Número de sílabas (desde 11/2008)

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sábado, 30 de novembro de 2019

O CAFÉ DE ACÁCIO


    O café descia quente como um abraço. Era frio onde vivia. Quando descia à cidade, tinha a sensação de que o dia o abraçava, e essa sensação era nada mais que isto: uma vaga ideia de quentura, conforto e excitação açucarada. Nunca vira seus pais se abraçarem. Nos poucos domingos em que foi à missa, em dias santos ou em ocasiões de sétimos dias, sentiu que as pessoas tinham uma espécie de medo físico inconsciente, uma íntima rejeição da suavidade. Os diálogos eram brutos, peremptórios. Os apertos de mão, violentos, quase como uma pequena contenda entre as partes, cada uma agredindo a outra com toda a tradição que carregava no peito, nos ombros e que canalizava às mãos impositivamente. Dessa forma, cresceu sem memória de afeto físico, sem memória mesmo de verbalizações de afeto.
    Olhava as poucas pessoas que encontrava no seu dia a dia de roceiro filho de roceiro com uma curiosidade alienígena. Ou eram os freteiros semanais que subiam a Aratuba, descendo de volta, em suas caminhonetes, o que plantavam, ou os vizinhos, se é que se poderia chamar assim a semiparentada residente a uma légua uns dos outros, no mínimo. Quando criança, havia mais encontros, nos quais ele e os outros meninos animalizavam-se nas várzeas e às margens do riacho, caçando teiús e matando rolinhas, degolando calangos e estourando cururus. Nessas brincadeiras, os mais velhos, iniciados na usura da adolescência, fumavam escondidos e tentavam descobrir quais dos mais jovens permitiam, por inconsciência, curiosidade, inatismo ou mesmo inação, um falso troca-troca, do qual estes sempre saíam em prejuízo. Quando eram identificados, os cus-de-bacorinha passavam a ser uma espécie de bem comum, sempre ausentes, sempre misteriosos e temerosos do seu novo segredo. Lembrava que o Totim Avelino, depois de iniciado, adquiriu uma atitude que variava entre o comportamento de um maracajá e o de um gato comum. Tornou-se desconfiado e arisco, mas também manhoso e dissimulado, porém, ainda assim, não conseguiu ver nele um café que pudesse tomar, nem quando ele mesmo adolesceu, e esburacava as bananeiras para satisfazer-se. O que não entendia era que o Totim, assim como o Macedo, depois que cresceu, deu para beber e virar mesa, sempre odiento, e, diferente deste, que morrera em briga de faca numa ocasião em que lhe chamaram burra-mole, fez-se respeitar pela vileza e imprevisibilidade.
    Assim, deu-se pelos seus doze anos de autoindulgência manual a inexistência do conhecimento alheio de sua pele, anos esses que, somados aos de sua infância, a qual acabara quando da morte de sua mãe, resultavam nos vinte e um de uma vida seca no meio da fartura fria daquele sertão de estranhamentos e sovinarias. Aconteceu então de, na antevéspera do dia que marcara para descer à cidade a fim de comprar as varas de cano de irrigação que substituiriam as estragadas pelo lodo e pelo sol, surpreenderam-no quatro criaturas como nunca vira, mais coloridas que as tangerinas, as mangas-rosa ou qualquer outra fruta dali, todas de peles rabiscadas e pintadas, divididas em dois casais de óculos escuros, carregando nas costas enormes mochilas com ganchos e varetas e cordas e penduricalhos, cantando-lhe — pois nunca imaginou que se falava com melodias — se poderiam acampar naquele terreno, que era seguro, próximo da água e mais quente. Demorou a responder que sim, numa trapalhada verbal espantada, desconfiada e maravilhada, pois nenhum dos argumentos que enumeraram fazia sentido. Quanto mais reparava neles, mais se impressionava e menos articulava, o que os fez pensar que ele tinha algum tipo de retardamento. Via as mulheres usando brinco na missa, mas eram discretos e furavam os lóbulos. Os quatro pareciam tucunarés que haviam escapado a muitos pescadores, rompendo-lhes as linhas e guardando nos corpos os anzóis como troféus. Todos tinham o couro mais colorido que os cabelos, os cabelos mais coloridos que as roupas, e estas mais coloridas que todo o sertão junto. A mais falante, que lhe fizera a pergunta, ria e miava palavras que ele nunca ouvira, o que o fez pensar, em seu preconceito matuto, se eram todos também meio aluados ou beréus, pois falavam como se não tivessem músculos nas mandíbulas, e as línguas pareciam rabos de boi tangendo mutucas. Nesse imbróglio, finalmente, entenderam-se: ele, que eles ficariam por uns três dias, pois estavam de passagem para Baturité, onde ficariam no Mosteiro; e eles, que ele se chamava Acácio, que o sitiozinho era dele e que poderiam acampar, usar a água e o arremedo de garajau onde ficava a latrina.
    Carga no chão, armaram as barracas na base limpa do outeiro e deram-se aos flozôs de turistar sem sair do canto e acender uns fininhos, coisa que Acácio fora ensinado na missa a atribuir ao Cão. Lembrou que, na infância, quando os mais velhos se escondiam para fumar, os cigarros eram pés-duros, de fumo roubado dos pais, enrolados em qualquer coisa, papel de jornal ou palha de milho. Apareceu o filho do Seu Zé Saboeiro com um fumo diferente, mutucado numa caixinha de fósforos, cheiroso e clarinho, e correu gente a dar uma tragada. Lembrou também que se decepcionaram, pois o fumo de rolo com que estavam acostumados era nauseabundo, mas arrebitava o espírito e os masculinizava e amadurecia de modo a ser uma espécie de rito de passagem entre eles. Por outro lado, além do fato de parecer tempero de mezinha, aquela ervinha amolecia as juntas e dava numa risadagem besta, da qual todos se constrangeram depois. Contudo, Acácio sentiu uma certa nostalgia quando a fumaça lhe atingiu as