Número de sílabas (desde 11/2008)

counter

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

DESDE SEMPRE


Quando nasci, meu corpo me bastava.
Era meu país e minha fronteira.
Cresci, e meus limites me exportaram
— imigrei ilegalmente para muitas terras,
donde eu mesmo me expulsei.
Com a idade, entendi que esta sensação
de não caber
tão bem me cabia que virei um expatriado sem bandeiras,
um retirante sem sertão.
Mal sabia eu que essa estrada que sempre se me abria
era nada mais que o maior pedaço de mim
que deixou para nascer depois,
uma voz de que me descobri eco,
a corda cuja vibração me soou.
Para onde vou agora, finalmente, ficou claro.
Desde sempre, meu amor, eu te quis
e te montei célula a célula num passado-futuro que agora está aqui.
Tu és mais que pode dizer o meu sangue.
Quando te mexeste, eu me assustei;
quando teu forte coração ribombou na sala escura, eu sorri.
Quando te vi em preto e branco, como num filme antigo, mudo,
eu me acalmei.
Não tenho um mundo grande para te dar como a mim me deram.
Tampouco, a força de quem me fez.
Mas o que tenho, filhinho, dentro deste coração grosso,
posto nestas mãos fortes,
é o homem que preparei para ti,
para tomar da tua mão e te levar para o que fores.
Eu sou a tua estrada, Miguel Hermano, calçada pedra a pedra
pelas tuas mãozinhas, que ainda nem nasceram.
O destino — dirão — é uma incógnita.
Porém, o teu é ser feliz,
e isto, meu filho, quem diz sou eu, o teu pai.

28/12/15

domingo, 6 de dezembro de 2015

É UMA NOITE QUENTE

É uma noite quente, e tem sido quente por toda parte.
Um ar salgado se precipita narina adentro
Como se eu respirasse um mar que me afogasse
E me mantivesse vivo ao mesmo tempo.
A noite é grande.
Meu corpo parece estar incrustado nela,
Engastado como uma pedra velha numa coroa de lata
Que já me distinguiu entre os homens que imaginava.
Depois de haver reinado, colhi meu corpo do chão da casa
E crucifiquei-o no cetro com que benzi em meu próprio nome
A religião que professei.
Mas chega de liturgias!
Não há nada de sagrado em funerais.
Deixem que o féretro leve o que não é mais útil à ilusão
De que a vida é algo mais.
A vida é só esta noite quente e grande,
Dentro da qual resto e respiro um mar
Que me afoga e me nutre
Sem que haja pacto algum com a manhã que se aproxima.
Vejo pessoas todos os dias
Engavetadas dentro de ônibus, carros, compartimentos móveis,
Indo e vindo pelas prateleiras da cidade.
Em seus olhos, procuro como se eu mesmo tivesse perdido
A faísca da divindade essencial dentro dos homens.
Olhando para mim, estatela-se como um corpo caído no chão de um edifício,
Como um pombo abatido por um fio elétrico,
A pergunta:
— Quem te convidou?

06/12/15

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

ÍNSULA

Saliara (Praia de Mármore) - Ilha de Thassos
(Clique na imagem para ampliá-la.)

(Para Carmélia Aragão, que me sabe sem que eu diga)

Às vezes, o amor e a amizade têm seu próprio tempo,
como uma ilha tem uma noção diferente de mar.
E tudo que vem é onda e vento e sargaço e salsugem
— marulhos de outras vidas, destroços bordejantes
e a certeza de que tudo que não está ali
é passagem sem adeuses.
É só no amor que se realmente é livre para se estar só.

