Número de sílabas (desde 11/2008)

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segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

DOIS SÓIS


Cícero R. C. Omena - Catadoras
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Existe uma grande diferença
entre o sol que me entra pela janela
que é meu
e confere cor a tudo que sua luz toca
e me diz nas retinas
da beleza de minhas plantas
e dos cabelos de minha filha

e o sol que diz nas costas
dos catadores de material reciclável
dos pedreiros sem carteira assinada
dos mendigos e abandonados
as cores da cidade
e a verdadeira aparência
do amor de deus

O primeiro chega com vento
e vaza pelas frestas do telhado
Romantiza os cantos da casa
e diz ao mandacaru no meu quintal
que já é hora de flor

O segundo chaga, punge e mata
quem não é patrão e alguns empregados
porque a maioria é semente bruta
que adia e realiza a morte
que se acostumou a chamar de vida

Dois sóis, superpostos em perspectiva
brilham num só
Menos são meus olhos que os dividem
que a injustiça deste mundo
que os conjura

Cruza a rua, além do parapeito
onde meus pequenos cactos, devidamente hidratados
fotossintetizam
e me apaziguam
o Seu Aquino, 35 anos, já avô
puxando sua caçamba feita de uma geladeira
o qual me vendera por 20 reais
um patinete velho e verde
com que presenteei meu filho

Dois pobres, ele e eu
mas cada um, nesta flora selvagem da urbe
reflete luzes diferentes
que se prismam em pequenas distorções de luz
por este horroroso vitral metropolitano
— pequena e miserável catedral provinciana
onde ainda se rezam nas missas
novenas em prol da moral
e dos bons costumes

10/12/23

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

DEIXE O DIA


Deixe o dia respirar um pouco
Que cada segundo, minuto e hora
Tiram-lhe um pouco o fôlego 
Quando não o asfixiam

Abra uma janela, uma cerveja, um abraço
E deixe o dia respirar do que não é ar
Mas sim perfume, fragrância do momento
Que você criará dentro dele:
Uma ampola, um balão
Do oxigênio que roubam todo o tempo aos instantes

Deixe o dia esticar as pernas
Quebrar a ampulheta
Enfiar-lhe os pés n'areia
Respirar do mar sem turistas
Sorrir para um cão
Reciprocamente

Deixe o dia passar
Num'avenida sem relógios
Nos semblantes sem pressa
Deixe o dia morrer no mar, antes que o Sol o mate
Menos de tédio que de saudade

Deixe o dia sobre a mesa
Deixe-o saber que está só
E que tudo está bem

Deixe o dia respirar
Desalvoroçado
Feito o mistério da moça que nada olha
Que nada sonha
Numa eternidade breve que mata o tempo
De inveja e de amor

07/12/23

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

DESENCAIXE



Todo dia, um pedaço de mim sai de casa
Vai à rua, pega ônibus, toma sol
Compra café
E se perde como aquelas peças de quebra-cabeças
Do Corcovado e do Cristo Redentor
Que minha mãe me comprou
Tirando do dinheiro reservado ao mercantil

Cento e vinte peças, todas miudinhas

Muitas mais sou eu

Muito mais me perco

A despeito de todo o desencaixe

30/11/23

terça-feira, 7 de novembro de 2023

MORTE À VALÊNCIA DA SAUDADE

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(Poeminho linguisticoso e recalcado de fim)

A Gramática determina
que a saudade é valente
Palavra de substância, de um argumento só,
o qual, preposicionado por um de,
a complementa

Já eu digo
que valente sou eu,
cujo nome, avalente e intransitivo,
nada completa

E que o que foi, indiretamente, objetificado,
que jaza! entre os tantos nomes outros
que actam apenas semânticos
nas ruminâncias da memória

Saudade não tem objeto
Saudade não se mata
nem vira livro

Saudade se organiza entre os outros abstratos inúteis
no concreto dos neurônios mais velhos,
onde não há nenhuma sintaxe possível
de complementação

Ao final, é verbete apenas,
irremissível e estrutural
que a língua professa lacônica
e — por que não? —
saudosisticamente