ventas, e ficou na janela que dava ao terreiro, bispando de longe como os coloridos estavam. Nunca viu gente falar tanto, e com vozes que não reconhecia em idade nenhuma, e com uma alegria tão antinatural, herética e livre. Sentiu uma angústia entre as pernas e um segão lhe abrindo a garganta, e, sem perceber, estava com as calças arriadas, punhetando como fazia quando brechava a curra do Totim Avelino por entre as bananeiras. Não eram nem as coxas branquinhas que os quatro exibiam, nem os decotes e os cangotes magnéticos. Era o fato de, aos seus olhos, os quatro não possuírem marca alguma de cangalhas ou cabrestos — que toda gente tinha —, misturado com aquela gastança de vida, aquela liberalidade de gestos e palavras e gaitadas e lassidões, como se não houvesse Lei no mundo, como se ele, Acácio, visse pela primeira vez o coito dos anjos com as almas das virgens que o padre Abelardo dizia que tinham passagem comprada e carimbada para o Céu. Aquilo tudo lhe espremia os ovos e espasmava as nádegas de tal forma que nem percebeu que emendara uma punhetada na outra, grunhindo e salivando como um barrão, como um bicho sem alma. Deu-se que as duas moças encangaram-se num beijo de língua, num beijo simples de namoradas, e que os rapazes se recostaram um no outro, românticos como noivos, pagãos como diabos, azunhando felinamente a nuca um do outro, entrançando as pernas e baforando a maconha como sultões numa orgia. Aquilo arregalou os olhos de Acácio, que tremeu na perna e gozou violentamente pela segunda vez no reboco de taipa do peitoril da janela, esganiçado na síncope moto-contínua daquela masturbação sem alvo. Doía de uma dor nova, sem centro, e sentiu que ia morrer ou nascer, não sabia ao certo, mas sabia que tinha de fazer algo. Correu ao fogão, ferveu a água e pôs-se a moer os grãos de café como se sua vida dependesse daquilo. Era tudo novo, havia estampidos mudos na atmosfera da cozinha, e seus olhos choravam sem sentido a recente descoberta do que tinha em seu quintal: um extremo nunca imaginado do que poderia ser uma felicidade física, um gozo perpétuo de sua existência, isso, se ele soubesse proceder. O caso era que não sabia, e a ideia de perder antes de ter o assombrava como o pé-de-peia que seu pai ensinou haver do outro lado do riacho, temendo que seu filho morresse afogado na curiosidade de menino.
    Chegou trêmulo ao fundo do terreiro onde começavam o mato e os pés de fruta, e falou o mais devagar que conseguiu que tinha café e perguntou se não queriam um pouco. Desde que chegaram, os quatro simpatizaram com Acácio. Apesar da afasia, ele era simpático e só um pouco mais velho que eles, o que viabilizava diálogos. Eram todos veranistas das primeiras férias da faculdade onde estudavam Geografia e queriam voltar com experiências e histórias que lhes antecipassem um renome na turma. Ninguém namorava ninguém ali, ou todos namoravam todos, mas só porque se deu a circunstância de todos toparem a viagem e o sexo sem compromisso entre amigos que viria dela. Entenda-se que a ausência de fronteiras sentimentais possibilitava a inclusão de novos membros naquela vadiação, como ocorrera em Mulungu, onde participaram de uma festinha de piscina no sítio de um completo desconhecido, que enfiara e gozara em todos os buracos dos quatro e acabara ele mesmo por descobrir as delícias do fio-terra, que evoluíra a uma sarrada, e esta, por sua vez, a uma bela comida de rabo, que levara gritando suas revelações. Sem saber, Acácio também era uma lagartinha itinerante na teia quaternária ocasional daquela ovulação de aranhas. Eles mesmos intuíram o açúcar daquele café, mas estranharam a rapidez do contato. Normalmente, demorava dois dias, tempo suficiente para que se percebessem visual e sonoramente as possibilidades fetichistas que ofereciam.
    Entraram, sentaram, sempre rindo gentis e lubrificantes, e o cheiro do café pungiu-lhes as verdades de Acácio. Súbito, sem que tivesse havido um arranjo para tal, gemeu na fumaça o sabor da carência de uma vida inteira, uma carência encorpada, negra, forte, terral. O frio da Serra era a partitura daquele concerto, em que as cores das cordas e dos metais silenciaram ante aquelas primeiras notas das madeiras, harmoniosas em sua urgência, impactantes em sua suavidade. Pegaram das canecas, sorveram calados, e Acácio tremia idiofonicamente seus desejos íntimos. A moça que mais miava foi a primeira a agir. Não disse nada. Pôs-se de pé e cercou-o sentado no tamborete de couro de boi, roçando os bicos dos seios durinhos sob a blusa em seu cachaço teso. Acácio vibrou inteiro, gaguejou algo incompreensível e sentiu uma boca quente tomar o lugar dos mamilos e sussurrar-lhe num meio chupão um “delícia de café, brigada”. Nem bem se ergueu, e recebeu um cangote penujando-lhe a boca em retribuição, conduzindo-o ao jirau, reclinando-se em decúbito e, antes do abraço tão imaginado, ofertando-lhe o fruto branco e polpudo no fim daquela cerviz. O fumo do café fresco recebeu a marola colorida com exatidão. Logo, a cozinha era um palco de desmembramentos de vergonhas e do defloramento do próprio Acácio, que entendeu o que havia do outro lado do riacho, além dos temores de seu pai, dos malassombros dos pés-de-peia e das caiporagens brutas dos meninos mais velhos. Do lado de fora, passando o terreiro vermelho, a friagem trouxe uma chuvinha rala, engordando a travessia do riacho, que transbordou inútil numa cachoeirinha mais abaixo, onde, escondido do seu pai, enveredava-se Raimundo Avelino, arrastando pela mão um leitãozinho que descobrira na semana anterior no oitão de sua casa, desconfiado, meio gato, meio maracajá, para as locas dos pitus, que era onde tudo aquilo acontecia.

