Número de sílabas (desde 11/2008)

counter

quarta-feira, 12 de abril de 2023

DEVAGAR

     Devagar, pequenas dobras se desfazem, e o pano do lençol vai pouco a pouco perdendo a sua história: o vinco onde habitavam sobras das melhores noites, uma vez planificado, esterilizou-se; pequenas manchas caligrafadas em silk-screen pelos corpos, compondo a sua própria materialidade e transcendência, craquelaram-se em pó e foram sacudidas pelo descaso das mãos; fios de cabelos, de pelos e penugens foram-se evolando para o espaço, que é o ponto em que o limpo vira sujo, e o amuleto, tabu.
     Devagar, no arrumar-se o quarto, vão-se apagando as letras de minha recentíssima biblioteca. Novamente branqueadas, as páginas só existem, e nada mais. “É necessária uma certa medida de amnésia”, pensei. E esqueci-me disso imediatamente. Mudando as coisas de lugar, retornando-as ao novo que era o velho, refazendo as pegadas à moda pioneira, fui devagarinho matando-me e enterrando-me e lavrando a terra sobre meu corpo-chão para repatriá-la novamente a mim, como se ali houvesse invadido e perpetrado genocídios aos ilegítimos. Balela. A cama, em seu porquê, era uma república inexpugnável. Suas pernas sólidas de cerejeira, seu estrado reforçado no centro e nas periferias, sua cabeceira fluvial… tudo me clamava de volta, estabelecendo-me, ressituando-me, ressuscitando as noites dispersas.
     Devagar, fui-me deitando. O corpo dolorido recordava o seu auge, irrompendo descontextualizado no mundo. Devagar, fui-me lembrando e lembrando… já fui isso, já fiz aquilo. “Poucos o foram ou fizeram-no”, conforto-me entre as câimbras e as dormências. “Somente eu fui eu”, sentencio, por fim.
     Devagar, as histórias de quem fui vão tecendo o lençol que me protege abaixo do teto da chuva e do frio lá de fora. “Aqui é bom, mas também é frio”, lamento um pouco. Devagar, a noite vai-se reabrindo em suas pequenas luzes. Destacam-se no meio do impossível os sonhos de vingança e os de terror, e todos me divertem o suficiente para eu querer acordar dentro deles. As lembranças, meio longe, sempre figurantes. Como têm de ser.
     Devagar, sem que eu queira ou permita, a biblioteca se reconstrói, e se recompõem os volumes e os tomos. A sede me acorda dentro, novamente, de mim. E a imensa sala de inutilidades de que sou feito reclama, como há apenas quatro horas, por uma faxina que começo a aceitar ter-se tornado a atividade central da rotina doméstica que, devagar, vem-se tornando minha escravidão e, ao mesmo tempo, minha indolência.

12/04/23