Número de sílabas (desde 11/2008)

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domingo, 26 de janeiro de 2014

No céu tem pão?

Em comemoração ao (por enquanto) boato da “dispensa honrosa” de Ben Affleck do papel do paladino mascarado, publico aqui minha sugestão para a personagem. Sugiro também mudarem o nome do milionário para Didi Wayne Mocó Sonrisal Colesterol Novalgina Mufumbo, que é pra acrescentar uma certa nobreza ao cavaleiro das trevas.


26/01/14


segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

ESSA OUTRA CARNE, ONDE VIVEM OS MENINOS E OS GUAIAMUNS


Tanto fazia o mundo que derramava carros importados e motoristas perfumados à sua porta. Tanto faziam as horas de tédio de ídolo que passavam dentro de seus olhos, ou as que ela mesma passava entrando nos olhos apatetados das pessoas. Não importavam mais. Sempre fora, pelo menos até ali, uma mulher enganchada às engrenagens de seu sexo. Nunca deixaram de verter olhares agudos e esfomeados pela sua pele, estivesse, ou não, coberta. Nunca lhe negaram saliva, silvos, grunhidos, grosserias e galanteios vulgares ou perolados: nunca lhe deixaram de lembrar ser a mulher mais desejada que já nascera, visitara ou vivera em Brigante. Álcool, pó, pílulas e sorrisos, valiam-lhe gratuitamente de todas essas drogas, tantas que dariam para morfinizar uma guerra. Não importavam mais. Não importavam os comprimentos, os diâmetros nem as cores de todos os quilômetros de caralhos que se ergueram escravos de seus miados, e que chupara, mastigara, comera e lambuzara de paraísos. Não importavam mais as maquilagens, os brilhos, as sombras e os esfumaçados que dariam para afrescar catedrais e que foram lavados nas lamas das manhãs. Tanto faziam agora. Sua pele de beluga, fruto de besuntes que calafetariam frotas inteiras, sua carne espartana, construída por repetições de contrações musculares que, somadas, ergueriam o prédio mais alto em que jamais entraria, suas unhas, dentes e cabelos que, juntos, foram responsáveis por mais de mil empregos diretos e indiretos e pela subsequente poluição de todo o aquífero de um pequeno sertão e pela morte de faunas e floras aquáticas e costeiras, seus espelhos, seus bricabraques, suas pratas e seus ouros, sua tecnologia importada de ponta, sua riqueza de afetações copiadas de revistas italianas, seu encantamento, nada, nada mais restava pagão ou divino sobre o altar sólido que lhe ergueram nem pavimentava o chão de procissão cega que lhe deitaram. Não importavam mais os joelhos roídos nem os pés rasgados de seus romeiros. Sua divindade morrera coberta por algas, lama e lixo no fundo do açude onde se afogaram três de desespero pela sua indiferença e pelo capricho felino de sua orgulhosa inconstância feminil.
Nunca mais, sabia ela, vestiria, com sua presença ubíqua, os homens de meninos amarelos de mãos cabeludas ou as mulheres de guaiamuns desajeitados de garras odientas. Não seria mais vista. Não seria mais imaginada. Seria um neurônio morto pelo câncer da idade no cérebro de Brigante. Mas isso também não lhe importava. Desfar-se-iam os andores, desimaginar-se-iam as preces, esfumaçar-se-ia a fé — sumiria. Tampouco isso tudo se lhe dava. Sabia-se mulher até aquele dia. O dia em que, sob a sua carne, encontrara um oco, mas não a sua carne de deusa, a sua carne de anja, a sua carne de mulher. Enfiara a mão dentro da carne que lhe suportava essa outra carne e não encontrara nada. Onde deveria havê-la, nada! Onde deveria ter sempre estado, nada! Aonde precisou, pela primeira vez, regressar, nada!
Tanto faziam os lugares, os estrangeiros, os magnatas! Não lhe havia onde se guardar. Sua pele, seus dentes leitosos, suas unhas de fogo, seus cabelos de éter, seus olhos de poço, tudo eram joias que lhe disfarçavam essa outra carne, essa casa, essa caverna macia dentro de si mesma, destinada apenas a si e a mais ninguém, essa confortável pátria solitária, essa praia de rio oculta, deserta, desconhecida de todos, senão dela própria. Imaginou-se a princípio enganada, bêbada, distraída. Depois, pensou ter sido invadida e roubada como uma casa muito grande, durante a noite, enquanto os cães dormiam entre as plantas de seu labirinto. Finalmente, sentiu-se oca. Inválida. Morta, morta, sempre estivera assim! Nada lhe faltava porque nada nunca tivera. Deitou-se. Abriu a caverna à visitação pública. Empestou-se em camas imundas, degradou-se o quanto podia, depois, mais um pouco. Cuspiram-lhe a saliva que antes lhe babaram, e não se importou com o fato de terem se tornado mais animais nesse ato. Pertencia aos animais que antes chamava com os estalos de seus dedos de anêmona. Alimentava-se de restos. Cagava em vias públicas, de pé, escorrendo-lhe a merda amarela pelas coxas estriadas, confundindo-se com elas, vestindo-as, sendo-as. Fizera, enfim, sentido. Tornara-se o vazio de sua própria toca, a ausência de sua carne, essa outra carne, a carne que veste e que suporta o peso do sexo que gira, como uma engrenagem, a máquina de autoconstrução, o moto-contínuo dos ídolos de bronze, das deusas de alabastro, das escravas sem mestre, escravas de si. Observava néscia os guaiamuns e os meninos amarelos agora sem o impacto de sua presença. Pareciam-lhe tão belos, tão superiores… Visitavam-lhe alguns a caverna, outros paravam diante de sua boca, miravam sua escuridão e se iam, aqueles atiravam pedras e gritavam pelo eco, aqueloutros se perguntavam por que deixavam aberta tamanha fossa nos passadiços de Brigante.
Enfim, esqueceu-se. Taparam-lhe primeiro com lixo, depois com entulho, e, por fim, veio a Prefeitura sob uma manifestação de apoiadores e opositores pavimentá-la com o asfalto mal misturado das obras públicas. Carros estacionaram sobre aquilo por que antes três homens se afogaram. Esses três, hoje, jazentes no fundo do açude de Brigante, choram líquen que alimenta todo um novo cardume que, enfim, voltou a pratear a superfície das águas onde pescadores cortam as mãos grossas puxando as tarrafas que voltaram a alimentar a vida no interior daquele pedacinho de sertão, por trás de um mundo que nunca soube que estava ali. Um mundo diferente, um mundo sem meninos, sem guaiamuns e sem ídolos de alabastro.

