— E quem te disse que eu queria?
— Não quer?
— Não é da sua conta.
— Claro que é da minha conta. Quem vai ou não te dar sou eu. Aliás, essa marra toda não tá te ajudando em nada. Gente assim acaba tendo o que não espera.
— Você não me conhece pra nada. Não preciso de ti! E vá baixando essa bolinha murcha de juiz, certo? Marra é cabeça de bode e mãozada na cara.
— Já engrossou… Como é que, só pra efeito de lógica, você vai me dar essa mãozada?
— Tem uma infinidade de maneiras de te quebrar a cara e a pose. Só você, debaixo desse manto sagrado, acredita que é inatingível. Você é a criatura mais cheia de expectativa que existe! Quando não é do seu jeito, lá vêm fogo e enxofre, sete anos disso, sete daquilo, dilúvio e o caralho a quatro. Quem sabe é a Lilith…
— Ah, agora vai citar os renegados… Essa é a tua violência?
— Não.
— Não vai vomitar as tuas blasfêmias agora mais não?
— Não.
— Sei. Monossílabos. Acabar, o misterioso sou eu.
— Não tem mistério, Vossa Onisciência. E, se tem, que diabo é que tu tá fazendo conversando comigo? Quer respostas?
— Sei todas, criatura.
— Então me responde. Por que não é da tua conta?
— Orgulho.
— Mas é muito arrogante mesmo… Cheguei até aqui me despedaçando, arrastando minha miséria por décadas, mendigando existência, evitando contrariar o que o padre me disse quando eu tinha sete anos, sete anos! Que pecado um cristão consegue ver numa criança de sete anos pra dizer a ela que a vida dela é de outro? E não fazer nada além da ameaça? Não é orgulho! Nunca foi isso, que isso eu nunca tive! Nem agora! É independência! Independência, entendeu? Esta vida aqui, esta merda de vida, é minha! Se sou mais desgraçado que ela, é porque a graça não me importa! A graça foi pra todos os outros que me desgraçaram, inclusive pra ti. Pois não me interessa mais a tua graça, não quero mais, porque querer foi o que mais me desgraçou. Lembra aquele teu silêncio quando eu era roído pelos ratos e disputava comida com eles? Aquele teu silêncio era tão alto, mais, muito mais alto que o meu choro e os meus gritos. Quando apanhei, quando calei todas as injustiças, onde é que tu estava? Me dando graças? Ou era eu que devia me ajoelhar na merda enquanto apanhava e era mijado pelos outros e te dar graças?
— Entendi a referência. Você quer fazer o que acha que meu filho deveria ter feito.
— Pobre homem! Coitado! Fez tudo, tudo! Morreu pela gente uma porra! Morreu por ti! Porque foi tua ordem!
— Sei que isso é muito pra tua capacidade de imaginação, mas já se esqueceu de que eu sou três?
— Olha, essa história pode ter colado pra Maria. Nem teus padres acreditam nisso. Zeus, pelo menos, era honesto. Descia, estuprava e ia embora, como todo bom canalha, e não negava! Mas dava sempre uma ajudinha aos filhos. Já tu…
— Hum. Agora, vamos apelar pra poesia…
— Que é que tu entende de poesia?
— Olha, você já está ficando irracional. Antes que perca a capacidade de articular as ideias, me responda: quer ou não?
— Não se preocupe, que eu tô mais lúcido que Lúcifer. N Ã O T E I N T E R E S S A.
— Ok, depois não acrescente mais este à sua lista de arrependimentos. Estou aqui pra te ajudar. Depois daqui, pela minha lei, não pode mais contar comigo. Pra onde vai, não tem volta.
— Meu querido, se eu, por uma recaída de falta de amor-próprio, sonhasse com uma redenção vinda de você, uma redenção de um crime que você mesmo inventou chamar de crime, igual a uma dondoquinha rica dando esmola no sinal, fingindo ignorar o seu peso no esmagamento dos pobres, essa sua redençãozinha automasturbatória, essa sua merdinha de redenção pra se manter branquinho e limpinho no seu troninho, calando a boca da oposição a cada dia mais crescente e perigosa, apesar dos esforços do Francisco, se eu fosse contar com essa sua redenção, eu seria mais besta que a pobre da Madalena, acreditando naquele teatro das pedras.
— Olha o respeito com a minha mulher!
— Arrá, olha aí! Olha aí, rá, rá, rá rarrarrarrarrá!!! Vai pro céu, patriarca de merda, vai pro teu mundinho de reizinho! Aqui, não! Aqui, só tem liberdade! Vai fazer o quê, me matar de novo? Hein? E vai fazer isso como? Minha alma é minha, porra! Minha! Besta foi quem caiu na tua e tá aí azedando na espera do teu juízo. Quem me julgou fui eu, e eu me libertei!
— Pois bem, seu herege. Agora, nem que tu quisesse. É feita a minha justiça! Vai-te!
Caiu rindo, caiu sabendo que toda queda é um voo, e todo voo é a administração de uma queda. Sentiu o calor pela primeira vez e ardeu, mas não como o prometido. Ardeu gostoso, ardeu aceso como uma lamparina sertaneja numa noite fria de bacuraus, mochos e caborés piando nos juás e nas barrigudas. Sabia que não haveria mais vento que lhe apagasse a chama, nem de boca, nem de céu, nem de mar. Naquela infinitude de si e de mais ninguém, lembrou-se de quando dormia no papelão molhado sob a marquise dos fumadores de crack, lembrou-se do frio que a fome fazia sentir mesmo sob o sol cearense. Olhou em volta e sorriu, manso, inteiro, concluso. O que nunca fez em vida deu-lhe a morte: dormiu em paz pela primeira vez.
