pai, a mãe lhe deixara na avó para fabricar e parir mais solidões, que somavam oito e também desconheciam como e por que existiam. A avó morrera, o avô, antes. Sumiram tios e primos, e todos lhe aplaudiram os primeiros aniversários, e para nada! Nunca os perdoou. Porém, ela o fez à mãe, que aparecia só de vez em quando, sempre mais feia, mais murcha, mais usada, querendo saber como estavam ela e Elisabete — a única que se mantivera na casa após a diáspora dos irmãos sobreviventes —, desculpa que introduzia uma busca dissimulada em cuidados por coisas que pudessem ser convertidas em pedras de crack. De alguma forma, não a culpava. Acreditava de coração que ela saíra de casa para proteger as filhas restantes, já que o último a lhe ocupar o colchão e o corpo também queria as carnes mais novas balançando nas redes na sala-cozinha. Intuía que a diferença crucial entre si e sua mãe — a que protegera uma e desgraçara a outra — consistia na sua timidez absurda de concha, que contrastava com a profusão incinerante de D. Marleide, ainda presente apesar da ruína física e da mental, que já se insinuava.
    Se pelo menos soubesse uma música… Só uma! Quem sabe não se lhe soltasse a voz, que sempre escondia em bodejos baixinhos quando queria dizer algo importante… Elisabete, bem mais desenvolta, cobrava dela mais atitude. Ambas careciam de estudo, mas cozinhavam bem, e era o que lhes garantia o sustento: uma banquinha de porta, com pratinhos, bolos, salgadinhos e espetinhos, que alimentavam os passantes entre suas perdições. Incrementavam com cachaça e cerveja em latinhas, lenitivos de passagem que lhes pagavam água, gás e luz, já que o muquifo onde viviam era próprio.
    — Tu vai fazer o quê pra dar rumo à tua vida, Marialva?
    — Que é?
    — Amofinada desse jeito, ninguém te quer.
    — Cuide do seu priquito, que eu cuido do meu.
    — Deixa de ser grossa, porra! Vem cá, deixa eu te contar um negócio.
    E falava dos meninos amigos dos peguetes e dos PA que colecionava. Ambas eram bonitas, mas Elisabete, um ano mais velha, prerrogativa da qual sempre usava contra a irmã, tinha razão: Marialva se escondia a ponto de ser irrelevante mesmo entre os amigos. No entanto, Marialva só se incomodava com o excesso de expectativas. Deixassem-na em paz! Iria viver sua vida entre pessoas ou entre pulgas, contanto que pudesse manter seu único luxo, um aparelho celular usado, mas com 32 gigabytes de músicas, estendível por um memory card com o dobro da capacidade, e seus preciosos fones wireless, que mantinha escondidos da irmã. Ouvia Elisabete, fingindo-lhe atenção. Era bem intencionada, bem o sabia, mas lhe adivinhava um desmundo como o da mãe, sempre propensa a ser pingente de piroca. Seus sentidos só se atiçaram quando mencionou Flavinha, companheira de mágoas e de baseados.
    — Esse aí até a Flávia pegava, má!
    — Pegava era porra. A Flávia é direita.
    — Direita, sei. Dorme na caixa, isso sim.
    — E daí, que ela não gosta de homem? Que é que tem?
    — Tem nada não, mas daí tu dizer que ela é direita…
    — Rapaz, ninguém tem nada pra dizer dela. Trabalha, cria a filha sozinha, paga as contas.
    — Sim, e o tempo no Auri Moura Costa?
    — Já pagou pelo que fez, Bete. Te manca. A pessoa não pode mudar não?
    — Pode, mas também pode não. Ela só consegue trabalho noutro bairro, que o povo daqui não confia deixar ela fazer faxina nem no quintal. Dona Lisete que sabe! Vivia sumindo coisa quando ela limpava lá.
    — Mulher, aquilo tu sabe que era o Marquim que vendia pra dar pro Boca. A Lisete era era cega.
    Ficavam nisso, e nisso também ficava a sua revolta. Era fraca de verbalizar o universo de frases que acumulava das canções, assim como as suas próprias. Uma noite, já quase na hora de guardarem a banquinha, ajuntou-se o bando de sempre: todos com idades aproximadas, a maioria escondendo na EJA a humilhação do desemprego, e o restante vivendo de bicos. Entre estes, Flavinha, cheirando a sabonete depois do serviço e de botar a Maíra para dormir, abastecida do mingau grosso. Como de praxe, alguém sacou dum violão preto um Raul, depois a Legião e o Cazuza, e ficaram nessa, rodando um e outro beck e praguejando a vida em nome de Jah. Flavinha tinha uma voz tão bonita! Soubera por ela da Nazirê, da qual virou fã.
    — “Ê, acorda pra vida, mais um dia que acaba, alguma coisa aí dentro ainda não terminou…”, encoravam.
    Seu peito esquentava. Aquele desejo primitivo insurgia, mas o olhar louro da Flavinha logo afastava qualquer angústia de fatalidades. Isso e as tragadas no baseado imundo iam limpando a morte que lhe rondava a vida. Sentia acendendo uma palavra, que crepitou na outra, e deu-se uma fogueirinha branda cantarolante sem a necessidade da cortina do coro para se esconder.
