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sábado, 26 de outubro de 2019

CÃES E GATOS

     O tempo lhe havia começado a puir nas dobras, e a ação cáustica dos desgostos de todas as vidas que não vivera lhe converteu o sangue num líquido fino, frágil nas veias, que se rompiam com o vento e a exasperação. Todos os espelhos lhe cuspiam homens diferentes, todos com feições nômades, errantes, amondrongadas. Teimava não lhes creditar o espírito, que também teimava em rejeitar seu corpo. Era uma grande lambança aquela quizila, tanto que o obrigava a andar sempre torto, ou como se arrastasse algo ou como se o empurrassem para os lados, como moleques a um bêbado. Evitava escapismos. Havia anos que seu último relacionamento dera mal. Ela era pouco mais nova, mulher viril, mais que ele. Apequenou-se diante da massa que lhe crescia ao lado, a qual parecia poder enraizar-se nele a qualquer momento e absorvê-lo como os benjamins que destroem calçadas e gretam asfaltos. Fugiu no álcool e no silêncio que submergia no barulho dos bares cheios de outros apodrecimentos. Ali percebeu que seria fácil irmanar-se e ceder ao fatídico daquela empreitada, a dos fugitivos heroicizados pelo peso das derrotas, capitães solitários de jangadas de cortiça fadados ao afogamento na noite da cidade. Deu-se o óbvio: o divórcio, a perda da casa, do juízo, da promessa de família. Desde então, não chegava mais perto de bebida. Em vez disso, dedicava seu ócio de aposentado à imobilidade da observação filosófica. Elaborava teses cujos objetos iam desde uma possível consciência dos cães de rua adquirida pelo mimetismo dos humanos — principalmente, os mendigos — à inerente cornitude dos homens de gravata, cuja proporcionalidade atribuía à área calva e aos centímetros caídos das calças de brim.
     — Que é que há, seu Argeu?
     — Opa...
     — A Romilda mandou perguntar se o senhor vai querer faxina essa semana.
     — Só por cima.
     — Homem, é o mesmo preço. Deixe ela fazer o serviço direito.
     — Não vou sair daqui pra ela limpar. Se ela quiser, é por cima, ou ela espera eu morrer.
     — Mas, rapaz, isso lá é coisa! Ela trabalha direitinho, deixe de besteira. Olhe, se for o barulho, eu vou sair, e o Valmir vai ficar só em casa. O senhor pode ficar lá com ele enquanto ela não termina.
     — Só por cima, só por cima mesmo.
     Não era que não gostasse do casal nem da Romilda, cunhada do Valmir, amigo de antes das dores nos ossos. Aconteceu com ele de rejeitar as gentes pela coletividade. Achava bonito homens sós, especialmente os jovens de olhar perdido; estes pareciam ter cometido o mesmo crime que ele e eram como personagens vagos num filme sobre a sua miséria. Observava-os assim como se os quisesse ser, só para ser a si mesmo de novo, num tempo antes de tudo.
     — Coisa esquisita. Senta na janela e fica como se estivesse esperando conversa. Quando a gente chega, escorraça.
     — Deixa, mulher. Faz mal a ninguém, não mexe com a vida alheia, fala até tão manso…
     — Isso é. A gente nem sente a ignorância. Não é normal.
     — Que é que o Valmir diz?
     — Que amofinou. Tá só esperando a hora.
     Distanciavam-se, e o olhar as acompanhava descerem a rua, quando lhe veio o susto seguido do cheiro de cigarro e roupa velha pelo lado oposto. Tinha uns vinte anos maltratados pela pobreza, mas era vivaz, e o espanto cedeu àquilo.
     — O senhor teria um minuto?
     — Claro. Diga.