30/11/19

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

TODAS AS CORES DO UIRAPURU


    Nem ligava mais se a entendiam. “Isso é gente que não chove”, dizia às rolinhas. Todos os dias, fazia pelo menos uma coisa sem sentido algum aos olhos tão acostumados com o pragmatismo da capital, e isso a tornava ridícula em seus farrapos de mendicância, mesmo aos outros desgraçados como ela. Vira e mexe, conversava numa língua pagã com uma árvore ou dedicava uma tarde incinerante a andar curvada pela Praça, catando os lixos minúsculos que os garis haviam ignorado. Talvez, fosse a sua infância iluminada por um sol diferente, a qual lhe ensinou como andar descalça e o tom de voz certo para chamar passarinho. Fortaleza era tão pobre de passarinho, só tinha pardal e bem-te-vi. Enojavam-na os pombos. Ela, que se acostumara a comer avoantes e hamburguesas no sertão de sua avó, sentia um certo ódio quieto daquela ave tão urbana. Achava-a feia como os prédios e os postes, e, pior, sentia-se oprimida de tal forma que se impressionava como se vendo uma visagem quando vinham em revoada, à semelhança de marimbondos enormes. A cidade inteira lhe era como um gigantesco arapuá que não podia queimar como o fazia seu avô, quando ia colher mel nos campos da vazante. Ali era sempre verde, mesmo na estiagem, e o aroma dos cravos-de-defunto, dos jasmins e das flores das mangueiras adoçava a atmosfera como uma grande roupa natural, como uma grande alma, dentro da qual brincava a dela. Já o pombo combinava com o poste, que combinava com o prédio, que combinava com o cinza quase tátil que se respirava no Centro.
    Na Praça do Ferreira, ela era a “doida do assobio”. A galhofa tão típica do fortalezense é, na verdade, a maior violência desta cidade, ensinada desde o berço e aplicada até o pós-túmulo. É como se todos existissem nos dois extremos apenas: os defeitos, laureados pelo coió — patrimônio imaterial —, e as virtudes, sempre associadas ao poder que inviabiliza o coió. Entre os polos, um pêndulo que dança entre a hostilidade e a subserviência. No sertão dela, também tinha disso, mas não era ambiental como aqui. Aqui, na falta da parede do açude, fugia assobiando para as viuvinhas e um ou outro sibite, que ornavam os velhos oitis da Avenida do Imperador.
    Também, com as décadas, fora perdendo a memória, tanto que não se lembrava mais do assassinato do pai pelo avô na ocasião em que aquele fora pego tentando estuprá-la. Não se lembrava mais das foiçadas e dos gritos, mas ainda guardava uma predileção inconsciente pelo vermelho. Também não se lembrava de ter sido expulsa pela mãe, que nunca lhe perdoara os ganidos que lhe roubaram o homem. Tampouco do desgosto do avô, que pegou maniconia e apaixonou-se pela morte, gemendo pela esposa finada no terreiro da cacimba, onde fora encontrado meses depois, mole e podre, os quartos quebrados. Viera de caminhão em caminhão, sempre pagando com a moeda que matara o pai, até dar em Horizonte, donde andou até sangrarem os pés na esperança de ver o mar. Viu. Era grande como lhe contara a avó, que guardara numa garrafa vazia de cachaça um litro de sua água, o seu bem mais precioso, atrepado na prateleira dos santos, ao lado de um Sagrado Coração de Jesus e de um Imaculado Coração de Maria, onde votava seus terços de saudade. Contudo, decepcionou-se com a solidão do mar. Esperava algo parecido com o que sabia de água, que era o Jaguaribe dando no Orós, algo como um encontro, uma comunhão. Sua alma doeu um pouco, pois rezara para aquela água em menina, e esperava uma espécie de Deus sertanejo, turvo, violento e bom, um Deus como seu avô. Em vez disso, encontrou imensidão e sal e não entendia como as pessoas adoravam se salgar naquela água de onde sempre se saía mais sujo do que quando se entrava. Nem entrou. Molhou os pés, que arderam nas lazeiras e nas unhas perdidas. Daquele dia lembrava-se bem. Começaram ali os coiós e as arengas. Nunca pensara que ser matuta era coisa que se usasse como ofensa, e era uma ofensa tão aguda, pungente como aquela ondinha suja que lhe chupava o sangue dos entrededos. Sem saber o que fazer, acentuou a matutice num esconde-não-mostra da cara entre os ombros, e foi-se andando torta pela dor do sal e das tampinhas de garrafa sob os pés. Subiu a rua da igreja, igreja feia demais, parecia um malassombro cinza, pontiagudo. Desde que entrara na cidade por Caucaia, sentiu um acinzentamento de tudo, do céu, do ar, das pessoas, até que, para não ficar também cinza, coloriu o ar à sua volta com os assobios, que era o seu jeito de passar pelos aperreios. Foi escorraçada de casa assobiando, assobiou enquanto os caminhoneiros e freteiros lhe comiam o resto de infância, assobiava para não se perder, pois seguia o som que projetava alma nas coisas que lhe tiravam, família, virtude, vida. Assim foi. Existia dentro das musiquinhas de menina e das imitações de sabiás, graúnas e bigodeiros, de que tanto o pai gostava. De alguma forma, nessa amnésia, sentia-se bem, como se um santo lhe houvesse agraciado com a percepção de um sentido íntimo das coisas passageiras e a dessignificação dos traumas, dos quais pareciam ser compostos todos os outros. Retinha os sorrisos das crianças filhas de outros mendigos como ela, aos quais retornava sempre uma imitação de passarinho, mas não perdia nem um momento considerando a própria miséria ou o olhar ascoso das outas crianças com as suas mães, que só não lhe passavam por cima por nojo, até porque, como não se lembrava como fora dar ali, não era capaz de pensamentos dessa profundidade. Lembrava o sertão iluminado, paraíso para o qual, um dia, voltaria. Lembrava a decepção do mar e o início e o então do cinza urbano, e isso era como o seu diabo. Para o resto, assobiava e se coloria toda, sem lhe atingirem os escárnios e os coiós cotidianos.
    Naquele cenário, no centro do Centro, no centro do início daquele aglomerado de fins, visitavam-na e aos outros mendigos, casualmente, voluntários de igrejas e assistentes sociais. Achava graça neles. Ninguém dizia coisa com coisa. Falavam de higiene e de Deus, como se ela não pudesse lhes ensinar assobiando a anatomia e a Bíblia, a ciência atômica dos corpos e a metafísica absoluta do universo. Contudo, numa manhã em que assobiava para um saco preto de lixo de lanchonete, de onde retirava os restos que lhe calavam momentaneamente os silvos, parou diante dela uma mulher velha, branca, mais ou menos da sua idade, com o olhar silente e duro como o de uma matriarca que manda o filho se calar. Assombrou-se de súbito, mas logo abriu um sorriso podre de volta, pois não viera dela nada de ruim. O olhar da velha dizia muito. Ela o ouviu atentamente. A velha abaixou-se, acocorando-se ao lado dela, sempre lhe dizendo o que ela sabia ser só para ela, pois não havia palavras nesse dito. Desabituara-se das palavras, pois o nome das coisas era música, e ninguém lhe dizia nada de importante. Sentiu que a velha se apequenava à medida que o diálogo prosseguia, esvaziando-se pelo olhar, que a preenchia de sons que nunca ouvira nem saberia imitar. Também lhe pareceu que ela não era mais velha, que ambas não eram mais velhas, que ambas iam suavemente se colorindo — uma, preenchendo o seu branco de laranjas e crisóstomos; outra, atenuando o seu negro em tons lilases e amagentados. Foram, no tecido daquele silêncio, vestindo-se uma da outra, tornando a ser quem foram, sob os umbuzeiros e entre as gravioleiras, ambas bebendo daquela sertania, tão misteriosa aos que as rodeavam — pois nunca enxergaram aqueles espectros luminosos nem ouviram aqueles segredos compartilhados de beira d’água —, mas tão identitária, e íntima, e telúrica, que pareciam ambas mãe e filha, filha e mãe, terra e planta, sertaneja e sertão. Seu coração crescia, e ia se lembrando de todas as coisas. Lembrou-se de outro mar, de outros pais, de outros crimes. Lembrou-se alegremente de quando era inconclusa, feita apenas de pensamentos e imaginações. Lembrou-se ainda mais distante, quando, na mais absurda liberdade, existia inimaginável, etérea e ampla, parte intrínseca de coisas que ainda nem existiam. A velha, já remoçada e multicolorida, confidenciava-lhe o segredo que guardava o que lhe diziam todo aquele tempo os passarinhos, quando ela os imitava declarante de si, mas ignorante deles. Ela compreendeu com a surpresa de quem não sabia como não percebera antes. Ali, ela, também moça, irradiante de tons de opala, iridescera finalmente àquilo tudo que poderia ter sido quando lhe roubaram corpo e alma e resplandeceu em cores impossíveis dentro dos ouvidos do chão, das árvores e das águas. Face a face, ambas se perpetuaram num trinado de uirapuru, bicho lendário que seu avô lhe contara ter visto com as oiças, uma vez só, sorrindo banguela as suas lembranças de São Saruê.