27/11/15

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

SÓ SAUDADE


“Pessoas vivem todas muito com desgostos e a tentar esquecer coisas. Eu penso que a vida é muito curta e que não se pode esquecer nada. (…) Parece que há um despojamento existencial que perpassa essa comunidade da língua portuguesa que tem a ver com a possibilidade de lidar com pessoas que se dispõem à alegria e à tristeza. (…) O mal d'amor, na nossa sociedade (…) da língua portuguesa, é uma coisa que o indivíduo tolera, e chegamos então a essa chave extraordinária da vida, que é a saudade, essa ideia de saudade, que é essa autorização que conferimos a nós próprios para ficar tristes se tivermos razões para isso.”
Pedro Ayres Magalhães, in Língua - Vidas em português, 2002

Hoje, sou todo saudade. Daquela das boas. Saudade de amigos e de inimigos. Saudade que não rima com amplidão, mas é com ela de mãos dadas. Saudade que é só bondade com tudo e com todos. Meus amigos, meus caros amigos, se vocês todos soubessem o quanto me enche o coração de paz lembrar-me de vocês e querer-lhes bem, querer-lhes vinicianamente…
Os longes do mundo e a miopia da alma, que tem os olhos sujos da fuligem das horas, não desfazem a mesa posta e a cerveja gelada, a música e a poesia, as confidências e as brutalidades deste coração de paredes grossas, tão sincopado no sambinha da memória de nossas noites espalhadas por aí, feito vira-latas, desfeitas pelas manhãs como chuva em ladeira.
Sinto falta de todos, porque sinto falta de mim com vocês. Evoco em fotografias, músicas, poemas, souvenires que a mudança esqueceu nas gavetas, rimas de meu nome, ainda que o verso tenha quebrado o pé… Deslizo o disco na agulha, e as ranhuras me cantam. Meus ouvidos se enchem do que transbordamos. Um livro com poemas do Bandeira vertidos para o espanhol, um porta-uísque, duas bolas de sinuca, um chaveiro, uma camiseta velha, tudo é saudade. Tudo sou eu, e vocês estão por toda parte.
Saibam disto, meus amigos: não há saudade maior que a que deita no peito misantropo, nem mais dolente. Solto sem medo meus borrachos no céu das possibilidades, que são todas fecundas de destinatários. Minhas cartas, se não chegarem, desenharão para que todos vejam os traços líquidos de minha escrita de chuva, torta e enviesada, mas carregadinha do sereno da memória: aqui, não estia; plantei-os em canteiros que deram ervas com que tempero meus pratos todo dia, e são todos deliciosos.

06/11/15

terça-feira, 29 de setembro de 2015

MUNDO VASTO

Redemoinho, xilogravura de Arlindo Daibert
(Clique no nome do artista para abrir sua página e na imagem, para ampliá-la)
 
Mundo vasto, mundinho vasto
Tu és tão pequeno
Tu tens horizontes tão longes
Que, de tão longes, somem como se não existissem
Por isso és miúdo, derramadinho de não ter limites

O que nos faz grandes, mundo, é o que nos contém
O que não nos deixa derramar
O que nos embarreira líquidos dentro do açude útil
Banhando a vida de benevolência
Guardando peixes
E sangrando debaixo da chuva

Tu és mar de fragatas
Onde deita o sol e caem raios
Tu és o mundo da baleia branca
Que cabe direitinho no coração doente da palavra única:
ONDE?

Tu não és grande
Nunca saberás o que é contarem contigo
Mais que se um deus fosse, monumental como a necessidade
E certo como a morte
Dentro das dimensões emparedadas da vida

Tu és pequeno e inútil
Como todo o espaço entre as estrelas
E todas elas juntas num céu esparramadinho
Desfraldadinho de negro
Tu és ínfimo e inútil como a noite
Que só serve para se dormir
— O que é nada mais que se esgueirar
Em filetes metafísicos para dentro de um vazio
Que só não é menor que a própria noite

Eu, mundo, sou água também
Também me vaporizo em perdigotículas
E me enamoro do ar
Mas aqui, na terra, eu molho
Eu lavo e banho, eu sacio e margeio
Eu comporto almas que vão e vêm
E que em mim dormem o sono dos que nasceram para viver
Eu sou a angústia da existência
O dia a dia da sede
E o plicar agudo do vinco na lama

Sou grande como um grito
Que se enormiza na parede da voz
Duro o infinito do instante em que existo
E sou maior que a própria vida enquanto isso
Sou, mundo, a parte de dentro da pedra
Que germina o aço
E que esconde a história
Sou o portal da porta trancada
E todo o mistério por trás das sombras

Não sou como tu
Que és perdido no oco do eco
— Uma Eco sem Narciso —
E que te vês borracho em teu universo de movências
Sem saber se vais ou vens
Sou firme, sou farto e sou forte
No meu estar que é sempre pleno de mim mesmo

Eu sou o que serias se te abrisses para dentro
E te inclodisses
Num antimóvito real, numa antinuvem, numa antionda
Eu sou, mundo, o antimundo
Que te devora de uma bocada só
E arrota redemunhos.