    — “Cada dia que se passa, mais difícil vai ficando, todo dia um leão você tem que derrubar…”
    Alguém tinha dinheiro, e Bete botou na roda a cachaça que sobrara, o que amansou qualquer possibilidade de insurreição. Eram todos gente boa, evitaram a vida inteira meter-se com as gangues e cair na prostituição, e ali só rolava mesmo maconha. Uniam-se por esgueirarem-se entre os abismos da miséria e pela música, distintivo tribal de bom gosto, espécie de autoelitização conferida para existirem naquele excremento de cidade. Flavinha, ali do lado, comentava baixinho tudo que Marialva queria ouvir: como a banda empoderava as mulheres, como os homens eram sórdidos, ainda que fossem pais, irmãos, amigos, e como sua pele era lisinha, sua morenice era atraente… Algumas doses lubrificaram as bocas, que começaram a fumar umas as outras. Bete já havia guardado a banquinha em casa e lá dentro mesmo ficara com Valdir numa gemedeira baixinha e gostosa, e os restantes tocavam “Vamos fugir”. Foi o que Marialva e Flavinha fizeram, com meia garrafa de Pingo de Ouro e dois baseados na cabeça. Apesar de ser acostumada, Marialva perdia feio para Flavinha, que mantinha um andar de quem vinha do culto.
    — Encosta aqui, Alvinha…
    Amassaram-se, dedilharam-se como se fossem duas cuícas, e Marialva nem ligava mais se a viam ou ouviam, e gemia alto a voz que nem sabia que tinha, aqui e ali reprimida por Flavinha, que temia o que a polícia faria se as pegassem. Sabia de cor o ensinamento do cassetete em seus orifícios e já tinha engolido à força o esperma de todos os patrulheiros do Ronda e do Raio daquela quebrada o suficiente para ser cautelosa. Alvinha, mesmo assim, voava e estrebuchava, ela mesma, uma guitarra sendo solada pelos dedos e entre as coxas de Flavinha, que lhe chupava os gritos e os seios. Findas e aterrissadas, desceu uma a outra do parapeito baixo da casa da esquina e seguiram seus rumos, ignoradas pelo silêncio do violão que também virara sexo pelos cantos.
    Na manhã seguinte, a cabeça descolocada de Marialva sacudiu com a irmã socando os cadarços da rede, perguntando pelo seu celular. Demorou um pouco a sair da afasia, mas súbito apavorou-se num grito.
    — Tava junto do meu!
    Durante a bebedeira, todos tinham entrado na casa, fosse para mijar ou foder. Bete começou a socar tudo que não pudesse quebrar acidentalmente e só parou quando a parede arrancou-lhe umas lascas de unha. Marialva, zonza, grasnou que seus fones também sumiram.
    — Porra de fone! Merda de fone! Vivia me negando, e olha aí! Caralho! Caralhooooooooooo!!!
    Quem passava em frente achou que fosse fim de relacionamento, tamanho era o ódio verbal de uma e o bestialismo gritante da outra. Marialva parecia um suíno que fora amarrado para o abate. “Minhas músicas, meu fone!” era o que tentava vocalizar, mas o surto animalesco não articulava. Bete já apenas chorava entredentes o nome da Flávia, já a irmã desesperava como da primeira vez, como no primeiro estupro de um dos pais de um de seus irmãos mais novos, que morrera com o pescoço quebrado na mão da polícia. Lembrou-se do peso e do suor, do esmagamento e da asfixia, lembrou-se de não poder gritar e, justo por isso, gritava o que nunca pudera. Sentiu-se de novo uma coisa, um objeto roubado, ela mesma, e não os aparelhos. Bete já parara e apenas observava firme o desespero gutural da irmã. Pela primeira vez, sentiu-lhe o que sentia pela mãe, sempre escandalosa, sempre constrangedora.
    — Aprendeu, sapatão dos inferno? Aprendeu?
    Flávia dera um tempo do bairro. Soube-se que tinha sido pega pela patroa fazendo um boquete no marido, e a boca miúda cresceu o fato até as raias do crime passional, umas, e da fuga com o traidor, outras. Por meses, não se soube dela nem da filha, até darem notícia de que virara evangélica e vivia com um dono de bodega e a filha em Caucaia, onde ninguém que as conhecia morava, e só souberam disso acidentalmente, pois o próprio Marquinhos, indo fazer um avião de coca para o Boca pelas bandas de lá, foi atendido por ela no balcão da Mercearia El Shadai, cabelo longo e preto, olhar zangado, voz dura. Quase não a reconhecera. Quando perguntou como estava, recebeu um versículo de resposta e um “passar bem”. Marquinhos juraria a todos que ela estava muito bem, que nem parecia mais aquela ladrona das coisas de sua mãe e que, de fato, Deus agia certo por linhas tortas.

