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segunda-feira, 18 de novembro de 2019

TODAS AS CORES DO UIRAPURU


    Nem ligava mais se a entendiam. “Isso é gente que não chove”, dizia às rolinhas. Todos os dias, fazia pelo menos uma coisa sem sentido algum aos olhos tão acostumados com o pragmatismo da capital, e isso a tornava ridícula em seus farrapos de mendicância, mesmo aos outros desgraçados como ela. Vira e mexe, conversava numa língua pagã com uma árvore ou dedicava uma tarde incinerante a andar curvada pela Praça, catando os lixos minúsculos que os garis haviam ignorado. Talvez, fosse a sua infância iluminada por um sol diferente, a qual lhe ensinou como andar descalça e o tom de voz certo para chamar passarinho. Fortaleza era tão pobre de passarinho, só tinha pardal e bem-te-vi. Enojavam-na os pombos. Ela, que se acostumara a comer avoantes e hamburguesas no sertão de sua avó, sentia um certo ódio quieto daquela ave tão urbana. Achava-a feia como os prédios e os postes, e, pior, sentia-se oprimida de tal forma que se impressionava como se vendo uma visagem quando vinham em revoada, à semelhança de marimbondos enormes. A cidade inteira lhe era como um gigantesco arapuá que não podia queimar como o fazia seu avô, quando ia colher mel nos campos da vazante. Ali era sempre verde, mesmo na estiagem, e o aroma dos cravos-de-defunto, dos jasmins e das flores das mangueiras adoçava a atmosfera como uma grande roupa natural, como uma grande alma, dentro da qual brincava a dela. Já o pombo combinava com o poste, que combinava com o prédio, que combinava com o cinza quase tátil que se respirava no Centro.
    Na Praça do Ferreira, ela era a “doida do assobio”. A galhofa tão típica do fortalezense é, na verdade, a maior violência desta cidade, ensinada desde o berço e aplicada até o pós-túmulo. É como se todos existissem nos dois extremos apenas: os defeitos, laureados pelo coió — patrimônio imaterial —, e as virtudes, sempre associadas ao poder que inviabiliza o coió. Entre os polos, um pêndulo que dança entre a hostilidade e a subserviência. No sertão dela, também tinha disso, mas não era ambiental como aqui. Aqui, na falta da parede do açude, fugia assobiando para as viuvinhas e um ou outro sibite, que ornavam os velhos oitis da Avenida do Imperador.
    Também, com as décadas, fora perdendo a memória, tanto que não se lembrava mais do assassinato do pai pelo avô na ocasião em que aquele fora pego tentando estuprá-la. Não se lembrava mais das foiçadas e dos gritos, mas ainda guardava uma predileção inconsciente pelo vermelho. Também não se lembrava de ter sido expulsa pela mãe, que nunca lhe perdoara os ganidos que lhe roubaram o homem. Tampouco do desgosto do avô, que pegou maniconia e apaixonou-se pela morte, gemendo pela esposa finada no terreiro da cacimba, onde fora encontrado meses depois, mole e podre, os quartos quebrados. Viera de caminhão em caminhão, sempre pagando com a moeda que matara o pai, até dar em Horizonte, donde andou até sangrarem os pés na esperança de ver o mar. Viu. Era grande como lhe contara a avó, que guardara numa garrafa vazia de cachaça um litro de sua água, o seu bem mais precioso, atrepado na prateleira dos santos, ao lado de um Sagrado Coração de Jesus e de um Imaculado Coração de Maria, onde votava seus terços de saudade. Contudo, decepcionou-se com a solidão do mar. Esperava algo parecido com o que sabia de água, que era o Jaguaribe dando no Orós, algo como um encontro, uma comunhão. Sua alma doeu um pouco, pois rezara para aquela água em menina, e esperava uma espécie de Deus sertanejo, turvo, violento e bom, um Deus como seu avô. Em vez disso, encontrou imensidão e sal e não entendia como as pessoas adoravam se salgar naquela água de onde sempre se saía mais sujo do que quando se entrava. Nem entrou. Molhou os pés, que arderam nas lazeiras e nas unhas perdidas. Daquele dia lembrava-se bem. Começaram ali os coiós e as arengas. Nunca pensara que ser matuta era coisa que se usasse como ofensa, e era uma ofensa tão aguda, pungente como aquela ondinha suja que lhe chupava o sangue dos entrededos. Sem saber o que fazer, acentuou a matutice num esconde-não-mostra da cara entre os ombros, e foi-se andando torta pela dor do sal e das tampinhas de garrafa sob os pés. Subiu a rua da igreja, igreja feia demais, parecia um malassombro cinza, pontiagudo. Desde que entrara na cidade por Caucaia, sentiu um acinzentamento