29/09/15

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

TRÊS IRMÃS

Num dia de festa em meu coração,
o Amor se casou com a Tristeza,
a qual pariu nas águas três filhas:
a Saudade, diplomata inata, sempre a mediar
os estertores da mãe com os afagos do pai;
a Melancolia, que herdou da mãe a cáustica
e inabalável certeza de sua avó, a Morte,
ainda que, da Vida, mãe de seu pai,
transviara o embornal da esperança;
e a Ternura, moça muito quieta, morena,
destoante da brancura das irmãs,
que levava os dias cosendo-lhes roupas
para o frio que suavam e lhes queimava a pele.

Todas amavam os homens.
A Saudade queria-os para si, possessiva e extenuante,
e roubava-lhes o coração com as armas mais feminis,
ao que lhes depositava em troca no peito,
a fim de confundi-los,
um labirinto de nomes mortos
que lhes soprava aos ouvidos
como se vivos estivessem.
Não sabia nada além disso,
atrapalhada que fora pela mãe
quanto aos ensinamentos de seu pai.

A Melancolia, esguia, quase esquálida como a avó materna,
vivia para tê-los na cama, chupar-lhes o sangue pelos poros
em beijos firmes, como lhe ensinara a mãe,
atada à crença de que tudo é consumição.
Ardia gélida no coração dos homens
e invernava-lhes tudo o que era verão,
temendo perdê-los por não lhes saber
os verdadeiros desejos.

A terceira, mais jovem, não tinha pressa
e fazia-se rara nos salões.
Não carecia dos homens nem, muito menos, procurava-os,
o que a fizera quase desconhecida por eles.
Vira muito na mãe a ausência de corpo e alma
que semeava nos campos dos sonhos humanos,
sua matéria-prima preferida.
Porém, amava-os, mas não perdida como as irmãs.
Era-lhes devota. Cultuava-os.
Conhecia seus desejos, onde não se intrometia.
Sabia-lhes a força, a fraqueza e a necessidade:
a necessidade, acima de tudo.

Aparecia entre eles sempre com simplicidade
e se doía muito quando ignorada,
o que lhe deixava a morenice ainda mais bela.
O pai lhe dera a imensa capacidade da paciência,
temperada que fora pela teimosia da mãe.
A Ternura era a única das três que não desistia dos homens.
Logo essa, que era sua principal virtude,
fazia acharem-na tola, tíbia,
maternal demais para ser amante.
Os homens não sabiam nada de seu pai.
Não entendiam a intensidade de sua febre
nem as chamas de seu sexo.

Aos olhos dos homens, era infantil
como quem dá seu tempo a um gato
ou põe guarda-sóis sobre roseiras.
Era a menor das três.
Não era sólida nem tinha a onipresença da Saudade
nem era elegante ou vaporosa como a Melancolia.
A Ternura destoava daquilo a que se acostumaram os homens.

Conheci todos, cortejei todos.
O pai ensinou-me a coexistir com a mãe,
que me serviu de amante por muito tempo.
Deitei-me com as duas mais velhas,
que me levaram alguns anos de vida e saúde
e me deram nada além de frio e arritmias,
memórias com que me cortejam de volta até hoje.
Porém, veio-me cedo, de contrabando,
oculta num peixe pescado, num livro lido,
numa noite, entre as estrelas, num desenho feito
com lápis de cor,
no sorriso mais lindo,
a mais jovem.