07/11/23

segunda-feira, 1 de maio de 2023

CRÍTICA DE "THREE THOUSAND YEARS OF LONGING"

 

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    Mais uma de George Miller! Depois das franquias “Mad Max” (“Fury Road”, de 2016, é um dos melhores filmes desta década) e “Babe” (1995), de “As bruxas de Eastwick” (1987) e “O óleo de Lorenzo” (1992), ele produziu, escreveu e dirigiu em 2022 o excelente “Three thousand years of longing”, com Tilda Swinton e Idris Elba. Antes de mais nada, uma reclamação: eu me recuso a aceitar o título vertido para o português, logo não vou mencioná-lo aqui. Não sei o que se passa com os responsáveis por essas versões! Dependendo do filme, elas acabam afastando o seu público-alvo com uma repetição exaustiva de clichês que eles julgam adequados para cada gênero: se é romance, tem de ter “amor”, “paixão”; se é ação, tem de ter “mortal”, “fatal”; e por aí vai. Por que não traduzir, simplesmente? Qual seria o problema com “Três mil anos de saudade”? 

(Clique na imagem para ampliá-la.)
 
    Pois bem. O filme é, como toda boa grande obra contemporânea, um passeio por alguns gêneros (romance, drama, fantasia), com algumas intertextualidades descaradas e outras, muito sutis, e muita, muita metalinguagem, e acho que é aqui que ele brilha mais: o metatexto não é cinematográfico, mas sim literário, ou seja, a jornada da personagem principal é, simultaneamente, diegética (visto que ela assume a perspectiva sobre si, narrando-se à medida que evolui) e exegética (pois essa própria jornada é composta de uma constante análise literária sobre si mesma, num dilema entre realidade e irrealidade). O roteiro, coescrito por Augusta Gore, é baseado no conto “The Djinn in the Nightingale's Eye”, de A. S. Byatt, e traz Swinton como Alithea Binnie, uma “expert” em Narratologia que, desde criança, lida com algo semelhante à esquizofrenia, porém, como se desenrola em uma narrativa fantástica, o roteiro trata suas visões como personagens literárias com as quais ela convive em sua profunda solidão. As estórias tomam o lugar de sua própria vida, soterrando tudo que não seja pertinente à sua profissão, na qual é uma autoridade mundialmente reconhecida.

    Em um dado ponto, bem no seu início, após uma crise e um desmaio de Alithea em uma palestra em Istambul, o filme abraça a fantasia de que dava sinais nos primeiros minutos, e George Miller nos conduz sob os questionamentos entre realidade e irrealidade, alucinação e mágica, tudo isso, graças ao paradoxo que a rapidíssima caracterização da personagem de Alithea nos apresenta: ela é, simultaneamente, uma cientista e uma esquizofrênica e, dadas as estratégias que desenvolveu para lidar com sua condição, possui um alto grau de suscetibilidade e de controle sobre os seus episódios (os primeiros minutos são guiados por ela, como narradora de uma realidade alegórica de sua própria realidade, e, nesse momento, eu me lembrei do ótimo “Don Juan de Marco” — 1995 —, de Jeremy Leven). A partir daí, passamos quase uma hora e meia sendo conduzidos por narrativas dentro de narrativas, num jogo de argumentação por parte de Djinn, personagem de Idris Elba, e dúvida por parte de Alithea, até que ocorrem a aceitação e a entrega total a toda a personalidade que ela havia soterrado sob camadas e camadas de escapismo e autoproteção. Vale aqui ressaltar que uma das várias intertextualidades do filme é com a mitologia ocidental e a oriental. Alithea (Aleteia) é uma personagem da mitologia grega que representa a verdade suprema (a manifestação daquilo que é ou existe tal como é), e Djinn (gênio) é uma personagem das mitologias pré-islâmica e muçulmana, equivalente (mais ou menos) ao “dæmon” grego. Ironicamente, a verdade de Alithea precisa ser revelada, o que só acontece depois que ela abre mão de todas as suas dúvidas sobre Djinn, aquele que, em todas as histórias de que se tem conhecimento a seu respeito, existe apenas para enganar e ludibriar as pessoas com a realização falsa de seus desejos mais verdadeiros.