17/11/19
— Não quer?
— Não é da sua conta.
— Claro que é da minha conta. Quem vai ou não te dar sou eu. Aliás, essa marra toda não tá te ajudando em nada. Gente assim acaba tendo o que não espera.
— Você não me conhece pra nada. Não preciso de ti! E vá baixando essa bolinha murcha de juiz, certo? Marra é cabeça de bode e mãozada na cara.
— Já engrossou… Como é que, só pra efeito de lógica, você vai me dar essa mãozada?
— Tem uma infinidade de maneiras de te quebrar a cara e a pose. Só você, debaixo desse manto sagrado, acredita que é inatingível. Você é a criatura mais cheia de expectativa que existe! Quando não é do seu jeito, lá vêm fogo e enxofre, sete anos disso, sete daquilo, dilúvio e o caralho a quatro. Quem sabe é a Lilith…
— Ah, agora vai citar os renegados… Essa é a tua violência?
— Não.
— Não vai vomitar as tuas blasfêmias agora mais não?
— Não.
— Sei. Monossílabos. Acabar, o misterioso sou eu.
— Não tem mistério, Vossa Onisciência. E, se tem, que diabo é que tu tá fazendo conversando comigo? Quer respostas?
— Sei todas, criatura.
— Então me responde. Por que não é da tua conta?
— Orgulho.
— Mas é muito arrogante mesmo… Cheguei até aqui me despedaçando, arrastando minha miséria por décadas, mendigando existência, evitando contrariar o que o padre me disse quando eu tinha sete anos, sete anos! Que pecado um cristão consegue ver numa criança de sete anos pra dizer a ela que a vida dela é de outro? E não fazer nada além da ameaça? Não é orgulho! Nunca foi isso, que isso eu nunca tive! Nem agora! É independência! Independência, entendeu? Esta vida aqui, esta merda de vida, é minha! Se sou mais desgraçado que ela, é porque a graça não me importa! A graça foi pra todos os outros que me desgraçaram, inclusive pra ti. Pois não me interessa mais a tua graça, não quero mais, porque querer foi o que mais me desgraçou. Lembra aquele teu silêncio quando eu era roído pelos ratos e disputava comida com eles? Aquele teu silêncio era tão alto, mais, muito mais alto que o meu choro e os meus gritos. Quando apanhei, quando calei todas as injustiças, onde é que tu estava? Me dando graças? Ou era eu que devia me ajoelhar na merda enquanto apanhava e era mijado pelos outros e te dar graças?
— Entendi a referência. Você quer fazer o que acha que meu filho deveria ter feito.
— Pobre homem! Coitado! Fez tudo, tudo! Morreu pela gente uma porra! Morreu por ti! Porque foi tua ordem!
— Sei que isso é muito pra tua capacidade de imaginação, mas já se esqueceu de que eu sou três?
— Olha, essa história pode ter colado pra Maria. Nem teus padres acreditam nisso. Zeus, pelo menos, era honesto. Descia, estuprava e ia embora, como todo bom canalha, e não negava! Mas dava sempre uma ajudinha aos filhos. Já tu…
— Hum. Agora, vamos apelar pra poesia…
— Que é que tu entende de poesia?
— Olha, você já está ficando irracional. Antes que perca a capacidade de articular as ideias, me responda: quer ou não?
— Não se preocupe, que eu tô mais lúcido que Lúcifer. N Ã O T E I N T E R E S S A.
— Ok, depois não acrescente mais este à sua lista de arrependimentos. Estou aqui pra te ajudar. Depois daqui, pela minha lei, não pode mais contar comigo. Pra onde vai, não tem volta.
— Meu querido, se eu, por uma recaída de falta de amor-próprio, sonhasse com uma redenção vinda de você, uma redenção de um crime que você mesmo inventou chamar de crime, igual a uma dondoquinha rica dando esmola no sinal, fingindo ignorar o seu peso no esmagamento dos pobres, essa sua redençãozinha automasturbatória, essa sua merdinha de redenção pra se manter branquinho e limpinho no seu troninho, calando a boca da oposição a cada dia mais crescente e perigosa, apesar dos esforços do Francisco, se eu fosse contar com essa sua redenção, eu seria mais besta que a pobre da Madalena, acreditando naquele teatro das pedras.
— Olha o respeito com a minha mulher!
— Arrá, olha aí! Olha aí, rá, rá, rá rarrarrarrarrá!!! Vai pro céu, patriarca de merda, vai pro teu mundinho de reizinho! Aqui, não! Aqui, só tem liberdade! Vai fazer o quê, me matar de novo? Hein? E vai fazer isso como? Minha alma é minha, porra! Minha! Besta foi quem caiu na tua e tá aí azedando na espera do teu juízo. Quem me julgou fui eu, e eu me libertei!
— Pois bem, seu herege. Agora, nem que tu quisesse. É feita a minha justiça! Vai-te!
Caiu rindo, caiu sabendo que toda queda é um voo, e todo voo é a administração de uma queda. Sentiu o calor pela primeira vez e ardeu, mas não como o prometido. Ardeu gostoso, ardeu aceso como uma lamparina sertaneja numa noite fria de bacuraus, mochos e caborés piando nos juás e nas barrigudas. Sabia que não haveria mais vento que lhe apagasse a chama, nem de boca, nem de céu, nem de mar. Naquela infinitude de si e de mais ninguém, lembrou-se de quando dormia no papelão molhado sob a marquise dos fumadores de crack, lembrou-se do frio que a fome fazia sentir mesmo sob o sol cearense. Olhou em volta e sorriu, manso, inteiro, concluso. O que nunca fez em vida deu-lhe a morte: dormiu em paz pela primeira vez.
17/11/19
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