Por causa dela, sorrio
e me faço entender com os olhos.
Nunca me deu nem me tirou nada;
apenas, com a mão estendida,
conduziu-me até a água onde nasceu
e me deixou ali também, finalmente, nascer.
Abraçou-me sem desejo de posse,
e nunca em minha vida me senti mais querido.
Hoje, vive comigo,
aparando-me as unhas e cerzindo-me as meias.
Beija-me bons-dias, mesmo sendo noite em toda parte,
e ferve águas para meus pés cansados,
quebrados pelas outras mulheres da família.
Quando a desejo, ela sorri
e se deixa amar,
única semelhança que observo herdada de sua mãe,
mas, ao contrário desta, cuja ausência me continha,
deixa-me esvaziar-me, como eu sempre quis,
no gozo da mais absoluta liberdade.

01/09/15

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

OXUM


(Para Talita Laila, minha mulher.)

Tanta coisa muda um rio…
Assoreia-lhe o leito o aço da draga,
curva-lhe a margem o aluvião.
Mas o que muda mesmo um rio,
de um modo que dele se toma o curso
e corre-o nas veias como seu,
de uma forma que se faça o próprio rio
um mar a amar-se em seu infinito particular
livre de todas as correntes,
é como nele (como a primeira vez fosse)
nos banhamos.

31/08/15

sexta-feira, 3 de julho de 2015

PARADEIRO

Tem um pouco de mim em toda parte,
e é por isto que sempre me perco:
tudo me parece espelho
no mundo das pátinas argentinas,
e em todos me procuro.

Tem também um pouco de toda parte em mim,
e é por isto que tenho sempre a sensação
de nunca estar limpo:
a memória do mundo apodrece e fede
em cada canto de mim onde o mundo esteve
e me deixou esta roupa de camuflagem
para que eu nunca mais me ache.

03/07/15

segunda-feira, 22 de junho de 2015

JANTAR


— Minha filha, que queres de entrada?
— Uma saída…

22/06/15

DESEMBARQUE

(Clique na foto para ampliá-la e no nome do artista, para acessar sua página)

Deixar, leixar, desleixar, desdeixar…
Eu me desleixei de ti
e não posso te desdeixar.

Se volto atrás e te desabandono
(não sou mais dono),
sou despartida, sou desnavio, sou desmar…

Se fui, fui solto,
mas, se deixei, sou descarnar
de alma em corpo presente,
um pingente sem colar.

Deixa o mar conter o porto,
que meu norte foi navegar.

22/06/15

ABLAÇÃO


Deixa o espaço entre ti e a outra em paz.
Não o molestes, não dialogues com ele.
Há mais ali que houvera
quando éreis juntos, e isso não é para que meças ou compares,
que hoje e ontem nunca foram teus
para que legisles.

Simplesmente, reconhece-o.
Como se contempla um abismo, como se olha para um céu.
Não te dês arrojos de Ícaro.
O teu labirinto é que é sagrado.

Escapa de ti, o teu labirinto.
Empareda-se de veias e lágrimas,
curva e ilude, irrompe e eclode numa saída
que nem sonhas.

Deixa o teu mistério em paz, homem,
que tirar e dar-ta é a própria razão de ser
do espaço entre ti
e a outra.

22/06/15

quarta-feira, 10 de junho de 2015

VINGANÇA

(Para Ana Virgínia Torres, que, como eu, traz punhos cerrados e dentes trincados)

O problema da arte
É que ela é em toda parte,
Enquanto se é só um,
E um só não basta.
Fosse uma a arte
E tivesse corpo,
Dar-lhe-ia na cara
De tirar sangue
Até ela ficar parecida comigo
E lhe diria:
Estamos quites, minha cara.

10\06\15

sábado, 6 de junho de 2015

O OUTRO MUNDO

De tanto existir, eis o mundo:
teu espaço preso entre as hastes dos óculos.
Não vingou; não espasmou e morreu; não fugiu.
Fingiu, contudo.

Nele, cresceram coisas que não vistes:
árvores e gentes sem ti.
E tudo que foi sem ti vingou, fugiu, espasmou e morreu; só não fingiu.

Por isso, não soubeste do mundo, do verdadeiro mundo,
livre, fugidio
e inchado, pleno, repleto da ausência de ti:
tudo que não foste te espreita
porque, somente sem ti, existe
e perde-se.

Ao teu redor, amontam sinais, pegadas:
um vestido vermelho, um salto espacate,
todos desaparecidos quando chegaste.