18/11/19

domingo, 17 de novembro de 2019

O HEREGE

    — E quem te disse que eu queria?
    — Não quer?
    — Não é da sua conta.
    — Claro que é da minha conta. Quem vai ou não te dar sou eu. Aliás, essa marra toda não tá te ajudando em nada. Gente assim acaba tendo o que não espera.
    — Você não me conhece pra nada. Não preciso de ti! E vá baixando essa bolinha murcha de juiz, certo? Marra é cabeça de bode e mãozada na cara.
    — Já engrossou… Como é que, só pra efeito de lógica, você vai me dar essa mãozada?
    — Tem uma infinidade de maneiras de te quebrar a cara e a pose. Só você, debaixo desse manto sagrado, acredita que é inatingível. Você é a criatura mais cheia de expectativa que existe! Quando não é do seu jeito, lá vêm fogo e enxofre, sete anos disso, sete daquilo, dilúvio e o caralho a quatro. Quem sabe é a Lilith…
    — Ah, agora vai citar os renegados… Essa é a tua violência?
    — Não.
    — Não vai vomitar as tuas blasfêmias agora mais não?
    — Não.
    — Sei. Monossílabos. Acabar, o misterioso sou eu.
    — Não tem mistério, Vossa Onisciência. E, se tem, que diabo é que tu tá fazendo conversando comigo? Quer respostas?
    — Sei todas, criatura.
    — Então me responde. Por que não é da tua conta?
    — Orgulho.
    — Mas é muito arrogante mesmo… Cheguei até aqui me despedaçando, arrastando minha miséria por décadas, mendigando existência, evitando contrariar o que o padre me disse quando eu tinha sete anos, sete anos! Que pecado um cristão consegue ver numa criança de sete anos pra dizer a ela que a vida dela é de outro? E não fazer nada além da ameaça? Não é orgulho! Nunca foi isso, que isso eu nunca tive! Nem agora! É independência! Independência, entendeu? Esta vida aqui, esta merda de vida, é minha! Se sou mais desgraçado que ela, é porque a graça não me importa! A graça foi pra todos os outros que me desgraçaram, inclusive pra ti. Pois não me interessa mais a tua graça, não quero mais, porque querer foi o que mais me desgraçou. Lembra aquele teu silêncio quando eu era roído pelos ratos e disputava comida com eles? Aquele teu silêncio era tão alto, mais, muito mais alto que o meu choro e os meus gritos. Quando apanhei, quando calei todas as injustiças, onde é que tu estava? Me dando graças? Ou era eu que devia me ajoelhar na merda enquanto apanhava e era mijado pelos outros e te dar graças?
    — Entendi a referência. Você quer fazer o que acha que meu filho deveria ter feito.
    — Pobre homem! Coitado! Fez tudo, tudo! Morreu pela gente uma porra! Morreu por ti! Porque foi tua ordem!
    — Sei que isso é muito pra tua capacidade de imaginação, mas já se esqueceu de que eu sou três?
    — Olha, essa história pode ter colado pra Maria. Nem teus padres acreditam nisso. Zeus, pelo menos, era honesto. Descia, estuprava e ia embora, como todo bom canalha, e não negava! Mas dava sempre uma ajudinha aos filhos. Já tu…
    — Hum. Agora, vamos apelar pra poesia…
    — Que é que tu entende de poesia?
    — Olha, você já está ficando irracional. Antes que perca a capacidade de articular as ideias, me responda: quer ou não?
    — Não se preocupe, que eu tô mais lúcido que Lúcifer. N Ã O   T E   I N T E R E S S A.
    — Ok, depois não acrescente mais este à sua lista de arrependimentos. Estou aqui pra te ajudar. Depois daqui, pela minha lei, não pode mais contar comigo. Pra onde vai, não tem volta.
    — Meu querido, se eu, por uma recaída de falta de amor-próprio, sonhasse com uma redenção vinda de você, uma redenção de um crime que você mesmo inventou chamar de crime, igual a uma dondoquinha rica dando esmola no sinal, fingindo ignorar o seu peso no esmagamento dos pobres, essa sua redençãozinha automasturbatória, essa sua merdinha de redenção pra se manter branquinho e limpinho no seu troninho, calando a boca da oposição a cada dia mais crescente e perigosa, apesar dos esforços do Francisco, se eu fosse contar com essa sua redenção, eu seria mais besta que a pobre da Madalena, acreditando naquele teatro das pedras.
    — Olha o respeito com a minha mulher!
    — Arrá, olha aí! Olha aí, rá, rá, rá rarrarrarrarrá!!! Vai pro céu, patriarca de merda, vai pro teu mundinho de reizinho! Aqui, não! Aqui, só tem liberdade! Vai fazer o quê, me matar de novo? Hein? E vai fazer isso como? Minha alma é minha, porra! Minha! Besta foi quem caiu na tua e tá aí azedando na espera do teu juízo. Quem me julgou fui eu, e eu me libertei!
    — Pois bem, seu herege. Agora, nem que tu quisesse. É feita a minha justiça! Vai-te!
    Caiu rindo, caiu sabendo que toda queda é um voo, e todo voo é a administração de uma queda. Sentiu o calor pela primeira vez e ardeu, mas não como o prometido. Ardeu gostoso, ardeu aceso como uma lamparina sertaneja numa noite fria de bacuraus, mochos e caborés piando nos juás e nas barrigudas. Sabia que não haveria mais vento que lhe apagasse a chama, nem de boca, nem de céu, nem de mar. Naquela infinitude de si e de mais ninguém, lembrou-se de quando dormia no papelão molhado sob a marquise dos fumadores de crack, lembrou-se do frio que a fome fazia sentir mesmo sob o sol cearense. Olhou em volta e sorriu, manso, inteiro, concluso. O que nunca fez em vida deu-lhe a morte: dormiu em paz pela primeira vez.