     — É que eu tô aqui há dois anos e tô tentando juntar dinheiro pra voltar pro meu interior porque minha mãe veio se tratar de um câncer, e eu vim junto, mas ela morreu, e eu não tive onde ficar, então eu tô pedindo ajuda a um e a outro pra voltar pra Madalena, meus irmãos tão tudo lá, nem sei como é que tão, meu pai largou nós por causa da doença, e eu que fiquei cuidando de todo mundo, mas tive de parar de trabalhar pra vir com mãe, que morreu, e ninguém quer empregar ninguém não, moço, aqui é todo mundo desconfiado de gente de bem, ninguém ajuda, então eu lhe peço qualquer coisinha, só pra eu comer hoje, tô aqui só com a cara e a honestidade, o senhor pode me ajudar?
     — Madalena?
     — É, chegando no Cariri. O senhor conhece?
     — De nome.
     Olhava o rapaz de cima abaixo por trás dos óculos verdes de camelô e da voz mansa aborregada, medindo-lhe as dimensões.
     — Você não quer entrar não? Tem um resto do almoço ainda. Depois a gente vê uma ajuda.
     O rapaz, nascido e criado na necessidade e dentro da capital, entendera. Não era a primeira vez. “Esse, pelo menos, é velho”, pensou por trás da resignação mal disfarçada da malandragem necessária no sorriso que pretendia agradar para receber.
     Meia hora depois, escorreu rua abaixo com um pote de sorvete ensacolado com baião e ovo, um pãozinho, uma nota ensebada de dez reais e a sensação de estar um pouco mais sujo da imundície da cidade, que mais o fadigava que enojava. Habituara-se ainda menino, quando era isso ou roubar, e tinha medo da polícia, que já lhe estuprara de cassetete aos treze anos, estourando-lhe o ânus por pegá-lo engatado nos quartos de uma cadela de rua, sarnenta e quase cega, numa viela no Vicente Pinzón. Lembrou-se também de quando fora currado aos catorze pelos internos recolhidos pelo Juizado sob o olhar e os coiós dos agentes, que açulavam: “lasca esse baitolinha pra ele aprender que cu é pra cagar!”. Nem sofria mais tanto com o episódio. Sofria mesmo era com a impressão de que aquilo resistia em seu corpo como uma impingem, um vitiligo sexual que o acompanhava a toda parte, facultando aos outros o direito à proposta, cuja anuência humilhante ainda o fazia sentir mais humano que nas mãos da polícia, a qual parecia possuir um radar especial só para ele, um sensor que o tangia cada vez mais para as margens do que realmente queria, que era trabalhar em paz na Beira-Mar, vendendo-se com dignidade, recebendo a paga justa pelo seu corpo.
     Seu Argeu voltava à janela já limpo, cheiroso a sabonete barato. Lera em algum lugar que Albert Einstein afirmou ter simplificado a vida depois que passou a usar sabonete no corpo, no cabelo e nos dentes. Sempre achou aquilo um absurdo. Os seus, já em cacos, escovava mesmo com a pasta de dente mais cara da mercearia, cuidado tardio depois de uma vida inteira de negligência bucal. Entendia que só a mais mentolada tirava tanto o gosto como o cheiro de água sanitária que teimava sempre em renitir por algumas horas, por isso sumia quando sentia que lhe iam falar coisas de passagem. Sentou-se novamente na cadeira de plástico — única que sobrara do conjunto de quatro com mesa comprado ainda na época do casamento — à beira da janela, limpando os óculos na barra da camisa.
     Lá fora, um cobrador de ônibus se lamentava ao amigo motorista, ambos esperando o horário de partida, que as catracas eletrônicas iriam demitir muita gente. Mais adiante, uma pequena manada de passageiros esperava bovinamente a ignição do ônibus, que, graças a Deus, tinha ar-condicionado, os tempos mudaram, aquilo parecia a Aldeota. Somente a catinga da carcaça de um gato atropelado havia dias incomodava a todos mais que o sol. Seu Argeu arrazoava consigo mesmo se os gatos não se suicidavam com um propósito, à guisa de camicases, pois, diferente dos cães, não lhes era votada a devida atenção social, injustiça que gostaria de ver corrigida, afinal eram animais lindos que, se ninguém visse morrer, acreditava virarem meninos que lhe visitariam, as linguinhas ásperas, os sonhos que ainda restavam.

