Número de sílabas (desde 11/2008)

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terça-feira, 19 de janeiro de 2021

TEIMA

não teime em ficar.
você é a estória da estória
e já mudou três vezes só neste verso.

de quantas voltas de chave
é feito um adeus?
ou ele é portas abertas
numa casa sem miolo?

no pátio, as rolinhas bicam
o último grão de arroz que nos choveram.
já é tarde demais, diz o café frio,
e eu concordo.

porém, à noite,
debaixo do gume cego do tempo,
rasgam-se as horas,
e é lá, nesse desvão,
que ainda se lê o seu nome
— e o que ele diz sou eu.

19/01/21

sábado, 16 de janeiro de 2021

CONTENÇÃO

 os dedos estancam
 — é a memória em seus calos —
a efusão cardíaca
antes que as palavras deem-se ao touchscreen
como suicidas de penhascos.

inertes, emuralham como um dique
o sentimentalismo esquizoide
— caramelo de frigideira —
até que a água cumpra o seu papel,
que é o de abandonar os corpos.

16/01/21

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

POEMA PARA MIM SÓ

e eis que assim se me termina tudo
todas as noites:
este suor seco, cola fria na colcha áspera,
os engasgos no peito,
estes imensos silêncios nas mãos,
a medula que range malassombros,
estes pés estragados pela multiplicação do peso
e pelas pedras descalças esfolados,
fronteiriços de mim com o mundo,
do qual só sabia com andá-lo.

gentes restaram por toda parte.
tomaram-me as mãos como alças de esquife,
velaram-me em beijos de adeus precoce.
sobejaram os olhares, as mercês, as piedades e os escárnios.
nunca me faltou ninguém,
mas faltei eu
em de alguém ser.
por isso mesmo, existo apenas em mim
e naquilo com que se enganam.

meu corpo também se enganou
e tomou-me por morbidez a resignação,
adiantando-se a mim
e escapulindo das suas obrigações físicas
de conter-me.
ora ele adormece sua própria noite
na escuridão vermelha da carne,
sem lua nem estrelas,
sonhando no estômago e nos intestinos
antecipações funestas de banquetes canibalescos
em que se entredevoram minhas memórias.

espero, grave, amnésico,
a carta de mim mesmo que atrasou
por falecimento do carteiro,
inanido em algum ponto do meu labirinto até aqui.
trá-la, por dó, o vento, disfarçado embora
de guinchos, roncos e silvos
da cantiga dos armadores da rede
com que costumava voar sobre o mundo
na forma de abismos.

nela, presumo, vêm codificadas instruções
de procedimentos e métodos
acerca da retomada das rotinas originais:
qual o jeito certo de mover as nuvens;
de vestir-se de vento;
de discernir o sol;
de correr com a lua;
de se unir à noite;
e de beijar o mar.

reaprender a ler
será o meu último trabalho
e o meu maior desafio.

05/01/21