(Clque na imagem para ampliá-la.)

    George Miller, Tilda Swinton e Idris Elba conseguiram equilibrar numa história o encantamento, a filosofia, o romance e o drama numa mistura que me capturou do início ao fim e que permaneceu, durante a escrita deste texto, frutificando em possibilidades interpretativas que, certamente, permanecerão aqui. Vi “Three thousands years of longing” com a sensação de estar vendo algo novo e original, muito provavelmente, devido à mistura inusitada de narrativas que ele ia me recuperando da primeira à última cena. Acho que foi uma postura diferente, andando pelos mesmos caminhos, que acabou por criar uma paisagem completamente nova.

     Assistam crédulos.

01/05/23

NÃO TENHO TEMPO

(Clique na legenda para acessar a página de origem.)
 

As horas me chamam.
A raiva e a fome, a tesura e a inércia, a solidão e as hordas,
elas me chamam.
Não tenho tempo.
Não tenho tempo de sangrar meu nome na boca alheia.
Não tenho tempo de esfacelar-me em relações
nem de esfacelá-las,
não tenho.
Tudo é muito breve, e o sal
— que habita tanto a onda quanto a lágrima original
e a fibra seca do cadáver —
está em meus pulmões, meu hálito e minha voz
e crispa na minha sombra e no meu rastro
como um rastilho de pólvora.

Não tenho tempo de pensar no que é cáustico ou doce
— minha boca não tem tempo para o que não é palavra,
por isso as guarda todas
e reza nelas a voz que não é minha,
que nunca foi minha,
porque não tive tempo de dizê-las.
Não atendo a porta, o telefone, a súplica, o insulto.
Não tenho tempo para as palavras
que não são verdadeiramente minhas.

O eu que trabalha e dialoga
e o eu que dá bons-dias e que manda à merda,
também não tenho tempo para eles.
Tudo é muito breve, e as horas me chamam:
não tenho tempo para reprises,
apesar do moto-contínuo da vida.
O novamente das oportunidades perdidas não me interessa,
e o novo é um átomo num universo de possibilidades.
Não tenho tempo para pequenezas,
e das grandiosidades que cuide a metafísica.

O presente é enorme e me requer inteiro
— o meu tempo é a palavra indefesa, anacolútica,
enjaulada na infinita enciclopédia de um tempo maior,
alheio a mim.
O passado não é senão fumaça,
e o futuro, o vento que ainda não é ar.
Não tenho tempo para o que não é chama,
não tenho olhos para o que não é luz.
Por isso, leio-me atentamente,
infenso ou exultante ao fluxo do que sou,
e nada mais:
pois o que sou não tem tempo para o que não fui;
o que sou é o próprio tempo,
tempo este, sim!,
que tenho infinitamente.

