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quinta-feira, 3 de outubro de 2019

O GUARDA-CHUVA

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     Achei a coisa mais triste, hoje, um homem que vi na rua, portando só um guarda-chuva. Imaginem-se a preparação antes de sair de casa, a busca automática pelo essencial: óculos, chaves, documentos, dinheiro, cigarro; em seguida, as circunstâncias: os telefones, os boletos, as agendas, a bolsa, os papéis e a determinação de funcionar novamente. Caso houvesse a chuva ou a possibilidade desta, aí sim, o guarda-chuva. Mas, só o guarda-chuva? Num dia sem chuva e sem essa possibilidade? Imaginei para que aquele homem se preparara. Ato contínuo e maquinal, costume herdado dos antigos, cópia de personagens cinematográficos, necessidade de um objeto fálico nas mãos ou de alguma coisa que se justificasse esquecer e completasse a lacuna que o próprio hábito de esquecer-se criara? Como quem andasse com garrafinhas d’água nas mãos só para queixar-se depois de havê-las perdido?
     Nada. Não havia mais nada com aquele homem em suas mãos exceto o guarda-chuva. Teria deixado arraigar-se o uso dele como se o usasse para diferenciar-se do vulgo? Teria a eterna incredulidade dos que duvidam do óbvio ou a dúvida infantil de si mesmo? Talvez. Mas como me incomodou profundamente a tristeza que senti pelo seu desamparo de uma possível preparação frustrada pelo sol! E se o usasse como um guarda-sol? Poderia ser. Não é comum em homens, mesmo os velhos, mas poderia ser o seu caso. Contudo, a sua postura empertigada de quem ia ou vinha de um afazer, o seu movimento laboral estático como um elástico puxado diziam que não. Aquele homem esperava uma chuva na existência de seu dia. Mas, que chuva, meu Deus, em entradas de outubro, ausente mesmo no caos climático deste início de século? Deu-me uma dó tão grande o seu desamparo! Pareceu-me haver procurado no guarda-chuva uma dignidade de homem urbano que não batia com o seu tempo. Seria aquilo um distintivo, uma lança de Quixote, uma lanterna de Demóstenes, um archote de Prometeu? O que aquele homem buscava, senão a proteção óbvia? Talvez o não óbvio: proteger-se dos outros homens ou de uma queda num equilibrismo desastroso numa comédia de praça. Poderia ser esse guarda-chuva uma clava moderna e citadina contra a insegurança da urbe, ou seria mesmo apenas uma forma de preservar-se da ausência em que ficam as mãos sem objetos, o que intuiria nos outros uma pobreza que sairia dos bens e entraria na alma e, mais fundo, no espírito? Não carregar nada é não ter nada, o que é o mesmo que não ser nada aos olhos dos outros, o que vem a ser o mesmo que não ser nada aos próprios olhos. Mas poderia tê-lo achado, poderia estar levando-o para ou de alguém. Poderia tê-lo furtado, escamoteado de uma loja (mas era usado!), poderia tê-lo surrupiado a outro — igual a este ele que eu imagino e de quem tanto me comisero — de dentro de um ônibus, talvez, ou do metrô. Poderiam ter-lho dado, como se faz com um desses estorvos que se ajuntam nas casas de quem quer das coisas o supérfluo e depois o descarta para dar lugar ao supérfluo mais novo — assim como os homens fazem com as mulheres e como as mulheres fazem com os homens e como todos fazem com os velhos, as crianças, os celulares e as rifas de caixas de chocolate. Mas como era dele! aquele guarda-chuva, era tão dele!, e inútil!, como um terceiro braço, negro e atrofiado! ou como uma enorme estrovenga capada, empalhada e envolta em crepom negro e enrugado! Não havia de ter sido roubado, furtado ou transportado. Era dele.
     O espelho da rua refletia aquele homem arquetipicamente: um estado natural superior e antigo, elaborado, mas sem retoques, requintado e bruto, comum e específico. Entretanto, a opacidade dos meus olhos não o refletiu. Em vez de um ordinário destaque urbano, um caractere, um homem, senti-o fugente, sobejante como uma guimba caída de um cinzeiro imundo, desculpando-se às cinzas pela imolação. Guardei-o na memória e deixei-o ao expediente ordinário das letras, que são o contar e o recontar as coisas amputadas do tempo da vida dos outros. Segui meu caminho, certo de que nunca mais veria a chuva tão plena de sua tanta onipresença: faltará sempre ela cair sobre aquele homem murcho, dentro de quem, eu bem o sabia, chiavam torrões de estiagem tão secos e estéreis que nem mesmo o próprio sertão, com seus ossuários de desejo, abarcaria.

02/10/19

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