Tanto fazia o
mundo que derramava carros importados e motoristas perfumados à sua porta. Tanto
faziam as horas de tédio de ídolo que passavam dentro de seus olhos, ou as que
ela mesma passava entrando nos olhos apatetados das pessoas. Não importavam
mais. Sempre fora, pelo menos até ali, uma mulher enganchada às engrenagens de
seu sexo. Nunca deixaram de verter olhares agudos e esfomeados pela sua pele,
estivesse, ou não, coberta. Nunca lhe negaram saliva, silvos, grunhidos,
grosserias e galanteios vulgares ou perolados: nunca lhe deixaram de lembrar
ser a mulher mais desejada que já nascera, visitara ou vivera em Brigante. Álcool,
pó, pílulas e sorrisos, valiam-lhe gratuitamente de todas essas drogas, tantas
que dariam para morfinizar uma guerra. Não importavam mais. Não importavam os
comprimentos, os diâmetros nem as cores de todos os quilômetros de caralhos que
se ergueram escravos de seus miados, e que chupara, mastigara, comera e
lambuzara de paraísos. Não importavam mais as maquilagens, os brilhos, as
sombras e os esfumaçados que dariam para afrescar catedrais e que foram lavados
nas lamas das manhãs. Tanto faziam agora. Sua pele de beluga, fruto de besuntes
que calafetariam frotas inteiras, sua carne espartana, construída por
repetições de contrações musculares que, somadas, ergueriam o prédio mais alto
em que jamais entraria, suas unhas, dentes e cabelos que, juntos, foram
responsáveis por mais de mil empregos diretos e indiretos e pela subsequente poluição
de todo o aquífero de um pequeno sertão e pela morte de faunas e floras
aquáticas e costeiras, seus espelhos, seus bricabraques, suas pratas e seus
ouros, sua tecnologia importada de ponta, sua riqueza de afetações copiadas de
revistas italianas, seu encantamento, nada, nada mais restava pagão ou divino
sobre o altar sólido que lhe ergueram nem pavimentava o chão de procissão cega que
lhe deitaram. Não importavam mais os joelhos roídos nem os pés rasgados de seus
romeiros. Sua divindade morrera coberta por algas, lama e lixo no fundo do
açude onde se afogaram três de desespero pela sua indiferença e pelo capricho
felino de sua orgulhosa inconstância feminil.
Nunca mais,
sabia ela, vestiria, com sua presença ubíqua, os homens de meninos amarelos de
mãos cabeludas ou as mulheres de guaiamuns desajeitados de garras odientas. Não
seria mais vista. Não seria mais imaginada. Seria um neurônio morto pelo câncer
da idade no cérebro de Brigante. Mas isso também não lhe importava. Desfar-se-iam
os andores, desimaginar-se-iam as preces, esfumaçar-se-ia a fé — sumiria.
Tampouco isso tudo se lhe dava. Sabia-se mulher até aquele dia. O dia em que,
sob a sua carne, encontrara um oco, mas não a sua carne de deusa, a sua carne
de anja, a sua carne de mulher. Enfiara a mão dentro da carne que lhe suportava
essa outra carne e não encontrara nada. Onde deveria havê-la, nada! Onde deveria
ter sempre estado, nada! Aonde precisou, pela primeira vez, regressar, nada!
Tanto faziam os
lugares, os estrangeiros, os magnatas! Não lhe havia onde se guardar. Sua pele,
seus dentes leitosos, suas unhas de fogo, seus cabelos de éter, seus olhos de
poço, tudo eram joias que lhe disfarçavam essa outra carne, essa casa, essa
caverna macia dentro de si mesma, destinada apenas a si e a mais ninguém, essa confortável
pátria solitária, essa praia de rio oculta, deserta, desconhecida de todos,
senão dela própria. Imaginou-se a princípio enganada, bêbada, distraída.
Depois, pensou ter sido invadida e roubada como uma casa muito grande, durante
a noite, enquanto os cães dormiam entre as plantas de seu labirinto. Finalmente,
sentiu-se oca. Inválida. Morta, morta, sempre estivera assim! Nada lhe faltava
porque nada nunca tivera. Deitou-se. Abriu a caverna à visitação pública. Empestou-se
em camas imundas, degradou-se o quanto podia, depois, mais um pouco.
Cuspiram-lhe a saliva que antes lhe babaram, e não se importou com o fato de terem
se tornado mais animais nesse ato. Pertencia aos animais que antes chamava com
os estalos de seus dedos de anêmona. Alimentava-se de restos. Cagava em vias
públicas, de pé, escorrendo-lhe a merda amarela pelas coxas estriadas,
confundindo-se com elas, vestindo-as, sendo-as. Fizera, enfim, sentido. Tornara-se
o vazio de sua própria toca, a ausência de sua carne, essa outra carne, a carne
que veste e que suporta o peso do sexo que gira, como uma engrenagem, a máquina
de autoconstrução, o moto-contínuo dos ídolos de bronze, das deusas de
alabastro, das escravas sem mestre, escravas de si. Observava néscia os guaiamuns
e os meninos amarelos agora sem o impacto de sua presença. Pareciam-lhe tão
belos, tão superiores… Visitavam-lhe alguns a caverna, outros paravam diante de
sua boca, miravam sua escuridão e se iam, aqueles atiravam pedras e gritavam
pelo eco, aqueloutros se perguntavam por que deixavam aberta tamanha fossa nos
passadiços de Brigante.
Enfim,
esqueceu-se. Taparam-lhe primeiro com lixo, depois com entulho, e, por fim,
veio a Prefeitura sob uma manifestação de apoiadores e opositores pavimentá-la
com o asfalto mal misturado das obras públicas. Carros estacionaram sobre
aquilo por que antes três homens se afogaram. Esses três, hoje, jazentes no
fundo do açude de Brigante, choram líquen que alimenta todo um novo cardume
que, enfim, voltou a pratear a superfície das águas onde pescadores cortam as
mãos grossas puxando as tarrafas que voltaram a alimentar a vida no interior
daquele pedacinho de sertão, por trás de um mundo que nunca soube que estava
ali. Um mundo diferente, um mundo sem meninos, sem guaiamuns e sem ídolos de
alabastro.
13/01/14