26/10/19

domingo, 20 de outubro de 2019

A CANHESTRA

     Aquelas revoluções requeriam demais. A todo tempo, uma necessidade; a cada bandeira, um peso enorme nos braços e algumas libras a mais de pressão arterial. Seu tempo com amores limitavam-nos a parceiros e companheiros, de cama e de partidos, de causas e cafés da manhã. Porém, todos insuficientes, por isso passavam. Envelhecia demais, até para alguém com mais invernos que verões. Amargava-se como o café, que era sempre preto, forte, requentado e sem açúcar. Fervia um tanto na máquina e esquecia-o. Esquecia aos poucos família, infância, natais. Nas ruas, pessoas sofriam de problemas reais, crianças, mulheres, velhos, eram todos vítimas de estupro do sistema sádico que vendia sonhos impossíveis dentro do pesadelo das cidades. Não podia aceitar. Não podia relaxar. Nada lhe parecia mais burguesamente criminoso que um travesseiro limpo, no esteio do qual iam pequenos prazeres ordinários, pequenas vaidades, que cresciam geometricamente como um ídolo babilônico, um manipanso de vícios que lhe destruíam a visão e o pensamento críticos, que a embonecavam à moda de uma Barbie Malibu.
     — A plenária de ontem fui um acinte! Pior que quem permitiu a fala da Lídia foi quem aplaudiu depois!
     — Não vi nada de mais. Ela propôs que o partido dialogasse com as ONG de direita, só isso.
     — Só isso? Você diz “só isso”? Não tá vendo que é por aí que eles entram, e as diretrizes vão virando relativas?
     — Não. Acho que precisamos de mais interações. Quem não se comunica…
     — …não se manipula. Isso é manipulação da pior espécie, covarde, covarde! Vou fazer uma moção para a expulsão da Lídia!
     E era assim. A intransigência vinha sempre enquadrada numa paranoia de tentativa de implosão dos princípios democráticos. Afinal, era esta a única falha da democracia: oxidava-se de dentro para fora, como um ovo que apodrece se não se come logo. Suas hienas, seus abutres e seus vermes eram parte da fauna permitida naquela áfrica frágil, portanto imprescindível de vigilância.
     No entanto, havia um ponto cego nesse orwellismo que propunha: quem havia de lhe apontar as falhas?, quem seria apto, mais que ela, para tal? Um dia, questionada se seu radicalismo, ele mesmo não seria uma corrupção da causa, visto que obstava as alianças e, por conseguinte, isolava o partido, respondeu com tantos artigos — que cuspiu feroz nas reuniões que ela mesma conclamou e às quais atribuiu urgência urgentíssima — contrários àquele atrevimento, que acabou por dividir os correligionários em descontentes, desiludidos e revoltados, estes últimos, seu alvo, responsáveis pela inviabilização política do Sr. Cristiano Maldonado, arcano da criação do partido, carreira inimputável, várias vezes articulador de coligações vitoriosas, o qual passou — iniciando-se pela etimologia do nome, escarnecida cientificamente por ela — a um pária gagá, um ex-macho-alfa ultrajado pela ascensão feminina na legenda, da qual ele mesmo teria sido um dos principais responsáveis por atrasar, um antifêmeas, uma múmia misógina a se expurgar. Assim o fizeram. Nem mais para conselhos o queriam, exceto os mais íntimos, ainda assim, às escondidas.