17/11/19

terça-feira, 12 de novembro de 2019

COLAR DE PÉROLAS


    — “A pérola é o câncer da ostra”, dizia para si mesmo àqueles dias.
    Bêbado de palavras, deixava voejarem os sentidos daquelas no fundo do seu mar fosco, poluído de guimbas, cacos de garrafas e roupas podres de suicidas.
    — “Não jogai pérolas aos porcos… Pérola, câncer, cancro, caranguejo, carcinoma… Ostra, ostracismo, óstraco, banimento, banner, exílio… Dias, aqueles dias…”, era esse o fluxo em que se embriagava, afogando-se.
    Lembrou-se do que ela lhe dissera uma vez, perdidos ambos um do outro, traçando rotas pelas estrelas:
    — Deixe meu espírito no frio, não mexa nele, não o aqueça. Você é covarde ao fogo e não sabe lidar com incêndios.
    Realmente. Ardia em febre. Beber só piorava. Rompia o limite que assegurava a integridade do pensamento e da memória, pois a cachaça tomava-lhes as mãos e conduzia-os dançando e gargalhando cruelmente entre os cardos e mandacarus do sertão do imaginário. Contudo, na febre, delirava, e isso era o seu incêndio e tinha lá os seus açoites. Misturavam-se verdades suas e dela, na recuperação mnêmica dos gritos e dos sussurros. O que teria de fato acontecido? Onde acabavam o feito e o dito e iniciava a percepção?
    Queimava-lhe também o remorso da inércia diante da febre epitelial que dela transcendera ao extrafísico. Ele, terrenal e salgado, era de um elemento diferente, um que virava vidro quando diante da chama, e, vidro que era, deixara-se transver, deformando o que estava além de si e codificando-se na sua própria invisibilidade. As labaredas eram nada mais que um balé ruivo e alucinado sobre seu corpo e espírito, ambos incapazes de arder com ela. Punia-se intimamente, tentando incinerar o que lhe sobrara de razão, a ver se, ao menos, nas cinzas, haveria um pouco da matéria que não tinha podido dar a ela nem com flores, vestidos e babilaques tecnológicos. A rocha de que era feito tinha baixíssimo grau de fragmentação, e viraria aço muito antes de ser magma. Entretanto, como se imolava mesmo sem línguas de fogo, crepitava em estalos, irradiava ondas de lamentações infernais e encandeava distâncias homéricas, tanto que, sem saberem ao certo por quê, afastavam-se amigos e familiares, e incomodavam-se meio enojados desconhecidos de toda sorte, inclusive os semelhantes.
    Comeu o enxofre durante meses. Numa manhã que teimava em não raiar, procurou-se no espelho enquanto escovava os dentes, pois o embaçado dos olhos fizera estes acordarem por último. Porém, o que lá estava era-lhe totalmente estranho, e não da estranheza aterrorizante dos despertados do coma ou dos mutilados por ácido. O que lá estava não era um “quem”, não lhe parecia uma pessoa. Sabia como era uma pessoa, sabia! A estrutura óssea, os músculos, a pele. Por conseguinte, ainda que fosse outro, saberia que seria ainda uma pessoa, um ser, mas não reconhecia nada, não havia semelhança com nada. O que estava à sua frente era um ineditismo, uma palavra sem letras, um símbolo sem remissão. Lavou o rosto com o medo de que, uma vez limpos os olhos, a imagem lhes sumisse. Esfregou-os, e lá estava ainda, entregando-lhe algo que lhe pareceu um sorriso, a imagem. Passou a mão no vidro, retirando com as unhas os perdigotos desidratados e as marcas de pasta de dente, e sentiu o contato frio da matéria que lhe tocava de volta. Sentiu uma vertigem como a que só sentira quando criança, quando o pai acelerava na antecipação do declive, e o corpo parecia, por uma fração de segundos, flutuar para depois ser recebido pelo assento da Belina, a sempre possibilitadora de suas viagens ao sertão. Em seguida, algo lhe ascendeu a espinha, ao que o corpo todo obedeceu como se nunca houvesse sido aquilo o seu costume, e desatou-o do chão de azulejos retangulares azul-celeste do seu banheiro, tomando-lhe a forma para outra, uma forma nova e definitiva, equivalendo-se ao que jamais fora nem pretendia ser naquela vida. De mãos dadas, desincompatibilizaram-se com todo o resto, pessoas e coisas, sentimentos e memória. Olharam em volta e viram tudo se obsoletar sem que tivesse havido uma querela sequer. Ninguém era vencedor ou vencido. Tudo, simplesmente, existira, e tudo aquilo que haviam sido estava posto em uma fotografia sobre o aparador da sala, onde também jaziam uma bonbonnière vazia, uns bichinhos de porcelana e um porta-joias de concha bivalve envernizada, presente que dera a ela havia anos, quando as pérolas eram só imaginadas.