04/11/19

sábado, 2 de novembro de 2019

DO LADO DE DENTRO DAS PALAVRAS


do lado de dentro das palavras
ocorre um conselho secreto de sentidos
às vezes, guerra, e lacunas se abrem com as trincheiras
sentidos morrem para sempre
ou até a ressurreição semântica

às vezes, os sentidos se entendem, e reina a paz
aconteceu com a palavra “peremptória”
palavrinha chata do caralho
— não duraria três segundos descalça na roça ou na favela
onde seria comida de porradas, esquartejada a foice
e martelada à gosma viva nos lajedos e nas lajes —
imóvel, inerte como um cadáver embalado a vácuo
utilizável apenas em aulas de anatomia vocabular
e nos estupros vernaculares dos tribunais de justiça

às vezes, os sentidos se embiocam em orgias
e estendem suas genitálias trespassadas de metáforas e sinestesias
até sangrar rios de esperma e traços
numa semiose putificada e profusa
como um ovo eclodido de aranhas

de toda forma, às palavras, intimamente
gozam a fruição de si mesmas
velas breves ou círios eternos
prenhas de tudo o que não somos:
mistérios ajuntados nos discursos
fragor luminoso no obscurantismo dos textos
e de nossas vozes
deslugares de fala que nunca se ocupam
e que tudo têm a dizer