Ali houve um tropel; mais lá, pés macios.
Tudo, rastros de um presente entalhado no chão,
marcas de um tempo agora,
embora pretérito sempre para ti,
sempre quando estás.

De tanto existir, o teu mundo vítreo e opacento
escondeu-te tudo
que sempre estivera lá, à espreita,
a ver se o verias, finalmente.

06\06\15

terça-feira, 2 de junho de 2015

CHEIRO

Cheiro de café e das manhãs em que fui feito
Cheiro de mato e de bosta de vaca
Cheiro de mar, cheiro de peixe
E do sargaço branco na pele
Cheiro de sol na pele
Cheiro de sabão e alvejante
Cheiro de flor de laranjeira (mas não qualquer, de outros quintais; a que nasceu todos os dias de sua vida por mim)
Cheiro de manga-rosa-espada-tamaracá, da honesta, porém mais, muito mais da roubada das freiras
Cheiro de jambo, de chuva, de reboco molhado
Cheiro de castanhola e de jasmim salvando o pátio dos eucaliptos
Cheiro de pano limpo
De casa limpa, de chão encerado, de pão
Cheiro de cheiro-verde, de chão, de horta
De baião e peixe frito
Cheiro de desenvelhecer os olhos
E de amanheceres

02\06\15

quinta-feira, 28 de maio de 2015

BAR


O que é o mundo,
Senão esta pergunta?
E a vida, que junta
Homens no fundo
De copos imundos
A beberem resposta e pergunta

Enquanto esperam?

26\05\15 

PENÉLOPE


Eu, ela e, no meio do caminho
(e o próprio caminho), a noite.
Quando se é para dentro, é atalho.
Para fora, odisseia.
O barco do sono, sem pano, sem leme,
e o mar negro de asfalto e pedra
esquece as correntes na água do chão
e encrespa ondas de cortarem os pés.
Navegar não é para quem tem coragem.
Navegar é para quem não tem mais nada.

28\05\15
 

sexta-feira, 22 de maio de 2015

MISTER

Ensinar é a única eternidade que conheço. Além de, talvez, ser pai (especulo). Contudo, boto mais fé na minha gramática que em meus genes. O deeneá do professor é uma coisa que codifica o espírito. A carne que trema, que se estrebuche e goze, mas é em outras almas que eu gozo a engravidá-las. Nelas, vivo como vivem na minha todos os que me ensinaram e os que a estes o fizeram, numa cadeia que reboca o grande início, quando éramos todos menos que promessas, grãos no húmus da mesma gnose, sinapses do mesmo sonho, letras da mesma palavra.
Ensinar é presentar, passadear e futurar. É deixar-se no tempo, sabendo que o tempo apaga a existência, mas esperando que a palavra, como o homem, subsista ao tempo.

22\05\15

sexta-feira, 1 de maio de 2015

SALA DE AULA

Vão costurar tua carne, vão-te banhar o corpo, limpar-te as manchas de gás dos olhos.
Vão-te dar tantos-por-cento, sabatinar-te no domingo do bispo, entregar-te lauréis de bastião e oferecer-te palavra na Câmara.
Vão-te gritar o nome e gritar-te nomes.
Vão-te entregar desfraldada a flâmul'auriverde.
Vão-te chamar num canto, talvez, para um conchavo.
Vão-te comprar. Vão-te vender.
Vão-te em vãos donde serás caminho de reis.
Só não te vão, mestre, limpar a marca da bota na cara que deste a tapa, em troco de verem nela os estigmas do País: fileiras imensas de marginados da Ordem e do Progresso, vidas atrofiadas pelo gás e pelo nó, pela imprensa e pela prensa, pelo baile e pela cela.
Só não te vão dizer que acertaste em educar o filho errado, o bastardo dos sonhos, o aborto ambulante das caravelas fedidas.
Vão-te, sim, pesar os feitos no prato austero da virtude dos que "se entregam" pela educação.
Só não te dirão que se entregar e se render são verbetes gêmeos no que diz respeito a ti e que a bala de borracha em tua costela é para que te cies de teu lugar na cadeia alimentar do Estado: és tu quem prepara os quitutes e as marmitas que alimentam os leões desta nação!