12/11/19

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

A CANÇÃO DE MARIALVA

    Queria tanto saber tocar violão! Nas vezes em que tentara, sentiu que tinha dedos de capim, de pato, de anêmona. Suas amigas ou tocavam ou conheciam um boyzinho que tinha pelo menos um ukulelê, e sempre rolava um sonzinho na calçada, passando de mão em mão junto com os baseados e os vinhos baratos. Tinha esquecido muita coisa que queria com toda a força de uma criança que não tinha nada: dançar como as bailarinas de auditório, saber brigar para matar sem esforço, ter todos os brinquedos do mundo, e, é claro, ir à Disney. Crescera e, como toda criança pobre, entendera cedo que lugar lhe cabia. Conhecera os homens cedo, e à força. Contudo, embora o tempo e a normalidade do estupro entre suas amiguinhas lhe tentassem empurrar a aceitação de que era um objeto, assim como os veadinhos do bairro e até os que não eram, guardaria para sempre outro tipo de desejo, um novo, sem nome e sem alvo, um que sabia que nunca seria satisfeito. Este lhe incomodava amiúde, sobressaltando-lhe as pequenas felicidades e o sono, à moda de uma assombração ou do estouro dos rojões que anunciava a chegada da droga na favela. Associava essa vontade ao violão nem ela mesma sabia por quê. Vinha como uma melancolia inconsolável e breve e se esfumaçava na erva que tragava, queimando-se na bia que sobrara da solidão da calçada na noite anterior. Era sozinha de espírito. Nunca soube do pai, a mãe lhe deixara na avó para fabricar e parir mais solidões, que somavam oito e também desconheciam como e por que existiam. A avó morrera, o avô, antes. Sumiram tios e primos, e todos lhe aplaudiram os primeiros aniversários, e para nada! Nunca os perdoou. Porém, ela o fez à mãe, que aparecia só de vez em quando, sempre mais feia, mais murcha, mais usada, querendo saber como estavam ela e Elisabete — a única que se mantivera na casa após a diáspora dos irmãos sobreviventes —, desculpa que introduzia uma busca dissimulada em cuidados por coisas que pudessem ser convertidas em pedras de crack. De alguma forma, não a culpava. Acreditava de coração que ela saíra de casa para proteger as filhas restantes, já que o último a lhe ocupar o colchão e o corpo também queria as carnes mais novas balançando nas redes na sala-cozinha. Intuía que a diferença crucial entre si e sua mãe — a que protegera uma e desgraçara a outra — consistia na sua timidez absurda de concha, que contrastava com a profusão incinerante de D. Marleide, ainda presente apesar da ruína física e da mental, que já se insinuava.
    Se pelo menos soubesse uma música… Só uma! Quem sabe não se lhe soltasse a voz, que sempre escondia em bodejos baixinhos quando queria dizer algo importante… Elisabete, bem mais desenvolta, cobrava dela mais atitude. Ambas careciam de estudo, mas cozinhavam bem, e era o que lhes garantia o sustento: uma banquinha de porta, com pratinhos, bolos, salgadinhos e espetinhos, que alimentavam os passantes entre suas perdições. Incrementavam com cachaça e cerveja em latinhas, lenitivos de passagem que lhes pagavam água, gás e luz, já que o muquifo onde viviam era próprio.
    — Tu vai fazer o quê pra dar rumo à tua vida, Marialva?
    — Que é?
    — Amofinada desse jeito, ninguém te quer.
    — Cuide do seu priquito, que eu cuido do meu.
    — Deixa de ser grossa, porra! Vem cá, deixa eu te contar um negócio.
    E falava dos meninos amigos dos peguetes e dos PA que colecionava. Ambas eram bonitas, mas Elisabete, um ano mais velha, prerrogativa da qual sempre usava contra a irmã, tinha razão: Marialva se escondia a ponto de ser irrelevante mesmo entre os amigos. No entanto, Marialva só se incomodava com o excesso de expectativas. Deixassem-na em paz! Iria viver sua vida entre pessoas ou entre pulgas, contanto que pudesse manter seu único luxo, um aparelho celular usado, mas com 32 gigabytes de músicas, estendível por um memory card com o dobro da capacidade, e seus preciosos fones wireless, que mantinha escondidos da irmã. Ouvia Elisabete, fingindo-lhe atenção. Era bem intencionada, bem o sabia, mas lhe adivinhava um desmundo como o da mãe, sempre propensa a ser pingente de piroca. Seus sentidos só se atiçaram quando mencionou Flavinha, companheira de mágoas e de baseados.
    — Esse aí até a Flávia pegava, má!
    — Pegava era porra. A Flávia é direita.
    — Direita, sei. Dorme na caixa, isso sim.
    — E daí, que ela não gosta de homem? Que é que tem?
    — Tem nada não, mas daí tu dizer que ela é direita…
    — Rapaz, ninguém tem nada pra dizer dela. Trabalha, cria a filha sozinha, paga as contas.
    — Sim, e o tempo no Auri Moura Costa?
    — Já pagou pelo que fez, Bete. Te manca. A pessoa não pode mudar não?
    — Pode, mas também pode não. Ela só consegue trabalho noutro bairro, que o povo daqui não confia deixar ela fazer faxina nem no quintal. Dona Lisete que sabe! Vivia sumindo coisa quando ela limpava lá.
    — Mulher, aquilo tu sabe que era o Marquim que vendia pra dar pro Boca. A Lisete era era cega.
