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domingo, 15 de fevereiro de 2009

O MAREJAR



Deus está na ausência do homem.
Mas como pode ser que, quando vejo o mar, eu veja Deus se eu ali estou?
Então é que Deus está ali mais amplo, mais claro, mais perceptível?
Ou não é o mar nem as ondas nem a ausência de todos os homens o que vejo?
Estaria Ele na minha ausência própria?
Ou o contrário?
Será que é em mim?
Eis o mar, e o que vejo, tudo para quanto olho, e para dentro, para dentro,
E vêm as ondas, e quebram nas pedras, e lambem a areia,
E espumam, e se revoltam, e escorrem para o ventre ermo, e retornam,
E saltam seus palmos às pedras novamente para dentro, para dentro, para dentro…
Não, Deus não está neste mar nem no homem.
Nem na ausência do homem.
Mas continua o marejar arrebentando
E o barco das espumas carregando os olhos para longe de mim.

15/02/09

PÍER

A minha raça, a minha cor, o meu credo,
Quem cantará?
Quem participará aos seus irmãos que, no meio das pessoas, havia um homem
De coração forte, pele castanha,
De mãos pequenas e pés doentes?
Saem as nuvens detrás dos edifícios e o sol detrás delas.
As pedras dormem cobertas pelo mar sonâmbulo.
Torvelinhos se formam.
A tarde se deita em si.
Quem dirá do que foi? Do que era?
Quem levantará os olhos como eu e verá
O carinho do vento sobre o couro da Terra, e os cabelos das árvores, e a alma do mar?
Quem dirá que meu espírito apascentou?
Quem dirá a condescendente palavra?

14/02/09

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

ESTRADA DE ROMARIA

O meu chão é um chão de quem não tem pátria.
Meus pés correm descalços sobre brasas
que ninguém vê.
Na estrada, na longa estrada,
descampados imensos cortam a harmonia do horizonte
e não permitem a terra chegar ao céu.
Esparsos baixios sem mato e sem árvores se esparramam insalubres.
Capoeiras inteiras ardem sob o coito heféstico
de um sol insaciável.
O demônio guerreiro espolia o chão,
chicoteia o vento
e sevicia o tempo para que não ande.
E este, agrilhoado, estrebucha aos gritos em uma hora imóvel
como uma égua que traz queimada sua genitália
e não tem como escoicear.
A estrada se abre e, enormes, suas pernas tomam de assalto o horizonte da terra.
O círculo do céu como que se afasta covardemente.
O céu não é bom amante.
Seus domínios são a estalagem dos demônios de fogo amarelo
os quais, sob seus olhos azuis arregalados, estupram ininterruptamente o chão,
a terra,
o meu solo sem nome, sem rastro, sem memória.
Arrasto atada à minha sombra minha identidade como um saco de ossos de García Marquez
e minha viuvez de esposa viva carpe a ausência de seu abandono e de sua desolação.
Aonde iria minha terra?
Para onde me levaria?
Para o mar?
Para as grotas negras de suas entranhas?
Para o meio de seu sexo, o final de suas paralelas estrábicas?
Para as profusões de gentes que me vestem como germes?
Para as veias ainda mais negras das cidades?
Para onde, minha estrada sem nome?
Para as fundições onde cozem as brasas sobre as quais piso
e ninguém vê?

06/02/09