     Eis que chegou o ano eleitoral. Sua base não via nome melhor para encabeçar a chapa. Era hermética a escândalos, fiel transcendentalmente às causas do partido, incorruptível, férrea. Nos primeiros debates, peitou nomes cujos sobrenomes remontavam às oligarquias e coronelados e descadeirou-os a todos, pois era versada na desconstrução das instituições, principalmente o patriarcado. Contudo, ali também estava a Dra. Lídia Cremona, cuja relevância política não só escarnecera, mas também, de tanto ódio e desdém, também havia passado a ignorar — “Não se chuta cachorro morto.” — tanto que não enxergara sobre ela sequer a necessidade de elaboração de uma estratégia de embate. Então, em outro partido mais moderado, “Lídia – juntos, somos família” era o slogan. Ainda tentou, naquele debate e nos outros, todos televisionados e disponíveis em plataformas virtuais, aludir à nocividade do tradicionalismo familiar às minorias; à vergonha que era uma mulher à frente de uma legenda pautada no conservadorismo; à competência que jamais teria uma mulher que cedera egoisticamente o tempo a qualquer instituição que não fosse o povo. Chamou-lhe arrivista, dissimulada, neoliberal, nada colou. O discurso de Lídia era sólido como o dela, porém flexível o suficiente para que aqueles que se opunham a esta vissem naquela uma possibilidade, talvez, uma representatividade.
     Perdeu miseravelmente. Seus apoiadores, vendo o estrebuchar de suas falas cada vez mais violentas e apocalípticas, não lhe perceberam nem a inteligência nem as intenções. Só viram a raiva e a paranoia contra — como pode? — outra mulher, esta, mãe, esposa, trabalhadora, íntegra. Madalena dos Santos lhes havia criado, inconscientemente, uma imagem feminina antagônica, e logo contra quem: uma candidata que advogara contra vários agressores de esposas, todos enquadrados na Maria da Penha, cem por cento de causas ganhas, vinte anos de Direito, vinte e cinco de casamento, engajamentos mil em prol de desabrigados, sem-terra, menores, trabalhadores também mil.
     — Deveria ter chamado a Lídia pra vice. Pagou pelos cornos.
     — Não sei como durou tanto. Chata pra caralho!
     — Agora, faz o quê?
     — Chama pra vereadora. Ainda tem respaldo nos bairros.
     — Olha, outro dia eu vi uns “memes” feitos com a foto dela.
     — Ruins?
     — Péssimos! Mistura do Enéas com a Cuca.
     Descabelou-se na disputa. Venceu, diplomou-se e renunciou martirizadamente numa sessão de sexta-feira, umas cinco pessoas de quórum, incluindo alguns funcionários da limpeza que não faltaram, todos terceirizados — quem ligava? Planejara um suicídio político retumbante, mas ficou mesmo só no eco que se perdeu nos vãos da Câmara. Chegou em casa, descalçou as alpercatas, abriu e matou a garrafa de cachaça pela metade, pensou na vida e dormiu, cheia de sonhos heroicos em que era carregada nos braços populares, laureada por poetas revolucionários, ensinada nas escolas do MST e reproduzida em pichações urbanas: “Madalena vive!”. Foi encontrada semanas depois pela própria Lídia, que, após inúmeras tentativas de contatos telefônicos e virtuais sem sucesso, resolvera falar-lhe pessoalmente para propor-lhe uma secretaria — que seria mais tarde oferecida ao Sr. Cristiano Maldonado, aceitando-a este com um certo pesar que passou rápido.
     Os olhos eram de peixe, e o vômito seco no colchão barato era a única coisa que fedia na casa simples da periferia onde morava. Incrivelmente, não havia fedor oriundo do corpo. Em vez disso, a Dra. Lídia Carmona poderia jurar mais tarde à polícia — só não o fez pelo medo do ridículo de pagar de desconstruidora da imagem pública que a própria Madalena criara — ter sentido um almíscar odorífero e doce, à semelhança do cheiro em comum das flores do mato, muito normalmente encontrado nos borreguinhos que acostumara esconder do pai, açougueiro caucaiense, cidade onde o sertão começa a ficar explícito no Ceará, a partir de Fortaleza.