01/05/23

quarta-feira, 12 de abril de 2023

DEVAGAR

     Devagar, pequenas dobras se desfazem, e o pano do lençol vai pouco a pouco perdendo a sua história: o vinco onde habitavam sobras das melhores noites, uma vez planificado, esterilizou-se; pequenas manchas caligrafadas em silk-screen pelos corpos, compondo a sua própria materialidade e transcendência, craquelaram-se em pó e foram sacudidas pelo descaso das mãos; fios de cabelos, de pelos e penugens foram-se evolando para o espaço, que é o ponto em que o limpo vira sujo, e o amuleto, tabu.
     Devagar, no arrumar-se o quarto, vão-se apagando as letras de minha recentíssima biblioteca. Novamente branqueadas, as páginas só existem, e nada mais. “É necessária uma certa medida de amnésia”, pensei. E esqueci-me disso imediatamente. Mudando as coisas de lugar, retornando-as ao novo que era o velho, refazendo as pegadas à moda pioneira, fui devagarinho matando-me e enterrando-me e lavrando a terra sobre meu corpo-chão para repatriá-la novamente a mim, como se ali houvesse invadido e perpetrado genocídios aos ilegítimos. Balela. A cama, em seu porquê, era uma república inexpugnável. Suas pernas sólidas de cerejeira, seu estrado reforçado no centro e nas periferias, sua cabeceira fluvial… tudo me clamava de volta, estabelecendo-me, ressituando-me, ressuscitando as noites dispersas.
     Devagar, fui-me deitando. O corpo dolorido recordava o seu auge, irrompendo descontextualizado no mundo. Devagar, fui-me lembrando e lembrando… já fui isso, já fiz aquilo. “Poucos o foram ou fizeram-no”, conforto-me entre as câimbras e as dormências. “Somente eu fui eu”, sentencio, por fim.
     Devagar, as histórias de quem fui vão tecendo o lençol que me protege abaixo do teto da chuva e do frio lá de fora. “Aqui é bom, mas também é frio”, lamento um pouco. Devagar, a noite vai-se reabrindo em suas pequenas luzes. Destacam-se no meio do impossível os sonhos de vingança e os de terror, e todos me divertem o suficiente para eu querer acordar dentro deles. As lembranças, meio longe, sempre figurantes. Como têm de ser.
     Devagar, sem que eu queira ou permita, a biblioteca se reconstrói, e se recompõem os volumes e os tomos. A sede me acorda dentro, novamente, de mim. E a imensa sala de inutilidades de que sou feito reclama, como há apenas quatro horas, por uma faxina que começo a aceitar ter-se tornado a atividade central da rotina doméstica que, devagar, vem-se tornando minha escravidão e, ao mesmo tempo, minha indolência.

12/04/23

terça-feira, 28 de março de 2023

NÃO HÁ NADA LÁ FORA



Não há nada lá fora.
Nem amigos, nem punhais.
O capim roxo entre as estrelas silencia,
e os enquadramentos opacentos
— a miopia do desejo —,
nem que exatíssimos,
nada mostram.

Vive aqui, em desterro,
na inóspita mesa da cozinha,
na caneca de café esquecida,
entre a escuma fria e ressecada,
o acúmulo das horas do dia,
deste dia, de tantos outros dias,
em que desejei estar lá fora,
andarilho, transeunte, enturistado em minha própria terra.

Lá, nas possibilidades extremas,
no mágico do mundo,
vive um eu que não permito,
um audaz que acorrento,
um herói que acovardo.

Porque não há nada lá fora que o justifique
ou que o mereça
ou que o conforte.

Lá fora, o mar é dos navios de carga;
o vento, dos voos internacionais e domésticos;
o chão, do trânsito de entregadores de aplicativo
e das carretas articuladas que saem dos portos
e alimentam os povos.

Não, não há nada lá fora
que valha a insônia seca no leito seco
da caneca seca do café
que me anoitece de luzes o estômago
e que me põe no sangue um novo eu
a cada vez em que me abraça.

28/03/23

terça-feira, 21 de março de 2023

VISSUNGO I

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o galo canta

no terrero, já é hora
num se prucupe
o dia já vem cuidá

im toda paite,
é preda, é fogo, é purugunta,
é brasa quente,
o trabaio que Deus dá

mim levimbora,
ô mamãezinha, na cacunda,
pra dendágua da cascata eu i morá
mim cuida eu,
ô mamãezinha, mim carrega
presse mundo os meus pé num vim quebrá

21/03/23

quarta-feira, 15 de março de 2023

CRÍTICA DE "O MENINO, A TOUPEIRA, A RAPOSA E O CAVALO"


     O vencedor do Oscar 2023 de melhor animação em curta foi O menino, a toupeira, a raposa e o cavalo, filme inglês dirigido por Peter Baynton e Charlie Mackesy, inspirado no livro homônimo escrito por este último, em 2019.
     Li o livro e vi o filme e tenho de dizer que eles dialogam com alguém que já não sou mais, porém que, graças a eles, sei que não está morto, apenas muito desgraçadamente melancólico. O filme, principalmente, cavou umas lágrimas que tinha me esquecido, há muito, de chorar.
     Eu vi dublado (que espetáculo de dublagem!), logo não posso dizer nada das interpretações do quarteto Jude Coward Nicoll (o menino), Tom Hollander (a toupeira), Idris Elba (a raposa) e Gabriel Byrne (o cavalo).
      Contudo, é um filme lindo, uma obra-prima de delicadeza que preservou os traços do livro, com diálogos e silêncios perfeitamente certeiros em seus significados, e que tem na diversidade, na amizade e na gentileza (mesmo e principalmente nas adversidades) a sustentação de uma história que é feita pra ser sentida muito mais que compreendida.
     O único (mas muito marcante) problema é a sensação de abandono que dá na gente quando termina, como se alguém muito amado partisse de nunca mais voltar, o que não é, de todo, apenas uma sensação.
      Assistam leves.
15/03/23

