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sábado, 24 de dezembro de 2011

FREDDY KRUEGER VS. SEU LUNGA

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

A MÁSCARA DE APOLO



A noite me agrada porque nela é tudo muito simples.
Não há luzes que me iludam: o céu tem a cor dele, a lua aparece, e as estrelas.
É, e as estrelas…
É simples olhar para elas, pois o que elas são é simples,
como são simples os estilhaços de sol poente — tão diferente de suas irmãs… — na epiderme do mar,
em seu instante mais terno, menos apolíneo:
quando a verdadeira cor das coisas e das pessoas começa a resplandecer
e encher de negro o néon da vida,
mas desse negro de que são feitos os olhos de minha filha,
os cabelos de minha esposa,
o silêncio de meu filho,
a história de minha pele.
O negro transliterado de uma continuidade, de um complexo fio
tramado entre os sons, as pessoas, as palavras e as almas, ligando-os.
Os traços de impessoalidade deixam ao dia o seu anonimato:
somos o que somos somente à noite.
Aquele, intransigente, retira de seu sítio mais íntimo o seu livro de diálogos perdidos e o reexamina escolarmente;
aquela, promíscua, cofia de seus cabelos as imundícies lascivas e se entrega mulher, pura, inteira, a seu homem;
aquele, em mangas de camisa, testosterônico, dança em seus olhos bailes de gala de valsas casticíssimas;
aquelezinho, empedernido em sua resignação humilde ao fel da vida, muda a essência inteira do mundo, dando boa-noite a seu cão;
aqueloutra, doidivanas, sorri pudica diante da ternura pueril de seu pescoço de fêmea;
aquela uma, sem que o nunca lhe houvessem dado, dá de si o mais belo dos sorrisos de “agradecida, senhor” ao lixeiro surdo;
aquele, estroina, olha cheio de amor desesperado o filho, com o pavor absurdo dos que não lhes querem pares de seu futuro;
aquela, burguesa de passamanes de ouro, despe-se da própria pele e se examina só, encastelada em sua tão total ausência;
todos, andrajosos dentro de suas singelezas, cirzem suas verdades
— a única pele que a noite exige, essa noite sem luzes falsas, sem vapores incandescentes de sódio.
Eu, acordado ainda por faróis, desses que salvam navios;
porém eles dormem
como se as máscaras pudessem sonhar os foliões
e os sonhassem.

21/12/11

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

ALUMBRAMENTO


A poesia?
A poesia serve para dar corpo ao caos inominável.
Desatar nós não é de sua lavra;
tampouco o é sistematizar, sequer dissecar a vida.
Não se encontram anéis em seus dedos
nem estolas em seus ombros
— seus ombros não suportam o mundo.
A poesia é o conjunto da incontinência, é o mar da água,
é o coração dos sentimentos.
A poesia é o nome que se soprou dos lábios da fera
pouco antes de suas palavras obstruírem-lhe a alma.
O que se diz
está longe de ser poesia;
um pouco mais perto está o que se pensa;
vizinho, o que se sente.
A poesia mesmo
é o alumbramento espantoso de tudo que queremos ser
diante do mundo que queríamos que fosse.

14/12/11

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O LIVRO PERDIDO DE CARINE


Carine queria ter lido Moby Dick. Pedira-me emprestado no início do ano. Prometi, tentei, não cumpri. Havia perdido meu exemplar. Talvez, sob as pilhas de romances empoeirados pela minha preguiça, talvez, sob os mares mesmo, com seu Ahab atado à sua cauda. Contei-lhe um pouco do que sabia: não era um livro sobre uma caçada a uma fera marinha; era uma alegoria da bestialidade humana, destruidora do próprio homem. Ela se encantara. Queria saber mais. É tudo que nós, professores, queremos: que eles queiram saber mais, que seus horizontes cresçam com seus olhos brilhando em sua direção. A partir dali, assim como ela com o conhecimento novo, havia-me eu encantado solidamente com aquele segundo ano, com sua afetuosidade e seu bom humor, e mesmo com o inevitável desinteresse momentâneo tão próprio de seus adolesceres.
Sempre ficam alguns rostos. Aquele, com o seu riso cínico e sua incapacidade de deixar alguém sério por muito tempo; aqueloutro, com sua sinceridade e seu coração estampado na cara de 16 anos, todo coração debaixo de um monte de músculos; já aquela, com sua molecagem tão contagiante, convidando a minha seriedade a ir às favas a todo tempo; aquelinha, com aquele tamanhinho, tão gigante, tão mais que eu… Ficou também o rosto de Carine, os óculos simpáticos, os olhos vivos e meninos, um sorriso desconhecedor e curioso, uma inquietação vaporosa e aromática, uma calma presença. Uma calma presença. Acho que ela teria se identificado muito com Ishmael, o professor-marinheiro, o coração aberto, o cronista de sua tripulação de párias. Não sei dizer dela muito mais que isso… Como pode amarmos tanto nossos alunos, tão em segredo, tão incompletamente, mas tão cheios de ternura, de afilhamento?
Neste domingo, 4 de dezembro de 2011, sua trajetória e as de duas amigas suas foram prematura e violentamente alteradas. Partiu-se ao meio em colisão a um poste o carro em cujo assento traseiro vinham de carona de Aquiraz a Fortaleza buscar um amigo para levá-lo de volta à festa em que estavam. O motorista e a carona feriram-se, socorreram-se, passam bem. Não se falou em fatalidade no noticiário. Foi um desastre causado por direção perigosa. Ou criminosa.
Carine era minha aluna. Eu cuidava para que suas redações dissessem o que ela pensava de mais profundo. Tentava despertar-lhe críticas, questionamentos, senso de organização de ideias… Minha vontade agora é de falar de desmerecimentos, de insanidades, de injustiças. Porém, minha vontade é insuficiente. Minhas abstrações são insuficientes, o que lhe ensinei foi insuficiente, o mundo é insuficiente, as crenças são insuficientes. Carine estava plena de fome de vida. Existira. Brilhara. Iluminara como iluminam, brilham, existem, ardem seus companheiros de segundo ano, de escola, de geração. Falar é insuficiente, então gritemos, inquiramos, podemos, devemos perguntar: como poderia estar certo um mundo onde tantas Carines cada vez mais não encontram lugar para serem como são, jovens, legitimamente radiantes? Como pudemos tê-la perdido? Como pudemos ter sido e podemos continuar sendo tão insuficientes?
Lamentemos, mas lamentemos bastante e de verdade. Por nunca mais ouvirmos sua voz, seu riso, seus gritos de adolescência. Por nunca mais lermos suas mais novas palavras recém-escritas. Por nunca mais a olharmos nos olhos. Por nunca mais nos despedirmos dela. Por nunca mais causarmos aquele muxoxo de reprovação em seu canto de boca por uma molecagem nossa. Por nunca mais rirmos de suas molecagens. Por ser ela uma flor de beleza redentora de um mundo onde se pisoteiam flores. Por nunca mais poder ela nos ouvir dizer (se é que dissemos) como tudo isso nos faria falta. Vamos lamentar pelos que também, da mesma forma, lamentam por suas duas amigas, também jovens, também famintas de vida. E vamos lamentar por nós, meus amigos, por mantermos uma sociedade em que é perigoso sermos bons, felizes e autênticos em nossa fragilidade de existência. Eu, particularmente, acrescentarei mais uma tristeza ao meu já tão carregado Pequod, tão perdido dentro do livro que (lamentarei) nunca mais poderei emprestar-lhe.

05/12/11