Número de sílabas (desde 11/2008)

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terça-feira, 22 de novembro de 2022

FUNÇÃO


Doer é uma exigência
que o corpo, diligente e caprichoso,
faz saber ao espírito, 
que, malgrado o massacre,
cumpre.

Terminada a pungência,
estertora:
— Sobrará algo de ti?,
ao que o corpo, solene,
range:
— Somente tu.

22/11/22

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

SALA DE VISITAS

É o 12° andar de um prédio onde eu nunca moraria. Da sacada, veem-se os tetos das construções mais baixas e os perfis ladeados de toda uma complexa família de prédios seus irmãos, de gente e de fuga. Ao longe, entre um de paredes marrons e outro, de verdes, espreme-se, pintado numa ilusão de ótica, um pedaço humilíssimo de horizonte do mar, azul fugente, opaco como um loteamento desvalorizado pelo abandono.
Abaixo, no chão, outros como eu também se espremem nos desvãos da tarde. O trabalho nos divide, mas a cidade nos coletiviza pelo anonimato.
Uma retroescavadeira planta mais um edifício. Evito pensar nas suas fundações e nos mortos que elas comprimem, mas sem sucesso.
Aqui correram os tacapes que escorraçaram Pinzón. Aqui eram dunas, matas de murici e macaúbas. Aqui era Oxóssi provendo de caça as tribos. Hoje, é Vicente Leite com Canuto de Aguiar, e isso é tudo o que é.
Tento me enternecer com a companhia e o vento, que são aduladores aqui em cima. Cria-se uma sensação de regozijo e júbilo, tão reais quanto ilusórios. No entanto, sou terral, tenho nos pés, no máximo, raízes de mangue. Não posso evitar lembrar que esse vento já foi da cidade inteira, que aquele cubículo de mar se podia ver desde muito mais longe, e que, quando não, esse mesmo vento lhe ofertava o cheiro de porta em porta, vestindo com ele os caibros de carnaúba e as telhas multiformes das taipas provincianas. Era uma pobreza gloriosa e pacífica, era uma necessidade sem ausência que nos igualava em cor e aspecto, e podia-se dizer que éramos na carne um povo.
Não tenho mais ternura com esta terra, e esta gente me desorienta com seu excesso de nortes. Que já fui caboclo, cafuzo, crioulo e mameluco, mal lembro. Hoje só sou pobre e tenho de pedir licença para pisar em minha própria história,  assim como nesta sala de visitas onde bailam sabores e anfitrionatos, temporários e falsos, respectivamente, e nunca meus.

02-08/08/22

segunda-feira, 13 de junho de 2022

METAPOEMA-MANIFESTO PELOS QUE VIVERAM

(por Bruno Araújo Pereira e Dom Phillips, assassinados pelo Brasil e encontrados no dia de hoje amarrados em árvores na região do Vale do Javari.)

queria fazer uma poesia engajada,
militando na letra como quem sangra na vida,
como quem salva a onça dos lobos,
o curumim, do trator,
a favela, do aço e do chumbo;
como quem morre num igarapé, mangueando-se
no mercúrio e no fascismo da Ordem e do Progresso.

queria dizer na pauta que aqui se luta
pelo espaço da fala, pelo centímetro quadrado
das calçadas crackeadas
e das covas severinas;
que aqui se é esmagado todo dia
pelo crente, pelo caubói, pelo cidadão de bem,
pelos perdigotos presidenciais.

queria escarafunchar a lepra urbana,
a leptospirose política, o cancro
do pastorado, do apostolado, do messiado,
como quem rasga a própria pele na esperança da dó,
mas na certeza do nojo.

queria fazer com os mortos o que se faz
com os fatos:
expô-los em varais, pregá-los nos postes,
fazê-los choverem nos tetos de vidro,
atear com eles o crematório de todas as mentiras
e enfiá-las goela adentro das bocas que as geraram.

mas isto não é poesia,
nem a poesia é nada disso.

a poesia não acha nunca o seu alvo
ainda que seja faca, mesmo que seja turba;
a poesia é só palavra,
e não se ressuscita o índio, não se desestupra a criança,
não se desmiserabiliza o miserável
com as palavras.

este papel não será nem cobertor nem fogueira
nos invernos que virão.

mesmo a poesia que grita, que manifesta
o silêncio morto do jornalista,
os ossos quebrados do indigenista,
o ânus rompido da criança afogada,
a carne queimada do babalorixá e do pajé
que não se fuma nos leblons,
essa poesia não muda nada, pois,
ainda que as palavras arrebatassem
e transcendessem a memória e o registro,
não encontrariam peitos, ombros, ossos,
olhos nem ouvidos,
embora exponha corpos e arremesse cadáveres
em todas as direções.

eu queria fazer poesia
como quem teima,
como quem, a despeito da vida, vive,
a despeito do dinheiro, vive,
apesar de Deus e dos evangélicos,
apesar da direita e da burguesia,
vive.
eu queria fazer poesia como quem morre,
porém vive
e existe, e continua, e incomoda, e cresce,
e periga revoluções.

