àqueles que perderam
ou foram amputados:
é outro o tempo das almas;
aqui
é o tempo dos corpos.
27/09/20
Este blogue se destina ao uso artístico da linguagem e a quaisquer comentários e reflexões sobre esta que é a maior necessidade humana: a comunicação. Sejam todos bem-vindos, participantes ou apenas curiosos (a curiosidade e a necessidade são os principais geradores da evolução). A casa está aberta.
não posso aceitar beleza
que não faça sofrer.
ser belo é ser,
nos olhos dos outros,
a angústia da miséria do corpo
e a mendicância do amor.
eis que a fome,
até então incógnita, sem prenúncio,
crava os dentes na traqueia
e surra o baixo-ventre,
socando a boca do estômago:
é lá que passa a beleza
no vento maldito das saias.
beleza que não faz sofrer
é faca cega
passando margarina em pão seco
numa tarde faminta de banquetes.
25/09/20
gíria é quase sempre
puro contexto.
veja a palavra “mano”:
quando dita por um capoeira,
um pescador, um roceiro,
com o afeto intensificado
pelo adjetivo “velho”
e suas corruptelas tão bonitas,
é carinho no espírito,
que se entende irmão e filho,
há muito tempo,
da terra e dos homens.
mas, quando ela vem
bem paulistinha,
ou com as vogais deformadas
pela poluição comportamental das praias,
ou carrega a efemeridade
do aluguel da juventude
aos estrangeiros
nos shoppings e na web,
em troca de espelhinhos e miçangas,
ela é prego no ouvido
e estupro na esperança
de que se possa estar entre irmãos.
melhor se fosse brother,
ou melhor,
bróder,
palavra furtada
que não mata ninguém
no sertão da minha memória,
que ainda é jovem o suficiente
para morrer todo dia
e renascer palavra por palavra
no silêncio desse mundo.
22/09/20
sempre existem pessoas
com quem se falar.
porém,
como elas só existem
e nada mais,
deixam
automaticamente
de
existir
nesse silêncio,
onde tudo que existe
transcende.
22/09/20
minha casa sempre foi cheia de enormes solidões
e cresci habituado à mesma companhia
hoje, face a face com o esmero da vida
no fazer-me inteiro com os outros,
não sei mais qual pedaço arrancar para encaixá-los
e me vejo sem braços e sem pernas,
roendo com os cacos dos dentes
as horas inoportunas em que tenho de ser vário
de minha casa antiga, ficou o alicerce
robusto, profundo, arrochado com o passado da Terra
nele me sustento e resisto ao esquartejamento
das relações
e existo erodindo, como minha casa velha,
como os corações velhos enterrados no quintal
ao lado do poço seco
e dos esqueletinhos dos cães de minha história
quando for caverna, quem sabe, habitável,
talvez acomode melhor
os que me bateram na porta
talvez, num veio ou num olho d’água,
dê-lhes de beber e de banhar
no reverso do vinho da parábola bíblica:
a simplificação da festa familiar,
o sangue finalmente convertido em coisa
que mate a sede que tiveram de mim
talvez, também, menos possível, embora,
haja nos minerais em volta algo de precioso,
algo que, recebendo um pouquinho da luz
na hora certa do dia,
lhes recompense a fadiga dos músculos
e a desesperança dos punhos
cansados das chibancadas
com uma liga ou uma gema qualquer
que lhes valha as alianças
que nunca fui capaz de forjar
assim, prospectado, devidamente convertido
em sítio arqueológico,
ou retiro espiritual,
ou mina abandonada,
eu possa responder, ainda que ecoando,
a todas as perguntas, a todos os inquéritos,
ou então, como sói às cavernas,
eu seja o lar de mistérios e morcegos, que, finalmente,
possam ser deixados em paz
01/09/20