02/11/19

sábado, 26 de outubro de 2019

CÃES E GATOS

     O tempo lhe havia começado a puir nas dobras, e a ação cáustica dos desgostos de todas as vidas que não vivera lhe converteu o sangue num líquido fino, frágil nas veias, que se rompiam com o vento e a exasperação. Todos os espelhos lhe cuspiam homens diferentes, todos com feições nômades, errantes, amondrongadas. Teimava não lhes creditar o espírito, que também teimava em rejeitar seu corpo. Era uma grande lambança aquela quizila, tanto que o obrigava a andar sempre torto, ou como se arrastasse algo ou como se o empurrassem para os lados, como moleques a um bêbado. Evitava escapismos. Havia anos que seu último relacionamento dera mal. Ela era pouco mais nova, mulher viril, mais que ele. Apequenou-se diante da massa que lhe crescia ao lado, a qual parecia poder enraizar-se nele a qualquer momento e absorvê-lo como os benjamins que destroem calçadas e gretam asfaltos. Fugiu no álcool e no silêncio que submergia no barulho dos bares cheios de outros apodrecimentos. Ali percebeu que seria fácil irmanar-se e ceder ao fatídico daquela empreitada, a dos fugitivos heroicizados pelo peso das derrotas, capitães solitários de jangadas de cortiça fadados ao afogamento na noite da cidade. Deu-se o óbvio: o divórcio, a perda da casa, do juízo, da promessa de família. Desde então, não chegava mais perto de bebida. Em vez disso, dedicava seu ócio de aposentado à imobilidade da observação filosófica. Elaborava teses cujos objetos iam desde uma possível consciência dos cães de rua adquirida pelo mimetismo dos humanos — principalmente, os mendigos — à inerente cornitude dos homens de gravata, cuja proporcionalidade atribuía à área calva e aos centímetros caídos das calças de brim.
     — Que é que há, seu Argeu?
     — Opa...
     — A Romilda mandou perguntar se o senhor vai querer faxina essa semana.
     — Só por cima.
     — Homem, é o mesmo preço. Deixe ela fazer o serviço direito.
     — Não vou sair daqui pra ela limpar. Se ela quiser, é por cima, ou ela espera eu morrer.
     — Mas, rapaz, isso lá é coisa! Ela trabalha direitinho, deixe de besteira. Olhe, se for o barulho, eu vou sair, e o Valmir vai ficar só em casa. O senhor pode ficar lá com ele enquanto ela não termina.
     — Só por cima, só por cima mesmo.
     Não era que não gostasse do casal nem da Romilda, cunhada do Valmir, amigo de antes das dores nos ossos. Aconteceu com ele de rejeitar as gentes pela coletividade. Achava bonito homens sós, especialmente os jovens de olhar perdido; estes pareciam ter cometido o mesmo crime que ele e eram como personagens vagos num filme sobre a sua miséria. Observava-os assim como se os quisesse ser, só para ser a si mesmo de novo, num tempo antes de tudo.
     — Coisa esquisita. Senta na janela e fica como se estivesse esperando conversa. Quando a gente chega, escorraça.
     — Deixa, mulher. Faz mal a ninguém, não mexe com a vida alheia, fala até tão manso…
     — Isso é. A gente nem sente a ignorância. Não é normal.
     — Que é que o Valmir diz?
     — Que amofinou. Tá só esperando a hora.
     Distanciavam-se, e o olhar as acompanhava descerem a rua, quando lhe veio o susto seguido do cheiro de cigarro e roupa velha pelo lado oposto. Tinha uns vinte anos maltratados pela pobreza, mas era vivaz, e o espanto cedeu àquilo.
     — O senhor teria um minuto?
     — Claro. Diga.