Vai-te, professor, que é hora da merenda, e o País tem pressa!

01\05\15

terça-feira, 28 de abril de 2015

ID

Perder o documento de identidade é como sofrer uma falta de energia elétrica à noite.
Primeiro, uma desorientação e o sentimento de que se foi também desligado do mundo.
Porém, depois, vêm as estrelas.

28\04\15

segunda-feira, 13 de abril de 2015

ASSALTO


Quem anda roubando as minhas horas?
Quem zumbe infinita uma noite cada vez menor
de grilos e buzinas bêbadas?
Quem tirou o vento do ar?
Quem disse à cidade
que aqui já não moram pessoas
— mas sim relógios quebrados
e lâmpadas queimadas,
coisas farsantes em que o tempo e a vida deram defeito?

13\04\15

domingo, 29 de março de 2015

PERNOITE


Os olhos da noite são amarelos.
Bile celeste, mijo de gato,
Bico aberto de bacurau.
Reza na esquina a hora torta:

“Dobrai, que aqui te dobro.”
E dobramos.

Fingem almas fugindo os cães,
E fugimos, por desatentos de nós,
Escorridos na gota amarga e cadente
Que sobe às telhas e gane baixinho
A rima exata da solidão:
“Lua…”

29\03\15

quinta-feira, 26 de março de 2015

VOYEUSE

(Para Mariana Nascimento, voyeuse urbana e dona de olhos que regam olhos)

O artista, baby, sofre de uma maledibênção
que lhe deixa vulneráveis os olhos
àquilo a que os outros olhos são cegos,
e está fadado a passar a vida
regando com sua arte
o agreste de todos os olhos do mundo.
Justo ele, que irrompeu da mais improvável castanha
e vingou-se cajueiro de terra seca,
justo ele, que bebe o pó dos nitratos,
que escava a escuridão com  unhas de raiz,
é a quem cabe dar o caju mais doce,
caju que deita o sangue arrancado do sertão
na boca insossa e cega que sequer sabe
o gosto amarelo da luz e o cheiro vermelho do sol.
O artista é uma lágrima que arde sal,
mas chora chuva,
e deixa a vida viver nos olhos dos outros
as flores que só ele vê.
Assim, baby, é que devem ser os seus olhos:
voyeurs que dispam as ruas, os gatos, as gentes
e redigam-nos com as roupas de ruivos ornatos
e rendas brancas
que são a sua própria pele, que o chão fez casca
e que veste a seiva que lhe enche os frutos.
Assim, quando eles olharem,
a objetiva será como uma bandeja oferecida de cajus,
doces e agrestes como convém à carne
de qualquer arte que trague o seu chão
e exulte-o em frutos.

26\03\15

domingo, 22 de março de 2015

DOMINGUINHO

Vou deixar a manhã deste domingo
Me amanhecer devagarinho,
Que hoje eu não tenho pressa de nada
Nem nada me espera no caminho.
Hoje eu começo como um dia
Que se esqueceu na memória:
Estou à disposição do acaso
E da ausência do tempo e das coisas.

22\03\15

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

METÁSTASE

Barra do Rio Pacoti - Ceará

Minha casa cresceu.
Hoje, é mais de duas vezes a casa em que eu nasci,
e somos menos da metade da família
dos incipientes 1974.
Porém, era maior. Como era vasta, como era rica!
A cama em que fui feito tinha dimensões insulares.
Hoje, mal me comporta
— é bote salva-vidas de dois náufragos.
Minha sala, território outrora hostil, mudou.
Hostil agora é a rua, cheia do mundo que inventara
e cresceu não como um corpo metafísico,
mas como um câncer, um cancro, um caranguejo
mais horrendo que os que pescava no Rio Pacoti,
quando o mar que matou meu primo
e ele — o Rio — e eu éramos a mesma coisa:
o encontro em que as coisas proliferam,
o mangue, o búzio e a onda, a maré e o peixe,
e eu e meu grande e verdadeiro mundo.