domingo, 12 de março de 2023

"GUILLERMO DEL TORO'S PINOCCHIO"


     Minha primeira reação a Guillermo del Toro’s Pinocchio (existem vários motivos pra eu citar aqui o título original; explico depois) foi de enfado: “de novo, mais um?”. A segunda foi de grande incômodo, mas daqueles que só grandes obras conseguem gerar, porque foi aí que a enorme diferença da adaptação do diretor mexicano se fez valer. Antes de construir a personalidade do Pinóquio, a qual, convenhamos, já foi batida e rebatida nas adaptações anteriores (e arruinada, em algumas), ele se deu ao trabalho (e que trabalho!) de construir a do Gepeto (David Bradley, maravilhoso), mais especificamente, as falhas nessa personalidade, que o tornam uma personagem densa, identificável em nós. Foi daí que me veio o incômodo, e é aqui que eu escolho não estragar a experiência de quem vai ver essa obra-prima, aliás, sugiro que não leiam nenhuma resenha dessas que “entregam” a trama, visto que Guillermo del Toro transformou uma historinha tão batida e maltratada ao longo das esterilizações hollywoodianas em um dos melhores filmes de toda a sua carreira (aqui, o principal motivo de eu ter citado o título original: esse filme é DELE). Desde o australiano Mary and Max, animação também em stop-motion, porém escrita e dirigida por Adam Elliot e produzida por Melanie Coombs, em 2009, eu não sou tão impactado por um filme dessa técnica. Tão maravilhoso quanto aquele, Pinocchio traz também Gregory Mann (como o protagonista), Ewan McGregor (o grilo falante que é ironicamente fã de Schopenhauer), Ron Pearlman (como Podesta), Cate Blanchett (magnífica como o macaco Spazzatura), Chistoph Waltz (como o Conde Volpe) e Tilda Swinton (diga-se aqui de passagem que o del Toro tem um talento inato pra criar Mortes que entram pra história do Cinema). Pra concluir, a minha terceira impressão sobre o filme é o arrebatamento. Imediatamente após a identificação (a minha, pelo incômodo já citado), o filme me capturou e não largou até agora. E acredito que isso não vai acontecer mais. Assistam sabendo que vão chorar, especialmente após a catarse.

12/12/2022

quarta-feira, 8 de março de 2023

SERAFIM

 

(Citação de O. de Andrade em Serafim Ponte Grande.)

O Brasil é uma enorme segunda-feira que entardece num domingo.
 
06/03/23

"AS PESSOAS SÃO INCRÍVEIS" - UMA CRÍTICA DE "A BALEIA", DE ARONOFSKY

 