    Ficavam nisso, e nisso também ficava a sua revolta. Era fraca de verbalizar o universo de frases que acumulava das canções, assim como as suas próprias. Uma noite, já quase na hora de guardarem a banquinha, ajuntou-se o bando de sempre: todos com idades aproximadas, a maioria escondendo na EJA a humilhação do desemprego, e o restante vivendo de bicos. Entre estes, Flavinha, cheirando a sabonete depois do serviço e de botar a Maíra para dormir, abastecida do mingau grosso. Como de praxe, alguém sacou dum violão preto um Raul, depois a Legião e o Cazuza, e ficaram nessa, rodando um e outro beck e praguejando a vida em nome de Jah. Flavinha tinha uma voz tão bonita! Soubera por ela da Nazirê, da qual virou fã.
    — “Ê, acorda pra vida, mais um dia que acaba, alguma coisa aí dentro ainda não terminou…”, encoravam.
    Seu peito esquentava. Aquele desejo primitivo insurgia, mas o olhar louro da Flavinha logo afastava qualquer angústia de fatalidades. Isso e as tragadas no baseado imundo iam limpando a morte que lhe rondava a vida. Sentia acendendo uma palavra, que crepitou na outra, e deu-se uma fogueirinha branda cantarolante sem a necessidade da cortina do coro para se esconder.
    — “Cada dia que se passa, mais difícil vai ficando, todo dia um leão você tem que derrubar…”
    Alguém tinha dinheiro, e Bete botou na roda a cachaça que sobrara, o que amansou qualquer possibilidade de insurreição. Eram todos gente boa, evitaram a vida inteira meter-se com as gangues e cair na prostituição, e ali só rolava mesmo maconha. Uniam-se por esgueirarem-se entre os abismos da miséria e pela música, distintivo tribal de bom gosto, espécie de autoelitização conferida para existirem naquele excremento de cidade. Flavinha, ali do lado, comentava baixinho tudo que Marialva queria ouvir: como a banda empoderava as mulheres, como os homens eram sórdidos, ainda que fossem pais, irmãos, amigos, e como sua pele era lisinha, sua morenice era atraente… Algumas doses lubrificaram as bocas, que começaram a fumar umas as outras. Bete já havia guardado a banquinha em casa e lá dentro mesmo ficara com Valdir numa gemedeira baixinha e gostosa, e os restantes tocavam “Vamos fugir”. Foi o que Marialva e Flavinha fizeram, com meia garrafa de Pingo de Ouro e dois baseados na cabeça. Apesar de ser acostumada, Marialva perdia feio para Flavinha, que mantinha um andar de quem vinha do culto.
    — Encosta aqui, Alvinha…
    Amassaram-se, dedilharam-se como se fossem duas cuícas, e Marialva nem ligava mais se a viam ou ouviam, e gemia alto a voz que nem sabia que tinha, aqui e ali reprimida por Flavinha, que temia o que a polícia faria se as pegassem. Sabia de cor o ensinamento do cassetete em seus orifícios e já tinha engolido à força o esperma de todos os patrulheiros do Ronda e do Raio daquela quebrada o suficiente para ser cautelosa. Alvinha, mesmo assim, voava e estrebuchava, ela mesma, uma guitarra sendo solada pelos dedos e entre as coxas de Flavinha, que lhe chupava os gritos e os seios. Findas e aterrissadas, desceu uma a outra do parapeito baixo da casa da esquina e seguiram seus rumos, ignoradas pelo silêncio do violão que também virara sexo pelos cantos.
    Na manhã seguinte, a cabeça descolocada de Marialva sacudiu com a irmã socando os cadarços da rede, perguntando pelo seu celular. Demorou um pouco a sair da afasia, mas súbito apavorou-se num grito.
    — Tava junto do meu!
    Durante a bebedeira, todos tinham entrado na casa, fosse para mijar ou foder. Bete começou a socar tudo que não pudesse quebrar acidentalmente e só parou quando a parede arrancou-lhe umas lascas de unha. Marialva, zonza, grasnou que seus fones também sumiram.
    — Porra de fone! Merda de fone! Vivia me negando, e olha aí! Caralho! Caralhooooooooooo!!!
    Quem passava em frente achou que fosse fim de relacionamento, tamanho era o ódio verbal de uma e o bestialismo gritante da outra. Marialva parecia um suíno que fora amarrado para o abate. “Minhas músicas, meu fone!” era o que tentava vocalizar, mas o surto animalesco não articulava. Bete já apenas chorava entredentes o nome da Flávia, já a irmã desesperava como da primeira vez, como no primeiro estupro de um dos pais de um de seus irmãos mais novos, que morrera com o pescoço quebrado na mão da polícia. Lembrou-se do peso e do suor, do esmagamento e da asfixia, lembrou-se de não poder gritar e, justo por isso, gritava o que nunca pudera. Sentiu-se de novo uma coisa, um objeto roubado, ela mesma, e não os aparelhos. Bete já parara e apenas observava firme o desespero gutural da irmã. Pela primeira vez, sentiu-lhe o que sentia pela mãe, sempre escandalosa, sempre constrangedora.
    — Aprendeu, sapatão dos inferno? Aprendeu?
    Flávia dera um tempo do bairro. Soube-se que tinha sido pega pela patroa fazendo um boquete no marido, e a boca miúda cresceu o fato até as raias do crime passional, umas, e da fuga com o traidor, outras. Por meses, não se soube dela nem da filha, até darem notícia de que virara evangélica e vivia com um dono de bodega e a filha em Caucaia, onde ninguém que as conhecia morava, e só souberam disso acidentalmente, pois o próprio Marquinhos, indo fazer um avião de coca para o Boca pelas bandas de lá, foi atendido por ela no balcão da Mercearia El Shadai, cabelo longo e preto, olhar zangado, voz dura. Quase não a reconhecera. Quando perguntou como estava, recebeu um versículo de resposta e um “passar bem”. Marquinhos juraria a todos que ela estava muito bem, que nem parecia mais aquela ladrona das coisas de sua mãe e que, de fato, Deus agia certo por linhas tortas.