     — É que eu tô aqui há dois anos e tô tentando juntar dinheiro pra voltar pro meu interior porque minha mãe veio se tratar de um câncer, e eu vim junto, mas ela morreu, e eu não tive onde ficar, então eu tô pedindo ajuda a um e a outro pra voltar pra Madalena, meus irmãos tão tudo lá, nem sei como é que tão, meu pai largou nós por causa da doença, e eu que fiquei cuidando de todo mundo, mas tive de parar de trabalhar pra vir com mãe, que morreu, e ninguém quer empregar ninguém não, moço, aqui é todo mundo desconfiado de gente de bem, ninguém ajuda, então eu lhe peço qualquer coisinha, só pra eu comer hoje, tô aqui só com a cara e a honestidade, o senhor pode me ajudar?
     — Madalena?
     — É, chegando no Cariri. O senhor conhece?
     — De nome.
     Olhava o rapaz de cima abaixo por trás dos óculos verdes de camelô e da voz mansa aborregada, medindo-lhe as dimensões.
     — Você não quer entrar não? Tem um resto do almoço ainda. Depois a gente vê uma ajuda.
     O rapaz, nascido e criado na necessidade e dentro da capital, entendera. Não era a primeira vez. “Esse, pelo menos, é velho”, pensou por trás da resignação mal disfarçada da malandragem necessária no sorriso que pretendia agradar para receber.
     Meia hora depois, escorreu rua abaixo com um pote de sorvete ensacolado com baião e ovo, um pãozinho, uma nota ensebada de dez reais e a sensação de estar um pouco mais sujo da imundície da cidade, que mais o fadigava que enojava. Habituara-se ainda menino, quando era isso ou roubar, e tinha medo da polícia, que já lhe estuprara de cassetete aos treze anos, estourando-lhe o ânus por pegá-lo engatado nos quartos de uma cadela de rua, sarnenta e quase cega, numa viela no Vicente Pinzón. Lembrou-se também de quando fora currado aos catorze pelos internos recolhidos pelo Juizado sob o olhar e os coiós dos agentes, que açulavam: “lasca esse baitolinha pra ele aprender que cu é pra cagar!”. Nem sofria mais tanto com o episódio. Sofria mesmo era com a impressão de que aquilo resistia em seu corpo como uma impingem, um vitiligo sexual que o acompanhava a toda parte, facultando aos outros o direito à proposta, cuja anuência humilhante ainda o fazia sentir mais humano que nas mãos da polícia, a qual parecia possuir um radar especial só para ele, um sensor que o tangia cada vez mais para as margens do que realmente queria, que era trabalhar em paz na Beira-Mar, vendendo-se com dignidade, recebendo a paga justa pelo seu corpo.
     Seu Argeu voltava à janela já limpo, cheiroso a sabonete barato. Lera em algum lugar que Albert Einstein afirmou ter simplificado a vida depois que passou a usar sabonete no corpo, no cabelo e nos dentes. Sempre achou aquilo um absurdo. Os seus, já em cacos, escovava mesmo com a pasta de dente mais cara da mercearia, cuidado tardio depois de uma vida inteira de negligência bucal. Entendia que só a mais mentolada tirava tanto o gosto como o cheiro de água sanitária que teimava sempre em renitir por algumas horas, por isso sumia quando sentia que lhe iam falar coisas de passagem. Sentou-se novamente na cadeira de plástico — única que sobrara do conjunto de quatro com mesa comprado ainda na época do casamento — à beira da janela, limpando os óculos na barra da camisa.
     Lá fora, um cobrador de ônibus se lamentava ao amigo motorista, ambos esperando o horário de partida, que as catracas eletrônicas iriam demitir muita gente. Mais adiante, uma pequena manada de passageiros esperava bovinamente a ignição do ônibus, que, graças a Deus, tinha ar-condicionado, os tempos mudaram, aquilo parecia a Aldeota. Somente a catinga da carcaça de um gato atropelado havia dias incomodava a todos mais que o sol. Seu Argeu arrazoava consigo mesmo se os gatos não se suicidavam com um propósito, à guisa de camicases, pois, diferente dos cães, não lhes era votada a devida atenção social, injustiça que gostaria de ver corrigida, afinal eram animais lindos que, se ninguém visse morrer, acreditava virarem meninos que lhe visitariam, as linguinhas ásperas, os sonhos que ainda restavam.