Sempre fui mais da cozinha que da sala.
O café, o peixe, a laranja-da-terra,
tudo era a ela que me levava.
Deve ser desses ecos de quando era espírito
e habitava pretas ou índias que existiam na fumaça
que jogava vapor na vida colonial e azeda das salas.
Hoje me parece pouca a comida, mesmo sendo mais e diferente.
O sabor verdadeiro é só memória,
e o asso no peito,
num fogão azul de boca preta.

Fazia vento.
O sol era bom e peneirava-se nas telhas erráticas.
A chuva existia em seus dias de existir,
e guardava-nos de não sermos quem não deveríamos
— as goteiras nos lembravam.
Hoje, mesmo quando chove e venta, o que é raro,
pois não só a casa como o mundo cresceram
e empurram o céu como o pus empurra a pele,
tudo parece insuportavelmente incômodo
como um ardor que não sai com sombra.
Hoje até o Sol cresceu,
e brilha porque é sol,
e esqueceu-se de fazer crescerem plantas, sonhos e gentes,
e, porque é sol, não mais aquece — queima.

Minha casa, tão rica, tão pobre!
Portas azuis, janelas abertas, entrecruzes nos entalhes,
pessoas passando, dias de festa, anos-novos, lar e porto.
Hoje é caixa de tijolos que guarda esqueletos de cães enterrados no quintal
e almas limosas, úmidas,
e um pântano de lágrimas que não foram choradas.
Talvez porque, dizem, os olhos não crescem com o tempo
— mas fecham-se com ele,
e olhos fechados não choram.

16/02/15

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

POEMINHO NOSTÁLGICO

O fabuloso destino de Amélie Poulin

Bicha perigosa é a nostalgia,
que rima tanto com alegria
quanto com melancolia,
mas não passa de uma estria
na carne velha e fria
de quem, se pudesse, voltaria,
mesmo que em agonia,
a ver que fora um dia
o que nunca mais poderia
ser.

27/01/15

domingo, 18 de janeiro de 2015

ORAÇÃO PELA PAZ

(Clique na foto para ampliá-la e no nome do artista, para acessar sua página)

Senhor, se existirdes, fazei que eu descreia em Vós
para que os que creem e os que não creem em mim,
herege notório e lasso de coração,
vejam-me sem a sombra da fé
e me deixem em paz.
Amém.

18/01/15

sábado, 17 de janeiro de 2015

O QUE EU SEI DELA

(Clique no nome do artista para acessar a sua página e na imagem, para ampliá-la)

O que eu sei dela
não cabe nem no corpo nem no desejo do corpo,
nem no gozo real nem no imaginário,
tampouco na real ou na imaginária luta
de mim dentro ou debaixo de sua pele branca
e de sua carne vermelha.
O que eu sei dela
liga os átomos das moléculas do seu suor
que provo escorrido e escorreito
de seu buço, de sua borda, de seu borco.
O que eu sei dela sobeja de adeuses
as partidas de todos que fui, reencarnado desde o início;
e de íntimos encontros, os renascimentos sobre seu corpo
de todas as vidas que vivi
em busca da alma que deixaram para mim dentro dela.
O que eu sei dela
mataria mitologias inteiras
pela descoberta estupefata da divindade residente
no ateísmo de comungar da sua carne molhada
o mistério absoluto revelado:
não há deus nenhum,
exceto o que nasça dentro dela.
O que eu sei dela
move a terra de que sou crosta
como um arado ou como um terremoto,
e não sou nada senão uma constante germinação
de magma e húmus, um canteiro que espera,
um planeta em que ela habita e que orbita em torno dela.
O que eu sei dela me translada.
O que eu sei dela me prende, a despeito do vácuo e do caos,
à gravidade da estrela original
que brilha na seiva de que bebo, e de que me alimento,
e que me faz odiar o espaço entre nós
onde não toco, onde não ocupo, onde não preencho.
O que eu sei dela
é que não há ciência ou fé
que coabitem na plenitude que é quando ela está,
porque tudo, então, simplesmente, deixa de ser,
inclusive eu,
que só sou porque sou imaginado e percebido,
que me materializo apenas quando sou tocado
e que vivo apenas porque a como e bebo,
na festa de ser a criatura feita da argila cozida pela gênese de seu ventre;
de ser o filho único de Gaia,
o Urano permanente que inviabilizará todos os deuses
e que escreverá a sua própria Teogonia
no chão de seu corpo,
que sabe tudo de mim e que me explicará
todos os mistérios.

