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quarta-feira, 25 de agosto de 2021

DO TEMPO E DO TRAÇO

Foto: Fernando de Souza
(Clique na foto para ampliá-la.)

o tempo é juntura
com que tudo faço:
do rasgo, um laço
de fina costura,
que, só no momento
em que a faca fura,
cura o ferimento
com seu próprio aço.

novelo de tempo
com que me enlaço:
me cubro o cansaço
e me reinvento
— meu novo modelo
de renascimento
é estar sempre em sê-lo
da cruz ao regaço.

compões o cimento
do chão dos meus passos
— do meu erro crasso
tu és pavimento.
também és mansões
e compartimentos:
silêncio e canções
do fim donde nasço.

25/08/21

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

CURTINHOS

 
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I
minha cama é uma jangada
de vela arriada,
por quatro âncoras,
ancorada
no fundo noturno do mar.

II
aqui era bom
quando ainda não era aqui.

III
embaixo dos carros,
gatos mortos e cães e pombos
evaporam.
tão certos são de chegar ao céu
como a água que se despede da lama.

IV
quando tinha dez a doze anos,
não imaginava
que me faria tanta falta.

04/08/21

ENTRE OUTRAS COISAS

(Clique na imagem para ampliá-la.)

desde menino, sei de coisas
que só as coisas sabem, por exemplo:
nadejar e tudejar
no terreiro amplo do espaço das tardes
como as terras, os ventos
e a indiferença das plantas;
andar a esmo nas importâncias
sem me dar delas;
caber no vazio
quando me apercebo dele;
e inexistir
na via expressa dos afazeres humanos.

04/08/21

DE CORPO E ALMA

 (Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

embora a alma dependa intimamente
do que não é alma,
o corpo, essa não-alma, depende
inteiramente
da ausência da alma noutro corpo,
do vazio que por ele será preenchido,
do desejo ardente de si mesmo,
de que é tão ausente.

04/08/21

domingo, 1 de agosto de 2021

AGOSTO

(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

por aí, no meio do mundo,
ainda há jogos e lutas rebarbando as pessoas.
nos bares e botecos, meus amigos pelejam contra a morte,
uns com os outros.
todos resistem, todos soterram os silêncios
sob camadas e camadas de palavras encharcadas.

a lama das palavras é fértil.
dela, nascem sonhos de dias melhores
e decapitações públicas.
no topo, no cogulo dos sonhos, um pomo imundo,
vermelho e vagabundo,
serve aos morcegos e periquitos
o sumo vivo da terra molhada,
a carne-e-sangue da comunhão da miséria
com o ódio
de se ver na noite, esparramado e invisível,
de se feder no ar, irrespirável:
a imperceptível hemácia
do sangue da revolução.

triste corpo, pobre corpo, que sangra em silêncio
há tanto tempo,
alimentando vermes e vampiros.

resta o sol, esse dia colonial,
essa alvorada em trombetas que anuncia mais uma marcha,
mais uma jornada de trabalho,
mais um milagre
que nos ressuscita e iguala a todos num mesmo corpo,
numa só máquina
— em que somos tudo, menos gente.

01/08/21