     Uma vez, o excelente crítico cearense de cinema P. H. Santos disse (sobre o Pinocchio de Del Toro) que tem filmes que já nascem clássicos. A baleia é isso, devastadoramente. Baseado numa peça premiada de 2012 de Samuel D. Hunter, esse filme de Darren Aronofsky (Cisne negro, Réquiem para um sonho) nos destrói e nos reconstrói com a delicadeza e a potência que não são comuns nesta época de superficialidades. É descaradamente metalinguístico e intertextual, de modo que exige de nós algum conhecimento mínimo de Moby Dick, obra na qual colhe elementos intra e extratextuais, pra que ele atinja o ponto certo de nossa sensibilidade. Aconteceu, pra minha sorte, que o livro de Melville me catou muito cedo, ainda criança, frutificando em uma enorme tatuagem no meu braço esquerdo e no segundo nome do meu primeiro filho. Entenda-se, daí, o grau de destruição, no melhor sentido, à qual esse filme acaba de me submeter. Brendan Fraser fez não só o trabalho mais importante (em termos de intensidade e identidade) de sua carreira, mas entregou uma interpretação que (tenho certeza) só poderia sair de onde dói, de onde se estertora, de onde se morre. A trilha sonora é o que conduz tudo, e, assim como vários outros elementos intertextuais, concorre pra nos conduzir ao mar, às gigantescas tempestades e à tensão da morte onipresente que são evocadas a partir do clássico de Melville. Há também uma similaridade com Mar adentro, filme de Alejandro Amenábar de 2004, mas não vou comentar isso pra não estragar a experiência.
     A baleia é desses filmes que, uma vez que já se sentiu o peso da vida ao menos uma vez, transforma o espectador permanentemente. Sugiro que apenas os que não se envergonham de seus sentimentos (caso os tenham) o vejam no cinema. Os demais, ele os encontrará inteiros e os despedaçará com a força e a fluidez de uma enorme onda, e é bom terem à mão algo que não os permita afogarem-se.
     Assistam sozinhos.

25/02/23

PAUSA PARA UM CAFÉ

Jongensspelen (aprox. 1860-1870) – Jogos de meninos anônimos: histórias para jovens.
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— Chegamos bem perto desta vez.
— Nunca tão perto, nunca tão longe. De onde estamos, há mais léguas entre nós que uma vida inteira de caminhada.
— Mas eu te sinto aqui.
— Esse não sou eu.
— Quem, então? Eu próprio? Meu reflexo, minha criação?
— Olhando daqui, estás só. Percebo-te outro, indissociável de ti, porém, outro. Tens mudado muito.
— Não é a mim que olhas. Estás de cabeça baixa.
— Pois é. É a ti que olho.
— Não pode ser! Vejo-te diante de mim! Quem és tu, senão tu mesmo, tu, que eu vejo?
— Teu olhar também não é o mesmo. Ele te ilude as medidas. Crês mesmo no que vês?
— Queres me enlouquecer!
— Não. Como disse, estás só. Nisso, em tudo, em ti. Só, como sempre.
— Então, com quem falo? Com quem grito? A quem tenho, como uma sombra, manejado minha caminhada?
— A mim.
— Então?
— Não existo mais sob teus olhos nem mais sou a teu lado. Tenho me movido muito pouco, alguns passos, apenas. És tu que giras e danças e saracoteias em carreiras infantis. Eu apenas cresci. Tu…
— Espera! Não cresceste! Vejo-te aqui, a meu lado, à minha altura.
— Já disse: estás só. Escolheste estar.
— Estou louco, então! Falo com quem não existe, vejo o invisível!
— Não. Eu existo. Tu, por outro lado…
— Estou morto?
— Não. Pior. És memória.
— …
— Terminei meu café. Podes voltar a brincar agora.
— Contigo?
— Como sempre.
— Pega-pega?
— Polícia-e-ladrão.

08/03/23

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

O PROBLEMA DO CORAÇÃO É QUE ELE BATE

Jaseon deCaires Taylor - The Garden of Hope
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Desacostumado.
Pedaços de cores
reclamam olhos,
e onde estão?
— invisíveis no tempo.
O cheiro da terra, das roupas, do sol!
Há uma guia,
um cordame em que a memória se desondeia.
Um rio.
As águas batem cada vez mais forte,
e as cores vão se desvelando em punhais de luzes:
uma espiral cadente feita de lâminas brilhantes,
um vórtice aniquilador
do tempo presente.

Enfim, deságuo, e o mar é enorme,
e as ondas, gentis.
Estou sozinho, e tudo é horizonte.

Escrevo histórias
de peixes e abismos,
deito tudo no leito
e descanso.

E eu sei que é unicamente meu
o eu que ali adormeço.

22/02/23

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

QUARTO MINGUANTE


Não espero que me adormeça
— há aqui já noites suficientes.
Velo eu mesmo o cadáver do sonho,
fantasma de si mesmo, que hoje assombro.

Dentro das luzes, a mística persiste,
e me cego de excessos
até que me desapareça de vez
a carne da memória dele
no mundilhão de novidades.

