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segunda-feira, 13 de junho de 2022

METAPOEMA-MANIFESTO PELOS QUE VIVERAM

(por Bruno Araújo Pereira e Dom Phillips, assassinados pelo Brasil e encontrados no dia de hoje amarrados em árvores na região do Vale do Javari.)

queria fazer uma poesia engajada,
militando na letra como quem sangra na vida,
como quem salva a onça dos lobos,
o curumim, do trator,
a favela, do aço e do chumbo;
como quem morre num igarapé, mangueando-se
no mercúrio e no fascismo da Ordem e do Progresso.

queria dizer na pauta que aqui se luta
pelo espaço da fala, pelo centímetro quadrado
das calçadas crackeadas
e das covas severinas;
que aqui se é esmagado todo dia
pelo crente, pelo caubói, pelo cidadão de bem,
pelos perdigotos presidenciais.

queria escarafunchar a lepra urbana,
a leptospirose política, o cancro
do pastorado, do apostolado, do messiado,
como quem rasga a própria pele na esperança da dó,
mas na certeza do nojo.

queria fazer com os mortos o que se faz
com os fatos:
expô-los em varais, pregá-los nos postes,
fazê-los choverem nos tetos de vidro,
atear com eles o crematório de todas as mentiras
e enfiá-las goela adentro das bocas que as geraram.

mas isto não é poesia,
nem a poesia é nada disso.

a poesia não acha nunca o seu alvo
ainda que seja faca, mesmo que seja turba;
a poesia é só palavra,
e não se ressuscita o índio, não se desestupra a criança,
não se desmiserabiliza o miserável
com as palavras.

este papel não será nem cobertor nem fogueira
nos invernos que virão.

mesmo a poesia que grita, que manifesta
o silêncio morto do jornalista,
os ossos quebrados do indigenista,
o ânus rompido da criança afogada,
a carne queimada do babalorixá e do pajé
que não se fuma nos leblons,
essa poesia não muda nada, pois,
ainda que as palavras arrebatassem
e transcendessem a memória e o registro,
não encontrariam peitos, ombros, ossos,
olhos nem ouvidos,
embora exponha corpos e arremesse cadáveres
em todas as direções.

eu queria fazer poesia
como quem teima,
como quem, a despeito da vida, vive,
a despeito do dinheiro, vive,
apesar de Deus e dos evangélicos,
apesar da direita e da burguesia,
vive.
eu queria fazer poesia como quem morre,
porém vive
e existe, e continua, e incomoda, e cresce,
e periga revoluções.

13/06/22

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