20/10/19

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

A REVELAÇÃO

     Ele era fastioso desde menino. Sobejava os pratos, estruía pães e frutas, fingia esquecer refeições, recusava o oferecido até em festas.
     — Mas nem um pedaço de bolo? É de chocolate, eu que fiz.
     — É que me dá azia…
     No bar, ficava só no limão com sal como tira-gosto. Era o que se dava às vezes, muito raro: umas palitadas de calabresa ou uns cubinhos de coalho assado. Os amigos só não se exasperavam porque bebia bem e sabia ser parceiro de farra, virando tanto copos quanto noites e, fosse o caso, mesas e cadeiras. Tinha mais de um conjunto de cicatrizes de garrafadas pelo corpo. Batia-se por causas e mulheres, pelos amigos e pelo nome da mãe. Não amunhecava diante de nenhum dos três: covardias, afrontas e direitismos. Parecia odiar tanto militares quanto macarrão, e ansiavam-lhe a bile beterrabas e empresários, peito de frango e de evangélicos, músculo de boi e de bombados de academia bolsonaristas.
     — Acho que você devia cuidar mais da saúde. Depois, acaba tisgo. Isso de esponja de chão de bar vai te lascar como fez com o Deci. Lembra dele?
     — Primeiro, que academia foi feita pra imortais. Segundo, o Decisão morreu atropelado.
     — Atravessando a rua bebaço.
     — Vai culpar a vítima agora? O sujeito arrastou o negão por meia quadra.
     — Era uma ambulância!
     — Pois que salvasse vida e não tirasse! O Deci era um cabra bom, generoso. Mais de uma vez te defendeu!
     — Macho, era a minha mulher na briga!
     — Vá se lascar! Continua com ela? Pois vão se lascar os dois!
     …
     — Vai me dizer que tu é Lula?
     — Vou.
     — E o mensalão?
     — Tem ladrão em todo partido, mas no meu se investiga.
     — Vai defender bandido pra lá! E o PT?
     — Lugar de trabalhador. E o teu miliciano babão de imperialista? Já chupou o ovo do Trump hoje?
     — Trabalhador? Tudo vagabundo e ladrão igual a tu!
     Pelo menos, tinha quem lhe valesse na mão. Eram uns três amigos fiéis, de sangrar junto, que sempre escolhiam o seu lado. Não tinham muito do que se arrepender; normalmente, era o lado certo. Ele era desses borralhos quixotescos, brilhante e boquirroto, e, como o da Mancha, não aguentava muita pancada, mas não abria.
     Porém, um dia, encontrou-se com fome, dessas de converter ateu. Trabalhava muito, devia ser isso. Escapou numa coxinha com suco de graviola no boteco em frente, o de costume. Não deu uma hora, ela voltou como um carma, personificada em câimbras estomacais e gemendo como as visagens do sertão de seu pai. A contragosto, fechou a marcenaria mais cedo e foi ao bar, que não tinha quase nada de comer em casa. Perguntou o que tinha de tira-gosto.
     — Como é?
     — Feijão verde, tem?
     — Tem, mas…
     — Vê meia porção.
     Mastigou revoltado, tentando não sentir o gosto. Mas era bom, e ele sentiu. Dois minutos foi o que durou.
     — Vê a outra.
     — Quem?
     — A outra porção, Biu! Ligeiro, que eu quero acabar logo.
     — Chega aqui, Chico! Olha isso aqui!
     Biu serviu a outra metade, e mais uma porção inteira, e mais uma de batata frita, uma de linguiça e uma de macaxeira. Ele sonhava dentro de um pesadelo. O paladar lhe era uma novidade total, assim como o olfato, mas eram ambos luzes piscando sobre a pele que se esturricava de ódio pelas cessões a que se submetia. Faltava o quê agora? Pedir o peixe com baião? Peixe que nunca provara, cujo cheiro odiava e cuja fama atribuía, anticristão, à patuscada ilusionista de Jesus para enganar o povo? O boteco era simples, e aquilo era o que ainda havia pronto àquela hora. O estômago relinchava, e a antinaturalidade daquilo não lhe assustava tanto quanto o medo ancestral de morrer de fome. Tinha pouco medo da morte, mas este era o único que sobressaía: tinha consciência de sua fraqueza física e abusava na esbórnia como atrevimento diante da morte, mas sempre apelava para o chá e as mezinhas limpadoras de tripas e receios. Não comer era como ele erguia-se diante de Deus e gritava com orgulho sua debilidade diante da fé opressora e tirana, escravizadora de corpos e de almas. Logo ele, que não acreditava em almas, nem nas do sertão do seu pai, começou a sentir um prazer que não se localizava em lugar nenhum do corpo, não era ilusão de álcool nem nostalgia inútil de mulheres. Era algo tão íntimo e que o acariciava como nada lhe havia feito, que, justo pelo racional que era, custou a admitir o erro de atribuí-lo a serotoninas, endorfinas e dopaminas. Acabara de perceber que tinha um espírito, e este era uma besta feroz feita, aparentemente, apenas de voracidade.
     — Traz o peixe, então.
     Nessa hora, juntou gente. Os que iam chegando para o início da chumbregação noturna, as prostitutas que iam tomar o caldo de carne moída antes do serviço, os cobradores e motoristas que esperavam sua escala, os descoladinhos que gostavam de se passar por boêmios, os verdadeiros boêmios e os seus três amigos fiéis, todos começavam a chegar para bater o ponto. E todos, pasmos, afásicos, jurariam mais tarde que aquilo teria sido obra de aposta ou de autoflagelação pela última mulher perdida.
     — O que é isso, Arnaldo? Tá tudo bem?
     Os olhos crispados, a boca cheia de tilápia frita com cebola e baião de dois com nata e uma lagrimazinha sorridente foram a resposta. Pediram espaço, ladearam-no e pediram o habitual na expectante suspensão dos que aguardam um desastre. O desastre ocorreu após, finalmente, Arnaldo dar cabo de mais duas porções de batatas gratinadas e pedir uma cerveja. Sumarento, inchado e delirante, ensaiou levantar-se e caiu, girando trezentos e sessenta graus ao pé do balcão, arrastando consigo dois dos fiéis. No chão, espocando por todos os orifícios, gemeu numa voz suave que nenhum dos amigos havia ouvido até então:
     — Deus é um fela da puta…
     No enterro, os quatro amigos, que eram versados em várias literaturas, assim como ele, lembravam que lhes faltavam cavalos ou floretes para aquela situação.
     — Eu sempre achei que seria por causa de quenga.
     Compareceram algumas: as solteiras, carpindo, e as casadas, ocultando a presença. Biu era o que mais se lamentava. Por toda a vida carregaria a culpa de ter sorrido naquele dia.
     Arnaldo era pobre, e o caixão ele mesmo havia feito com madeira de palete em sua oficina. Apesar do que pedira, que era o ser enterrado como indigente para se unir às massas, os amigos fizeram uma vaquinha para lhe pagar os ritos fúnebres e o enterro: havia de ser assim, pois a heresia das últimas palavras não apagava a revelação. Enterraram-no confusos, sem terem o que dizer. Somente o Biu, numa tentativa de se livrar do remorso, deixando sobre a areia da cova tampada uma garrafa de cachaça e umas asinhas de frango, à moda de despacho:
     — Pelo menos morreu de barriga cheia…