13/06/22

TUA FORMA

deixa a forma que têm as coisas que te sustentam
esmorecer, colapsar, ruir.
a estrutura envelhece e te ilude que és tu que o fazes.
teu corpo, teus hábitos, tuas manias,
tudo são apenas as roupas
que as traças do tempo roem.

o café que se oxida no copo americano
no boteco da esquina
fala de abraços quentes que nunca tiveste,
mas que te protegem nas manhãs urbanas.
contudo, ele azeda, mofa, apodrece na borra e na barriga,
e tu pensas que és tu que te amarguras.

não te permitas sofrer
pela epiderme que se afina,
pelos ossos que se afinam,
pelas ruas que te afinam.
as formas de ti e do mundo
apenas te contêm,
e não permitas que te formem
nem que te deformem,

pois tu não és esse corpo
nem essa vida miserável.
tu não existes porque um número te registra
ou te cancela.
tu não vives porque respiras
ou te reproduzes,
tampouco porque te disseram os patrões
que a vida é trabalho,
e trabalhaste.

nem mesmo o sangue que te pulsa
e te materializa na carne que ama,
que teme e que odeia,
nem mesmo isso és tu,

pois o amor, o ódio e o medo,
tudo isso passa.
as ruas passam, os pontos, as camas,
a fome e o prato cheio,
assim como o corpo e suas consequências,
passam.
só tu duras.

inócuo, incógnito, rejeitado, ignorado:
tu és a tua grande novidade,
a surpresa no fim da escalada
à eventual e definitiva revelação.

tu és aquilo que acontece nos intervalos de ti,
desse tu falso:

chegas inesperado, sentas, a despeito do chão,
e emerges a casta submarina
de todas as etapas que cruzaste;
contemplas, plácido,
em seguida, suspiras,
tornas a mergulhar
e desapareces,
ondeando no mar a promessa
de que existes mais, muito mais e maior
que a urna em que te acomodaram.

10/06/22

quinta-feira, 26 de maio de 2022

VERANIA

(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a sua página de origem.)
 
a sombra tem cheiro de passos.
a calçada, atropelada,
embioca aos trambolhões numa ladeira
que tudo leva, meu Deus:

música, alma e cidade,
tudo despenca desimaginado
na correnteza empoeirada da rua,
que dá no mar.

a concha no ouvido me diz dos carros,
dos ônibus e caminhões.
na terra, mais gente que areia
é marulhada pela brisa que lhe espalha
o sal e as cinzas
pelo calçadão.

desconecta-se a orla
do mar que a produz.
muita gente, muita gente,
muitos muitos entulhados
no basculho da restinga urbana,
que incha
e avança ferozmente.

no céu, um domingo epitelial;
mal sabe o Sol, que não nasceu ontem,
do fiasco da vida de seus raios.

quem sabe, à noite,
a rua bêbada suba a maré
e permita que a fauna urbana
— a verdadeira —
retome a posse da vida
no vaivém indiferente e sanitário das hordas.

25-26/05/22

terça-feira, 17 de maio de 2022

SEMEADURA


eu, um velho anacoluto,
que sou letra sincopada
da palavra que refuto,
encarno o matuto puto
da caatinga inventada

e uso a palavra molhada
para irrigar o meu luto:
nutro a terra, escalavrada
(de nua, a esferografadas),
com o meu rascunho enxuto.

à maniva dou indulto,
e a vagem salpicada
brota no mesmo minuto
em que a flor do milho hirsuto
pendurica, embonecada.

a tessitura enramada
viceja em estado bruto
— ora estame, ora fruto,
ora bulba açucarada:
ora nada; ora vulto.

14/11/18, 10-16/05/22

DE VEZ


e ali foi deixada a palavra, verde ainda,
esticada sobre a pedra,
quarando sob o sol:
cada letra, ciente de sua inutilidade futura,
e seus sons evolando, na manhã amarela,
sua alma prematura,
dismorfa e incoerente.

é comum que a verdade caia verde do pé
e morra azeda sem ser chupada.
e a terra?
amargurece.

01-04/22

sábado, 7 de maio de 2022

E QUEM UM DIA IRÁ DIZER...?


