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quarta-feira, 3 de abril de 2024

PALAVRA SEM NOME

Albert György - Melancholy
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(ah, poesia…
se eu de ti me ria,
o que, sem ti, eu faria?)

procura no som de tua boca,
no texto que te vai no sangue,
o verbo sem letras que evocas,
que nunca disseste, mas ganes.

borraste-o de tuas plaquetas?
queimaste-o quiçá por engano,
ateando nas bibliotecas
o fogo melhor de teus anos?

comeste-o, faminta de ti,
inane de amor e de fúria:
no oco do ventre, o carpir;
na boca e na voz, a loucura?

se a alma que é dele era a tua,
verdade que nunca o disseste?
se é assim, no inferno, procura
o espelho em que tu adormeces.

mataste o que tu não formaras,
mas te sustentava, invisível:
o leito em que ancoraras
teu corpo, tua nave impossível.

ausente, a palavra inda existe:
viver, talvez interpretar…
a ti, o tempo não permite
saudade ou dor que vingará

a morte, que, por ti, mataste;
a vida, que não mais terás.
sem ti, não és mais o estandarte
de tua nação insular.

agora, que a palavra existe,
tu és a ausente que está:
visita sem ter quem visite,
memória sem ter quem lembrar.

03/04/24

VALE SECO

tempo,
não arraste aqui as suas águas
represadas de décadas.
houve motivo para as rochas,
as árvores e o entulho,

e não lhe cabe legislar
sobre quem não lhe deseja o fluxo,
a torrente
ou a seca.

não umedeça quem quer a boca seca,
não afogue quem não sabe nadar,
não banhe
quem quer a sujeira plástica do mundo.

fique parado,
evole-se, acumule-se no céu
das mocinhas chorosas
e chore sobre quem lhe deseja
alguma precipitação,

mas não venha molhar os pés
que escolheram as profundezas da terra
para dormir.

pare, tempo,
e grave no relógio de pontos
o instante exato em que a sede
parou de lhe ter necessidade,

o momento preciso
em que a vida estancou,
para que me fiquem claras na memória
a duração
e a partida,

e eu possa me presenciar,
inerme e seguro,
inalcançável às marés
e aos pântanos
que são tão de sua natureza infligir.

deixe meus olhos assim,
esvaziados,
e poderei saber em mim
de todas as partes,
sem o temor do naufrágio
e o enjoo do bordejo.

deixe-me, tempo,
que preciso sacar-me de todas as horas.
há de se fazer o silêncio
de suas correntes
para que eu me liberte
e seja terra firme, afinal.

30/03/24