13/01/14

domingo, 5 de janeiro de 2014

Cajuína, a cara do Nordeste.


sábado, 4 de janeiro de 2014

O NOVELO DO NÃO E OS CÃES DO SIM


Considere a vida em seus polos.

Nasci, e uma vida que não era eu
veio não sei de onde e me ocupou com um corpo,
um nome e uma história,
e me calou com um grito.

Já sobre a morte, perguntam-me “qual morte desejas?”,
e digo um silêncio que responde
“desejo que ela me venha quando a deseje”,
que morte é clara feito chuva e feito sol,
é feito beijo na boca — não pode ser misteriosa.

De misteriosa já basta a alma,
que sempre é só insinuação, que sempre é silêncio,
que sempre aponta o dedo em riste
para o grande risco que são a vida e a morte.
A alma é dessas criaturas que juntam búzios na praia,
que chutam ondas e bebem vento,
que são tristes em dias de sol e gargalham em tempestades.

A alma é a parenta silente, é a pessoa-mobília,
é o corpo enorme da ausência
que vai juntando todos os pedacinhos pequenos de silêncio
até formar um grande novelo redondo de não
e te invita, como a um gato, a rolá-lo ignoto
pelo chão batido da casa.

Porém, no espírito escuro do quarto,
é ela que fica acordada, ao lado da rede,
contendo em correntes e coleiras os cães da certeza,
todos prontos a rasgar-me a carne e a comer-me os sonhos.

Não a desvendo, e estendo o indecifrável a todo o resto,
que só assim lhe pinto alguma beleza:
de um lado, salta, corre, atropela e dorme bêbada a vida;
de outro, deita preguiçosa e entediada a morte;
e só é possível suportar-lhes a companhia
pondo-lhes a máscara e o véu do impossível escrutínio
e tratando-as como fantasmas de gaveta,
como parentes mortos cujos segredos se foram com eles.

04/01/14