14/10/19

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

O MOLHADO DA FAROFA

     Em criança, aprendera de sua mãe como fazer uma farofa. Vendo, intuía que se frita algo, então se aproveita o óleo com os resíduos na própria frigideira e coloca-se a farinha por cima, ao que, com uma colher de pau, de preferência, se meche e se raspa e se mistura tudo. Era esta a farofa: sequinha, um pouquinho queimada e com um gosto distante do que se fritou. A de ovo era diferente; fazia-se com a própria fritura — eram ela e a de couro de frango as únicas que se requintavam com pedaços — e, porque o ovo nunca era seco, era um tanto molhadinha, um meio-termo entre uma farofa e um pirão. Às vezes, fazia-se uma de galinha cozida, e era também molhada. Eram as exceções. Tudo era sequinho: a de fígado, a de peixe e a de bife, que não eram dados a luxos.
     Cresceu, e seu paladar o acompanhou na austeridade da semipobreza. Gostava de coisas simples e pragmáticas, e era dentro desse pragmatismo alimentar que o prazer da mesa existia. Nas raras vezes em que se aventurou, tivera ou uma reação alérgica ou uma culpa retrogustativa. Essa culpa era como um cilício que lhe sangrava a coxa, pois gostava de comer e o fazia em parceria com esse desgosto. Era um sofrimentozinho que insipidava a língua. Chegou a desenvolver um refluxo gástrico que lhe arremetia a uma autopunição, um jeito de pagar a mais pela comida sem culpa, pois sofria.
     Passou o tempo, passou o refluxo, arrefeceu a austeridade, e instaurou-se um novo jeito de flagelar-se: a irresponsabilidade. Passou a comer novidades. Incrementou a culinária. Cozinhava criando, misturando o impossível, temperando com o insalubre. Demorou, mas atingiu uma espécie de bom senso. Tinha gosto em preparar almoços e merendas para a família e esperava deles a anuência dos gemidos e suspiros. Nesse ponto, rompeu com o paladar filial. Imaginou sua mãe como expectadora e provadora de seus pratos. Divergia intimamente de tudo quanto comera: carneiro leva sim canela; frango frito vai ao forno com batatas; não se dessala carne salgada para o feijão. A última foi a farofa. A de sua infância migrou da austeridade sublimada e da mesquinhez desinventiva ao experimentalismo semierótico e pseudocientífico. Foi ali o seu último rompimento, a tesourada no último fiapo do cordão umbilical. Passou a não só fazer a farofa com pedaços da fritura — aliás, reduziu a fritura a uma mera etapa da feitura da farofa —, mas também lhe acrescentava iguarias caras, compradas especialmente para ela, como cogumelos, aspargos, alcachofras, azeitonas recheadas, alho-poró, gengibre, cominho, louro, salsa fresca, pimentas-biquinho. Comprara uma frigideira enorme, como vira nos canais de culinária. Fritava a carne de sol com cebola e alho, pedaços picados de toucinho, cubinhos de pernil de porco caramelados com gergelim, depois encimava de vegetais que nunca comera em menino e o fazia com uma certa raiva por ter demorado tanto
quanto tempo até aquele gastamento, aquele perdularismo, aquela sobejidão! Imaginava a mãe em espírito ao lado do cook-top, sacudindo levemente a cabeça — “esse menino já gosta de inventar…” — e sorria, querendo que ela provasse e aprovasse.
     Cozinhar estendia sua solidão. Nesse esteio, desenlinhava-se o tear de sentimentos enovelados que carregava no peito. Acabava aquilo por ser o que mais queria: desconectar-se, existir internalizado e livre no castelo do ensimesmamento. Cada ingrediente era saboreado molecularmente nas enzimas de sua solidão, e os digeria lento, satisfeito com a autofagia espiritual. Nunca, na sua vida de menino, sonhara em comer apenas farofa. Nem mesmo paçoca, que lhe era uma extravagância como camarão ou batata frita, coisas reservadas para dias de viagem e outras experiências familiares teatrais. Aquela infância limitada de sabores e texturas lhe incumbira a tarefa de engendrar sua horta e sua criação ele mesmo, na terra sertaneja de seus sonhos. Agora, hora do almoço, dava-se o comer apenas aquilo, e aquilo lhe era bastante, e o isolamento assomava como uma transmutação, e todos os sabores se reuniam na orgia egoísta de sua cozinha anímica. Ao seu lado, seus familiares mortos, os sorrisos condescendentes, as cabecinhas espirituais sacudindo enfastiadas: “esse menino, esse menino só quer ser o que não pode…”.