O sono vem, ceifa o que resta,
e, todas as noites, vou desaprendendo a dormir.
Sou no mar o Sol que se pôs
antes da primeira aurora,
antes da Serpente,
antes de Deus.
Sou longe,
Mas estou onde sou.

Guardo apenas a distância,
que aprendi que sou eu.
A noite, esta, olha o esquife ao meu lado
e me diz que não há mais sonhos,
mas que o pesadelo acabou.

08/02/23

domingo, 5 de fevereiro de 2023

SOB O CÉU

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Então vamos dizer
que a noite só é noite
porque há as estrelas
e a lua, e as almas, e a insônia?
Mas,
não é a noite mais
o modo como se desnudam
a pele sob a roupa
e a carne sob a pele,
e a alma sob a carne
ante a liberdade ou o inferno
de se estar só?
A noite é um útero
que vestimos para dormir
antes e depois de nascer
compulsoriamente.

05/02/23

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

CANTOCHÃO

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   Deitou o copo na mesa, levemente. Reconheceu, no xadrez da infância, a concessão da derrota que lhe ensinaram no internato: “tombe-se o rei!”. A mesa do boteco servia-lhe perfeitamente de tabuleiro: bispos hereges, torres de alvenaria caiada e muitos, muitos peões cascabulhados pelas longas partidas da vida. Havia ali também muitas rainhas, todas de coroas preteridas. O baralho da mesa ao lado lhe despertou as copas que tão bem conhecia. Também, algumas de paus e de espadas de sua meninice nos terreiros. Mas, de ouros, nunca! Nenhuma! Nem ela!
   — Mais uma aqui, por favor.
   Já passara do ponto do crédito havia muito. Da pena, também. Virara um “costumeiro”, um item ornamental, um identificador do Santa Edwiges, o bar de Seu Xavier. Sem ele, a mesa do choro não tinha para quem puxar o Odeon nem a Escadaria. Ele fluía com a tarde, ronqueava com a voz gostosa seus salves, sempre carinhosos, às figurinhas ali também desgastadas pelo tempo: Martins, o do violão sempre prestes, o bêbado Tarcísio, coro sempre certo à dor de cotovelo das dez, a cambista Heloísa, que sempre o esperava chegar para encerrar atrasada as pules, e o garçom Liberato, que aprendera a cuidar da dignidade daquele mistério. Parecia ser a licença que se dava ao Santa para ser um bar: um alvará, uma bênção. Até mesmo a clientela encorpava depois de sua chegada. A sinuca, inclusive, só ficava séria depois que ele cumprimentava os jogadores, que passavam a casar as apostas na mão da Heloísa. Era a alma do lugar, uma essência que justificava frequentarem-no os bambas e os febris, as memórias que tomavam zinebra no balcão e as novidades que gargarejavam cervejinhas na calçada de anedotas. Sentava-se à esquerda da porta, ali pelas seis, após a permissão do angelus do rádio do Xavier.
   — Aqui, Seu Cordeiro. O Seu Xavier perguntou se vai pagar.
   — Diga a ele o de sempre: quem manda é o dia.
   — E o dia foi bom?
   — Me trouxe até aqui. Como sempre.
   — Vai de canja hoje?
   — Deus lhe pague, Liberato.
   — Ô Seu Xavier, mande uma canjinha aqui pro Seu Cordeiro, que ele precisa.
   O violão chorou um sambinha, chegou um pandeiro da mesa dos novatos, Seu Xavier sacou o cavaquinho e o rendeu ao grupo, pedindo “manda uma do Paulinho, gente!”. A música ali era sempre boa. Arrumaram Desilusão, e o peito de Seu Cordeiro batucou atrás, meio surdo. Parecia adoçar a derrota no sangue a cada bombada, sincopando ali o regional improvisado.
   Chegou a canja com um pão do dia. O primeiro de seu dia. Seu Cordeiro parecia um griô, na sua elegância imane e inata de preto-velho. Cruzava as pernas frágeis para fora da mesa, sentado de lado na cadeira, recostado à parede, que guardava, com a sua mancha de suor e poeira, o seu lugar em sua ausência.