04/11/19

sábado, 2 de novembro de 2019

DO LADO DE DENTRO DAS PALAVRAS


do lado de dentro das palavras
ocorre um conselho secreto de sentidos
às vezes, guerra, e lacunas se abrem com as trincheiras
sentidos morrem para sempre
ou até a ressurreição semântica

às vezes, os sentidos se entendem, e reina a paz
aconteceu com a palavra “peremptória”
palavrinha chata do caralho
— não duraria três segundos descalça na roça ou na favela
onde seria comida de porradas, esquartejada a foice
e martelada à gosma viva nos lajedos e nas lajes —
imóvel, inerte como um cadáver embalado a vácuo
utilizável apenas em aulas de anatomia vocabular
e nos estupros vernaculares dos tribunais de justiça

às vezes, os sentidos se embiocam em orgias
e estendem suas genitálias trespassadas de metáforas e sinestesias
até sangrar rios de esperma e traços
numa semiose putificada e profusa
como um ovo eclodido de aranhas

de toda forma, às palavras, intimamente
gozam a fruição de si mesmas
velas breves ou círios eternos
prenhas de tudo o que não somos:
mistérios ajuntados nos discursos
fragor luminoso no obscurantismo dos textos
e de nossas vozes
deslugares de fala que nunca se ocupam
e que tudo têm a dizer

02/11/19