07/10/19

domingo, 6 de outubro de 2019

INTERRUPÇÃO

E se anoitecesse de repente, como uma chuva?
Uma que não se anuncia, uma de verão.
O que seria deste fim de dia interrompido,
sem a catarse do crepúsculo?
Seria… uma morte, sim?
Fecharia os olhos, sem suspiros.
Não divagaria nem seria acometido de saudades
ou arrependimentos.
Viraria estrela.
Sonharia nos sonhos dos outros, interminável.
Há dias — no mais íntimo de minha esperança —
que merecem findar em estrelas.

06/10/19

FRETE SEM VÉUS

     Era alta. Morena como o Diabo, maltratada, mas, outrora, recebera dengos. Cabelos indígenas, olhar de capitã do mato. Mãe. O filho vinha ao lado, saracoteando gentil. Junta aos dois, uma parenta circunstante. Olhava se a olhavam. A fêmea antes daquilo tudo era ativada se a olhavam. Ainda que casualmente. Muitas pessoas na estação; algumas, homens; poucos destes, em seu caminho. Calhou de o olhar de um, juvenescido de repente, esgueirar um vetor onde ela estava. A tangente acertou-a na linha da cintura, que aqueceu e serpenteou. O filho, criançando na plataforma, cambiou de status e converteu-se num empecilho inevitável: ele era um documento intransferível de mãe. O homem notou, e seu olhar, como uma parábola, curvou-se desencorajado ao menino, que já tinha uma intuição daquilo: danava-se um pouco mais, a mãe era dele, notasse-o!
     A morenice crepusculou súbito, e sua mão respondeu apertando muda o pulso do menino — “ai, mãe, minha mão, mãe!” — e semierguendo-o como uma sacola de lixo que se arrasta para longe, no caso, longe da vista do homem. A parenta limitou-se a um riso meio falado, nervoso e servil, pois já vira e sabia aquilo: também ela já fora mulher. O menino chorava de modo a revoltar os pré-passageiros do metrô. Já o homem, este não via mais uma mulher; via uma mãe, uma merda de mãe, uma que não merecia ser mãe. Lembrou-se da sua: tão santa, só lhe dera uma ou duas surras, nem se lembrava, jazia no céu das mães nas nuvens dos filhos órfãos, coitada. Aqueloutra, a diaba, nem se lhe parecia, nem era mulher! Pobre daquele menino, melhor que nem tivesse pai, que, se houvesse, seria um protocorno. Filho de uma puta com um corno, quem lhe valeria?
     Ela, já anoitecida, nem entendia mais a jiboia faminta em seu ventre. Havia quanto? Meses, anos? Arrastava, agora acompanhado de ralhos e xingamentos em voz baixa e dura, o filho catarrento de choro. Não gozara na feitura dele, nem depois se lembraria de tê-lo feito. Amortecia a barriga com a outra mão espalmada, resignando-se àquela castração. O olhar adivinhava ódio. A parenta oscilava aparvalhada os olhos, a cabeça e o sorriso pateta para todos os lados. O trem chegava.

