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segunda-feira, 7 de outubro de 2019

O MOLHADO DA FAROFA

     Em criança, aprendera de sua mãe como fazer uma farofa. Vendo, intuía que se frita algo, então se aproveita o óleo com os resíduos na própria frigideira e coloca-se a farinha por cima, ao que, com uma colher de pau, de preferência, se meche e se raspa e se mistura tudo. Era esta a farofa: sequinha, um pouquinho queimada e com um gosto distante do que se fritou. A de ovo era diferente; fazia-se com a própria fritura — eram ela e a de couro de frango as únicas que se requintavam com pedaços — e, porque o ovo nunca era seco, era um tanto molhadinha, um meio-termo entre uma farofa e um pirão. Às vezes, fazia-se uma de galinha cozida, e era também molhada. Eram as exceções. Tudo era sequinho: a de fígado, a de peixe e a de bife, que não eram dados a luxos.
     Cresceu, e seu paladar o acompanhou na austeridade da semipobreza. Gostava de coisas simples e pragmáticas, e era dentro desse pragmatismo alimentar que o prazer da mesa existia. Nas raras vezes em que se aventurou, tivera ou uma reação alérgica ou uma culpa retrogustativa. Essa culpa era como um cilício que lhe sangrava a coxa, pois gostava de comer e o fazia em parceria com esse desgosto. Era um sofrimentozinho que insipidava a língua. Chegou a desenvolver um refluxo gástrico que lhe arremetia a uma autopunição, um jeito de pagar a mais pela comida sem culpa, pois sofria.
     Passou o tempo, passou o refluxo, arrefeceu a austeridade, e instaurou-se um novo jeito de flagelar-se: a irresponsabilidade. Passou a comer novidades. Incrementou a culinária. Cozinhava criando, misturando o impossível, temperando com o insalubre. Demorou, mas atingiu uma espécie de bom senso. Tinha gosto em preparar almoços e merendas para a família e esperava deles a anuência dos gemidos e suspiros. Nesse ponto, rompeu com o paladar filial. Imaginou sua mãe como expectadora e provadora de seus pratos. Divergia intimamente de tudo quanto comera: carneiro leva sim canela; frango frito vai ao forno com batatas; não se dessala carne salgada para o feijão. A última foi a farofa. A de sua infância migrou da austeridade sublimada e da mesquinhez desinventiva ao experimentalismo semierótico e pseudocientífico. Foi ali o seu último rompimento, a tesourada no último fiapo do cordão umbilical. Passou a não só fazer a farofa com pedaços da fritura — aliás, reduziu a fritura a uma mera etapa da feitura da farofa —, mas também lhe acrescentava iguarias caras, compradas especialmente para ela, como cogumelos, aspargos, alcachofras, azeitonas recheadas, alho-poró, gengibre, cominho, louro, salsa fresca, pimentas-biquinho. Comprara uma frigideira enorme, como vira nos canais de culinária. Fritava a carne de sol com cebola e alho, pedaços picados de toucinho, cubinhos de pernil de porco caramelados com gergelim, depois encimava de vegetais que nunca comera em menino e o fazia com uma certa raiva por ter demorado tanto
quanto tempo até aquele gastamento, aquele perdularismo, aquela sobejidão! Imaginava a mãe em espírito ao lado do cook-top, sacudindo levemente a cabeça — “esse menino já gosta de inventar…” — e sorria, querendo que ela provasse e aprovasse.
     Cozinhar estendia sua solidão. Nesse esteio, desenlinhava-se o tear de sentimentos enovelados que carregava no peito. Acabava aquilo por ser o que mais queria: desconectar-se, existir internalizado e livre no castelo do ensimesmamento. Cada ingrediente era saboreado molecularmente nas enzimas de sua solidão, e os digeria lento, satisfeito com a autofagia espiritual. Nunca, na sua vida de menino, sonhara em comer apenas farofa. Nem mesmo paçoca, que lhe era uma extravagância como camarão ou batata frita, coisas reservadas para dias de viagem e outras experiências familiares teatrais. Aquela infância limitada de sabores e texturas lhe incumbira a tarefa de engendrar sua horta e sua criação ele mesmo, na terra sertaneja de seus sonhos. Agora, hora do almoço, dava-se o comer apenas aquilo, e aquilo lhe era bastante, e o isolamento assomava como uma transmutação, e todos os sabores se reuniam na orgia egoísta de sua cozinha anímica. Ao seu lado, seus familiares mortos, os sorrisos condescendentes, as cabecinhas espirituais sacudindo enfastiadas: “esse menino, esse menino só quer ser o que não pode…”.

07/10/19

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