de tudo, do céu, do ar, das pessoas, até que, para não ficar também cinza, coloriu o ar à sua volta com os assobios, que era o seu jeito de passar pelos aperreios. Foi escorraçada de casa assobiando, assobiou enquanto os caminhoneiros e freteiros lhe comiam o resto de infância, assobiava para não se perder, pois seguia o som que projetava alma nas coisas que lhe tiravam, família, virtude, vida. Assim foi. Existia dentro das musiquinhas de menina e das imitações de sabiás, graúnas e bigodeiros, de que tanto o pai gostava. De alguma forma, nessa amnésia, sentia-se bem, como se um santo lhe houvesse agraciado com a percepção de um sentido íntimo das coisas passageiras e a dessignificação dos traumas, dos quais pareciam ser compostos todos os outros. Retinha os sorrisos das crianças filhas de outros mendigos como ela, aos quais retornava sempre uma imitação de passarinho, mas não perdia nem um momento considerando a própria miséria ou o olhar ascoso das outas crianças com as suas mães, que só não lhe passavam por cima por nojo, até porque, como não se lembrava como fora dar ali, não era capaz de pensamentos dessa profundidade. Lembrava o sertão iluminado, paraíso para o qual, um dia, voltaria. Lembrava a decepção do mar e o início e o então do cinza urbano, e isso era como o seu diabo. Para o resto, assobiava e se coloria toda, sem lhe atingirem os escárnios e os coiós cotidianos.
    Naquele cenário, no centro do Centro, no centro do início daquele aglomerado de fins, visitavam-na e aos outros mendigos, casualmente, voluntários de igrejas e assistentes sociais. Achava graça neles. Ninguém dizia coisa com coisa. Falavam de higiene e de Deus, como se ela não pudesse lhes ensinar assobiando a anatomia e a Bíblia, a ciência atômica dos corpos e a metafísica absoluta do universo. Contudo, numa manhã em que assobiava para um saco preto de lixo de lanchonete, de onde retirava os restos que lhe calavam momentaneamente os silvos, parou diante dela uma mulher velha, branca, mais ou menos da sua idade, com o olhar silente e duro como o de uma matriarca que manda o filho se calar. Assombrou-se de súbito, mas logo abriu um sorriso podre de volta, pois não viera dela nada de ruim. O olhar da velha dizia muito. Ela o ouviu atentamente. A velha abaixou-se, acocorando-se ao lado dela, sempre lhe dizendo o que ela sabia ser só para ela, pois não havia palavras nesse dito. Desabituara-se das palavras, pois o nome das coisas era música, e ninguém lhe dizia nada de importante. Sentiu que a velha se apequenava à medida que o diálogo prosseguia, esvaziando-se pelo olhar, que a preenchia de sons que nunca ouvira nem saberia imitar. Também lhe pareceu que ela não era mais velha, que ambas não eram mais velhas, que ambas iam suavemente se colorindo — uma, preenchendo o seu branco de laranjas e crisóstomos; outra, atenuando o seu negro em tons lilases e amagentados. Foram, no tecido daquele silêncio, vestindo-se uma da outra, tornando a ser quem foram, sob os umbuzeiros e entre as gravioleiras, ambas bebendo daquela sertania, tão misteriosa aos que as rodeavam — pois nunca enxergaram aqueles espectros luminosos nem ouviram aqueles segredos compartilhados de beira d’água —, mas tão identitária, e íntima, e telúrica, que pareciam ambas mãe e filha, filha e mãe, terra e planta, sertaneja e sertão. Seu coração crescia, e ia se lembrando de todas as coisas. Lembrou-se de outro mar, de outros pais, de outros crimes. Lembrou-se alegremente de quando era inconclusa, feita apenas de pensamentos e imaginações. Lembrou-se ainda mais distante, quando, na mais absurda liberdade, existia inimaginável, etérea e ampla, parte intrínseca de coisas que ainda nem existiam. A velha, já remoçada e multicolorida, confidenciava-lhe o segredo que guardava o que lhe diziam todo aquele tempo os passarinhos, quando ela os imitava declarante de si, mas ignorante deles. Ela compreendeu com a surpresa de quem não sabia como não percebera antes. Ali, ela, também moça, irradiante de tons de opala, iridescera finalmente àquilo tudo que poderia ter sido quando lhe roubaram corpo e alma e resplandeceu em cores impossíveis dentro dos ouvidos do chão, das árvores e das águas. Face a face, ambas se perpetuaram num trinado de uirapuru, bicho lendário que seu avô lhe contara ter visto com as oiças, uma vez só, sorrindo banguela as suas lembranças de São Saruê.

18/11/19

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