06/10/19

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

O GUARDA-CHUVA

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     Achei a coisa mais triste, hoje, um homem que vi na rua, portando só um guarda-chuva. Imaginem-se a preparação antes de sair de casa, a busca automática pelo essencial: óculos, chaves, documentos, dinheiro, cigarro; em seguida, as circunstâncias: os telefones, os boletos, as agendas, a bolsa, os papéis e a determinação de funcionar novamente. Caso houvesse a chuva ou a possibilidade desta, aí sim, o guarda-chuva. Mas, só o guarda-chuva? Num dia sem chuva e sem essa possibilidade? Imaginei para que aquele homem se preparara. Ato contínuo e maquinal, costume herdado dos antigos, cópia de personagens cinematográficos, necessidade de um objeto fálico nas mãos ou de alguma coisa que se justificasse esquecer e completasse a lacuna que o próprio hábito de esquecer-se criara? Como quem andasse com garrafinhas d’água nas mãos só para queixar-se depois de havê-las perdido?
     Nada. Não havia mais nada com aquele homem em suas mãos exceto o guarda-chuva. Teria deixado arraigar-se o uso dele como se o usasse para diferenciar-se do vulgo? Teria a eterna incredulidade dos que duvidam do óbvio ou a dúvida infantil de si mesmo? Talvez. Mas como me incomodou profundamente a tristeza que senti pelo seu desamparo de uma possível preparação frustrada pelo sol! E se o usasse como um guarda-sol? Poderia ser. Não é comum em homens, mesmo os velhos, mas poderia ser o seu caso. Contudo, a sua postura empertigada de quem ia ou vinha de um afazer, o seu movimento laboral estático como um elástico puxado diziam que não. Aquele homem esperava uma chuva na existência de seu dia. Mas, que chuva, meu Deus, em entradas de outubro, ausente mesmo no caos climático deste início de século? Deu-me uma dó tão grande o seu desamparo! Pareceu-me haver procurado no guarda-chuva uma dignidade de homem urbano que não batia com o seu tempo. Seria aquilo um distintivo, uma lança de Quixote, uma lanterna de Demóstenes, um archote de Prometeu? O que aquele homem buscava, senão a proteção óbvia? Talvez o não óbvio: proteger-se dos outros homens ou de uma queda num equilibrismo desastroso numa comédia de praça. Poderia ser esse guarda-chuva uma clava moderna e citadina contra a insegurança da urbe, ou seria mesmo apenas uma forma de preservar-se da ausência em que ficam as mãos sem objetos, o que intuiria nos outros uma pobreza que sairia dos bens e entraria na alma e, mais fundo, no espírito? Não carregar nada é não ter nada, o que é o mesmo que não ser nada aos olhos dos outros, o que vem a ser o mesmo que não ser nada aos próprios olhos. Mas poderia tê-lo achado, poderia estar levando-o para ou de alguém. Poderia tê-lo furtado, escamoteado de uma loja (mas era usado!), poderia tê-lo surrupiado a outro — igual a este ele que eu imagino e de quem tanto me comisero — de dentro de um ônibus, talvez, ou do metrô. Poderiam ter-lho dado, como se faz com um desses estorvos que se ajuntam nas casas de quem quer das coisas o supérfluo e depois o descarta para dar lugar ao supérfluo mais novo — assim como os homens fazem com as mulheres e como as mulheres fazem com os homens e como todos fazem com os velhos, as crianças, os celulares e as rifas de caixas de chocolate. Mas como era dele! aquele guarda-chuva, era tão dele!, e inútil!, como um terceiro braço, negro e atrofiado! ou como uma enorme estrovenga capada, empalhada e envolta em crepom negro e enrugado! Não havia de ter sido roubado, furtado ou transportado. Era dele.
     O espelho da rua refletia aquele homem arquetipicamente: um estado natural superior e antigo, elaborado, mas sem retoques, requintado e bruto, comum e específico. Entretanto, a opacidade dos meus olhos não o refletiu. Em vez de um ordinário destaque urbano, um caractere, um homem, senti-o fugente, sobejante como uma guimba caída de um cinzeiro imundo, desculpando-se às cinzas pela imolação. Guardei-o na memória e deixei-o ao expediente ordinário das letras, que são o contar e o recontar as coisas amputadas do tempo da vida dos outros. Segui meu caminho, certo de que nunca mais veria a chuva tão plena de sua tanta onipresença: faltará sempre ela cair sobre aquele homem murcho, dentro de quem, eu bem o sabia, chiavam torrões de estiagem tão secos e estéreis que nem mesmo o próprio sertão, com seus ossuários de desejo, abarcaria.

02/10/19

terça-feira, 1 de outubro de 2019

PRIMAVERA

Fernando de Souza - Chananas no Araripe

a folha em branco nunca me desapontou
praia de minha infância
deserta e repleta como eu
nela, cato conchinhas e finjo afundar
na arrebentação
emerjo para o sol
com a saudade de quem ainda não partiu
e o desamparo do recém-conhecimento

diferente é o sertão
neste, expedições!
ao contrário do mar, onde imergir é morrer
o sertão me abre à medida que o abro
também como o papel em branco
mas diferente
o primeiro é o último segundo magnético
— a hora erma finalmente encontrada —
e o segundo, mesmo seco
é a estação em que floresço
primeiro que todos
e por último

01/10/19