   — Os meninos querem que o senhor cante. A rapaziada nova.
   — Deixe o santo baixar, Liberato. Ainda não cheguei.
   — Deixe o dia lá fora, meu camarada. Aqui dentro, é sempre noite. Dona Marlene perguntou se está boa a canja.
   — Melhor que a vida, meu amigo. Entregue a ela uma lembrancinha, faz favor?
   Deu a Liberato um pacotinho de papel-bíblia, uma página arrancada de um catecismo velhíssimo.
   — Diga a ela que achei.
   Aquilo não era uma novidade, exceto pelo último pedido. Sempre levava babilaques, coisinhas, presentinhos para Seu Xavier e sua esposa, Dona Marlene. Porém, o segredo impresso no “achei” ativou a experiência malandra de garçom acumulada por Liberato em décadas de torpedinhos e leva-e-traz entre as mesas.
   — O que é isso, Seu Cordeiro?
   — É um pedido dela. Uma encomenda pessoal.
   — Pessoal? E se o Seu Xavier quiser saber o que é, digo o quê?
   — Que é de antes dele. Que não se preocupe não, que nenhum mal foi feito. E que este negro aqui só lhe guarda amizade e gratidão. E que minha vigília e minha obrigação finalmente acabaram.
   Era coisa demais para o velho garçom. Ainda tocavam o “danço eu, dança você”, e Liberato intuiu. Pensou em devolver, mas adivinhou a proporção do momento no olhar de Seu Cordeiro, que nunca vira tão expectante em sua mansidão. Baixou a cabeça, penitente. Seu Cordeiro enxugava a última laminha de caldo da tigela com o miolo do pão, que levava à boca como uma hóstia. O sagrado de tudo aquilo que, sem ser dito, reverberava nas paredes do Santa Edwiges convenceu por fim o garçom de levar a cabo aquele rito.
   — O senhor ainda vai voltar? — perguntou.
   — Eu nunca fui a lugar nenhum, meu amigo…
   Apesar de suas roupas e pele estabelecerem o oposto, Liberato entendeu profundamente.
   — Pois adeus, meu velho. Fique com Deus.
   Cruzou o bar convertido, por seus passos, em uma nave, parou de cabeça baixa à frente do balcão, a mão posta em oferenda:
   — Seu Cordeiro mandou pra senhora,
   — O Cordeiro ainda acha que tem de pagar alguma coisa aqui? — sorriu vermelho Seu Xavier. — Tu acha, Marlene?
   Dona Marlene, de pele branca salpicada de sinaizinhos da idade, reconheceu aquela página amarelada de catecismo quase imediatamente, translucidando-se. Disfarçou o tremor e ergueu o olhar para o marido, que não entendeu aquele pedido de perdão. A mesa do choro já tinha engatado Não tenho lágrimas, e o bar ficara frio de repente. Lá fora, uma chuva fina lavava um corpo negro, delicadamente deitado no outro lado da rua, a mão esquerda ao peito, as pernas cruzadas, como se houvesse descido em rodopio de mestre-sala. Um grito seguiu-se a outros, precipitando todos ao cruzamento esvaziado de trânsito, fremindo no ar os ai-meu-Deus de suspensão.
   Seu Xavier nunca entendeu a explicação da esposa, que sobreveio e sobreviria até o fim sem lágrimas, sem medo e sem culpa, ainda que purpurecida de saudade:
   — Foi antes, quando eu ainda era mocinha, no internato. Padre Honório que me deu, e eu tinha perdido. Seu Cordeiro achou não sei como… Não sei como.
   O pequeno terço cor de rosa, com ave-marias peroladas e crucifixo de osso, fazia ainda menos sentido naquela fatalidade.
   No dedo anelar esquerdo do morto, uma antes nunca percebida aliança de finíssimos acabamentos, filigranada de ouro, sepultava ali tudo: a vida, o samba, o bar, a morte. Sobranceava na neblina um vento que pareceu a Liberato, naquele momento, um cantochão assobiado.
   — Adeus, meu velho — repetiu.

01/02/23