17/01/15



Gaea

domingo, 11 de janeiro de 2015

À BEIRA-MAR

(Clique na foto para ampliá-la e no nome do artista, para acessar sua página)

O que não é feito de saudade é feito de ausência.
Costuma, entretanto, que haja das duas uma inexistência breve, e elas, simplesmente, não sejam.
Aí, tudo é o silêncio que dá e tira nome a todas as coisas.
Tu te chamas… Tu és…
Ah, mas como é relativa e inconstante a brevidade da inexistência…
Como gritam todas as coisas, como as pedras, o chão e as paredes, por que se lhe calem para sempre os nomes pedras, chão e paredes, e que as deixem apenas su e comportar!
Não lhes cabe caber.
Meter-se entre elas e caminhá-las é coisa para itinerantes.
Cabe às coisas, na ausência da saudade delas, apenas não serem, ou serem ignotas como a presença dos átomos.
Há quem sinta falta de algum?
Contudo, ao cabo do lapso, retorna como ondas que não têm culpa de ser mar a saudade que tudo-nada traz e deixa na areia o estado de esta nem ser terra nem mar, mas uma coisa-entre, um silêncio de nomes, uma essência que, quando ia ser… não foi.
É disto que é feito o homem: palavras.
É forte, pois entendeu “força”; vive, pois lhe contaram “vida”.
Saudade é quando tudo foi, e as palavras são.
Como a areia que a onda deixa molhada e sedenta.
Sem o silêncio que lhes esquecia os nomes.
O que partiu existe?
Ah, mas como ele grita alto a sua inexistência…

11/01/15

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

MUTIRÃO

(Clique nas palavras amarelas para abri-las e nas imagens, para ampliá-las)

Pois é, o primeiro filho veio por acidente e foi uma criação coletiva, ainda por sinal. Explico. Há alguns meses, uma grande amiga, Nataly Pinho, escritora e artista plástica, pediu-me que lhe enviasse alguns textos para uma antologia a ser organizada por seu companheiro e comparsa, o Poeta de Meia-Tigela Alves de Aquino, chamada Mutirão.

Mutirão, antologia colaborativa de vários artistas, em muito boa companhia
na Bienal do Livro do Ceará de 2014.

Obviamente, aceitei o pedido e chovi-lhe vários textos para que ela escolhesse os que entrariam no livro. E esqueci. Fazer o quê? Final de ano, provas para elaborar e corrigir, mudanças e preparações por fazer… Esqueci.
Outro grande amigo, o poeta Antônio Ortiz, havia me convidado a escrever uma apresentação para o seu A forma do outro, a ser lançado dia 13 de dezembro último, na Bienal do Livro 2014. Aceitei, também obviamente, porém, por conta dos mesmos motivos, também o esqueci. Deu-se que o livro foi lançado regularmente no dia 13, dia do nascimento do Rei do Baião, e eu estava lá, como bom amigo envergonhado, ajudando-o no que fosse.

A forma do outro, de Antônio Ortiz

Eis aqui o “acidente”. No dia anterior ao do lançamento, Nataly me telefona e me pergunta quando, como e onde eu iria pegar MEUS EXEMPLARES. “Exemplares”? De quê? E no plural? Aí então me dei conta do livro, aí então sobrepus uma vergonha à outra. Eu também estaria na Bienal, mas nem sabia.
Bom, assim foi. Ortiz, Nataly, Aquino e eu (incidentalmente) nos encontramos no Centro de Eventos do Ceará, e nossos livros foram lançados. Entre amigos, foi feito, com amigos, surgiu, e, por amigos, existe este Mutirão. Não poderia ser de outra forma.

05/01/14

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

MINAS GERAIS


Neste mundo de cavernas,
Sou uma pedra
Dentro da qual dorme o minério,
O único metal que pode me extrair deste solo-parede
Cheio da história pictográfica dos que abriguei,
Dos que vi virarem fantasmas
Antes que pudessem descobrir o fogo que me derreteria.

02/01/15