“E quem um dia irá dizer…?” Quem diria que um filme que tinha tudo pra não passar de uma homenagem melosa ao Renato recheada de fan services da Legião pudesse ir tão além, e tão cinematograficamente honesto e delicado? “Eduardo e Mônica” me catou no primeiro “bom-dia”, que o ótimo Gabriel Leone (Eduardo) dá a um pôster de Malu Mader pregado na parede de seu quarto (o filme se passa em 1986, ano do lançamento da obra-prima “Dois”, disco do qual consta a música que o inspirou). Não há retoques nas atuações dos atores principais: Otávio Augusto (sempre carismático), Juliana Carneiro da Cunha e Victor Lamoglia (o “carinha do cursinho”) dão os suportes luxuosos aos arcos dramáticos individuais dos protagonistas. Alice Braga deu à Mônica uma maturidade e um conflito que fazem o paradoxo perfeito com a inocência e a aparente inexperiência do Eduardo de Gabriel Leone: aquela, não é nenhuma surpresa que seja excelente, porém consegue se reafirmar sempre; este cativa a gente da primeira à última fala (também pudera, o Eduardo da música — e esse, do filme — representa milhões de adolescentes oitentistas, e não há como quem tem mais de 40 não se identificar com esse cara). E esse mérito é dos dois atores e do diretor, René Sampaio, que pintou esse filme com a ajuda da fotografia ESPETACULAR de Gustavo Habda. O roteiro e o argumento de Matheus Souza são uma (aqui, sim!) verdadeira homenagem ao Renato e à minha geração (o cara colocou uma Caravan — o Renato possuía uma — como o carro da família da Mônica!). O filme é, enfim, uma delicadeza concretizada em imagem depois de 36 anos que sua história nos foi cantada e (insisto!) vai arrancar lágrimas de cada verdadeiro legionário. Assistam como se tivessem nascido em 1974 (ou antes) e se (re)apaixonem.

07/05/22



segunda-feira, 11 de abril de 2022

O VAZIO


no quarto, os vãos

a mesa, vazia
os pratos, os copos, as mãos,
tudo vazio
a culpa vazia no fundo da garrafa
o esvaziamento das horas no preenchimento do dia
cada instante, repleto de mim,
mas fora de mim

eu, vazio, contemplo
o tempo e o espaço
aglomerados adiante

entre mim e eles, intermitências:
pausas, síncopes, soluços gástricos,
vazios que se escadarizam em degraus espaçados
— quase palanques —
donde se veem a casa, o quintal, o sertão e o mar,
os resquícios cada vez menores, mais distantes,
e o vazio crescendo entre si

só a chuva une todas as coisas
no vaivém das águas e dos vapores
— inunda e lava os espaços,
arrasta todos os preenchimentos,
concreto, animais e galhos,
em desconstruções que afagam a terra

e eis o vazio do novo,
o ator do preenchimento futuro,
a incongruente continência pronta,
a esperar mais vazios,
mais e mais vazios
copiando na mesa,
nos pratos, nos copos, nas mãos
e nas garrafas
a história do nosso tempo

11/04/22

domingo, 20 de fevereiro de 2022

RECORDAREMOS

Há de chegar o dia em que voltaremos a saber mais do que eles ignoram.
Não há no espaço do mundo agora — este espaço, esta causticidade de tudo que se toca, fala e vê —
lugar para ternuras, canteiro de amizades ou santuário de amores.
A estrada se converteu no destino, e estamos descalços no asfalto quente sem nuvens nem juazeiros.
Contudo, não há estrada hemisférica neste mundo; todas derivam; algumas vicinam;
e nossas mãos e pés constroem aquelas que o chão ignora.
Quase não há flores, mas ainda não houve tempestade nas estórias da noite que extinguisse as borboletas.
Hão de revoar, farfalhando-se como risadinhas de crianças brincando sem medo
nas capoeiras que a chuva recente vicejou.
Com as águas, voltarão os rios e as cachoeiras a mostrar como soa o amor de Oxum,
e tudo aquilo que deve descer para o mar se desmanchará devagarinho, rolando nos seixos até virar pó,
tornado estéril pelo sal marinho de Iemanjá.
Então, poemas serão reescritos e enviados como antigamente,
rangendo nas dobradiças dos peitos e nas juntas das mãos
as emoções ancestrais e os sentimentos renovados.
Amigos, num bar, contarão histórias que não deixarão esquecer quem perderam, quem se perdeu,
e estes, sob o calor das memórias, desmorrerão em árvores e passarinhos
cuja sombra e canto darão a toda parte o que dá um quintal a um menino recém-desperto,
que começa a lembrar como se colhe uma flor que se destina à mãe.
Começaremos a lembrar.
Voltaremos a saber tudo que eles sempre ignoraram.

20/02/22