26/10/19

domingo, 20 de outubro de 2019

A CANHESTRA

     Aquelas revoluções requeriam demais. A todo tempo, uma necessidade; a cada bandeira, um peso enorme nos braços e algumas libras a mais de pressão arterial. Seu tempo com amores limitavam-nos a parceiros e companheiros, de cama e de partidos, de causas e cafés da manhã. Porém, todos insuficientes, por isso passavam. Envelhecia demais, até para alguém com mais invernos que verões. Amargava-se como o café, que era sempre preto, forte, requentado e sem açúcar. Fervia um tanto na máquina e esquecia-o. Esquecia aos poucos família, infância, natais. Nas ruas, pessoas sofriam de problemas reais, crianças, mulheres, velhos, eram todos vítimas de estupro do sistema sádico que vendia sonhos impossíveis dentro do pesadelo das cidades. Não podia aceitar. Não podia relaxar. Nada lhe parecia mais burguesamente criminoso que um travesseiro limpo, no esteio do qual iam pequenos prazeres ordinários, pequenas vaidades, que cresciam geometricamente como um ídolo babilônico, um manipanso de vícios que lhe destruíam a visão e o pensamento críticos, que a embonecavam à moda de uma Barbie Malibu.
     — A plenária de ontem fui um acinte! Pior que quem permitiu a fala da Lídia foi quem aplaudiu depois!
     — Não vi nada de mais. Ela propôs que o partido dialogasse com as ONG de direita, só isso.
     — Só isso? Você diz “só isso”? Não tá vendo que é por aí que eles entram, e as diretrizes vão virando relativas?
     — Não. Acho que precisamos de mais interações. Quem não se comunica…
     — …não se manipula. Isso é manipulação da pior espécie, covarde, covarde! Vou fazer uma moção para a expulsão da Lídia!
     E era assim. A intransigência vinha sempre enquadrada numa paranoia de tentativa de implosão dos princípios democráticos. Afinal, era esta a única falha da democracia: oxidava-se de dentro para fora, como um ovo que apodrece se não se come logo. Suas hienas, seus abutres e seus vermes eram parte da fauna permitida naquela áfrica frágil, portanto imprescindível de vigilância.
     No entanto, havia um ponto cego nesse orwellismo que propunha: quem havia de lhe apontar as falhas?, quem seria apto, mais que ela, para tal? Um dia, questionada se seu radicalismo, ele mesmo não seria uma corrupção da causa, visto que obstava as alianças e, por conseguinte, isolava o partido, respondeu com tantos artigos — que cuspiu feroz nas reuniões que ela mesma conclamou e às quais atribuiu urgência urgentíssima — contrários àquele atrevimento, que acabou por dividir os correligionários em descontentes, desiludidos e revoltados, estes últimos, seu alvo, responsáveis pela inviabilização política do Sr. Cristiano Maldonado, arcano da criação do partido, carreira inimputável, várias vezes articulador de coligações vitoriosas, o qual passou — iniciando-se pela etimologia do nome, escarnecida cientificamente por ela — a um pária gagá, um ex-macho-alfa ultrajado pela ascensão feminina na legenda, da qual ele mesmo teria sido um dos principais responsáveis por atrasar, um antifêmeas, uma múmia misógina a se expurgar. Assim o fizeram. Nem mais para conselhos o queriam, exceto os mais íntimos, ainda assim, às escondidas.
     Eis que chegou o ano eleitoral. Sua base não via nome melhor para encabeçar a chapa. Era hermética a escândalos, fiel transcendentalmente às causas do partido, incorruptível, férrea. Nos primeiros debates, peitou nomes cujos sobrenomes remontavam às oligarquias e coronelados e descadeirou-os a todos, pois era versada na desconstrução das instituições, principalmente o patriarcado. Contudo, ali também estava a Dra. Lídia Cremona, cuja relevância política não só escarnecera, mas também, de tanto ódio e desdém, também havia passado a ignorar — “Não se chuta cachorro morto.” — tanto que não enxergara sobre ela sequer a necessidade de elaboração de uma estratégia de embate. Então, em outro partido mais moderado, “Lídia – juntos, somos família” era o slogan. Ainda tentou, naquele debate e nos outros, todos televisionados e disponíveis em plataformas virtuais, aludir à nocividade do tradicionalismo familiar às minorias; à vergonha que era uma mulher à frente de uma legenda pautada no conservadorismo; à competência que jamais teria uma mulher que cedera egoisticamente o tempo a qualquer instituição que não fosse o povo. Chamou-lhe arrivista, dissimulada, neoliberal, nada colou. O discurso de Lídia era sólido como o dela, porém flexível o suficiente para que aqueles que se opunham a esta vissem naquela uma possibilidade, talvez, uma representatividade.
     Perdeu miseravelmente. Seus apoiadores, vendo o estrebuchar de suas falas cada vez mais violentas e apocalípticas, não lhe perceberam nem a inteligência nem as intenções. Só viram a raiva e a paranoia contra — como pode? — outra mulher, esta, mãe, esposa, trabalhadora, íntegra. Madalena dos Santos lhes havia criado, inconscientemente, uma imagem feminina antagônica, e logo contra quem: uma candidata que advogara contra vários agressores de esposas, todos enquadrados na Maria da Penha, cem por cento de causas ganhas, vinte anos de Direito, vinte e cinco de casamento, engajamentos mil em prol de desabrigados, sem-terra, menores, trabalhadores também mil.
     — Deveria ter chamado a Lídia pra vice. Pagou pelos cornos.
     — Não sei como durou tanto. Chata pra caralho!
     — Agora, faz o quê?
     — Chama pra vereadora. Ainda tem respaldo nos bairros.
     — Olha, outro dia eu vi uns “memes” feitos com a foto dela.
     — Ruins?
     — Péssimos! Mistura do Enéas com a Cuca.
     Descabelou-se na disputa. Venceu, diplomou-se e renunciou martirizadamente numa sessão de sexta-feira, umas cinco pessoas de quórum, incluindo alguns funcionários da limpeza que não faltaram, todos terceirizados — quem ligava? Planejara um suicídio político retumbante, mas ficou mesmo só no eco que se perdeu nos vãos da Câmara. Chegou em casa, descalçou as alpercatas, abriu e matou a garrafa de cachaça pela metade, pensou na vida e dormiu, cheia de sonhos heroicos em que era carregada nos braços populares, laureada por poetas revolucionários, ensinada nas escolas do MST e reproduzida em pichações urbanas: “Madalena vive!”. Foi encontrada semanas depois pela própria Lídia, que, após inúmeras tentativas de contatos telefônicos e virtuais sem sucesso, resolvera falar-lhe pessoalmente para propor-lhe uma secretaria — que seria mais tarde oferecida ao Sr. Cristiano Maldonado, aceitando-a este com um certo pesar que passou rápido.
     Os olhos eram de peixe, e o vômito seco no colchão barato era a única coisa que fedia na casa simples da periferia onde morava. Incrivelmente, não havia fedor oriundo do corpo. Em vez disso, a Dra. Lídia Carmona poderia jurar mais tarde à polícia — só não o fez pelo medo do ridículo de pagar de desconstruidora da imagem pública que a própria Madalena criara — ter sentido um almíscar odorífero e doce, à semelhança do cheiro em comum das flores do mato, muito normalmente encontrado nos borreguinhos que acostumara esconder do pai, açougueiro caucaiense, cidade onde o sertão começa a ficar explícito no Ceará, a partir de Fortaleza.

20/10/19