Número de sílabas (desde 11/2008)

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terça-feira, 28 de dezembro de 2010

AMANHÃ


abraçar
até não sobrar nada
mas abraço não se dá nem se recebe
abraço é um fenômeno
ele acontece.

28/12/10

GÊNESE

Klimt - O Parto

Antes, não havia quase nada:
um escuro úmido por toda parte
e uma existência resumida ao elementar.
A primeira manhã é um rapto, um tapa e um grito.
Depois, a carne macia, o calor e o leite.
A seguir, o subsequente mundo e as repetições violentas e espasmódicas,
até que, de novo, raptem-nos, estapeiem-nos, e gritemos.
Amar parece ser um nascimento contrário e geminal.
De novo, a existência resumida ao elementar,
que faz, porém, o monstruoso lado de fora parecer minúsculo então
e tudo o que não é úmido como a lágrima em um olho fechado,
errado.
O um, dois.
E a segurança de um ventre compartido.

28/12/10

DE RETALHOS

A vitória do compositor não é o estremecer da orquestra.
É o assoviar esquecido que sobra quando tudo mais se vai.

28/12/10

Pra você, Bequinha.
Comentado em: De retalhos

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

LAGOA


O mar se faz presente como um trovão sem chuva.
O céu se desenha e se desdesenha e se redesenha em nuvens leves e escuras
— mantos de deuses meninos
embalados pelos galos apressados e pelos cães sempre expeditos.
Um trovão eterno, sem descanso.
Um tom mais forte e depois outro ainda mais
cobrindo a lagoa que, plácida,
dormita como uma tia
que recebeu bem as visitas queridas em sua vastidão de casa.
Até as estrelas dormem,
até a lua dorme.
Não fosse o mar
a arengar com os cães e com os galos
com seus resmungos de assuntagem,
o mundo inteiro pareceria dormir essa noite.

02/01/10    5h22min

Esta é uma repostagem deste poema feito há pouco menos de um ano. Ele é fruto de uma noite chuvosa, mas não daquelas chuvas drásticas, punitivas: uma chuva de harmonia, de limpeza, de reencontro. Reencontro é a palavra.
Estes últimos dois dias foram de reencontro com quem e o que eu amo. Por hora, ainda é muito nítido, muito claro (acho que o poema filho destas horas recentes precisa de olhos apertados, porque, agora, ele seria meio assim: "um dia de chuva | um dia de sol | e o que sinto não sei dizer"). Assim, quero (re)registrar um momento comum aos dois períodos, que foram tão diferentes, mas igualmente renovadores.
E quero dizer àqueles e àquela que fizeram destes dois últimos dias algo tão bom que os amo muito mais que saberia dizer.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Magic Carpet

Eu sempre gostei de esculturas cinéticas. Talvez seja pela composição com o vento, talvez pela "independência", talvez por ser um "vivo não-vivo"... O fato é que eu nunca vira uma obra que me capturasse tão imediatamente, tão sutilmente como esta. Ela me remeteu imediatamente à cena da sacola de plástico do Beleza Americana, de Sam Mendes, filme do qual Daniel Wurtzel retirou o respectivo tema musical, The Plastic Bag Theme.
Acessem o sítio dele e deleitem-se.

O FÔLEGO BREVE

Deus que me perdoe,
Mas preciso trancar o vento do lado de fora da casa,
Pois aqui ele tem vítimas frágeis demais.
Meus papéis, meus excertos, minhas imagens…
Não lhes tenho biombos, não sei fazer campânulas.

Vento é feito Deus.
Respiro-o, visto-o, alimento-me d’Ele
Com meu diafragma.
E, em troca, Deus me morde por dentro, na carne de meus pulmões.
Impiedosamente.

Amanhece, e esses dias têm sido tão quentes…
São dias com manhãs de calor sem vento,
Sem pressa e também sem piedade.
Quem se apieda de mim, meu Deus, meu vento, meu calor?
Já me levas pulmões, fôlego, mesmo a música triste com que me envio.
Leva-me também, Deus, alguma consciência,
Para que eu sonhe um pouco mais…
Sabes quão pequenos eles são, tão humildes, tão meninos…
Dá a eles um pouco mais de tempo
Para que cresçam a homens.

Quanto daquela aurora ainda resta
Nas praias da minha infância?
O anzol, o peixe, a onda e a duna
— o que resta deles na minha pele, na minha carne? —,
Esqueci-os?
Mas, esquecer, como?
As chuvas, elas ainda desabam e serenam
No meu telhadinho velho de telhas de barro
Mal-acabadas,
Ainda corro pela casa com panelas para as goteiras!
Esquecer, como, se aquela areia de rio ainda não saiu de meus pés?
Estranho como, nos sonhos, sempre tudo é velho…
Ouço o rádio de pilhas branco,
Ainda há uma laranjeira e um abacateiro no meu quintal…
A casa ainda me aconchega.

Talvez Tu, em Tua sabedoria,
Deixe-los assim: infantes, desprotegidos,
Animaizinhos sem saberem bem o que fazer dos cascos.
Um fôlego breve e puro, um lampejo de inteireza
Em dias tão despedaçados, um Tu que estás
Quando Te tranco do lado de fora de minha casa.
Talvez, meu Deus, sejam as marcas dos Teus dentes
No meus pulmões quando eu Te respiro.

Talvez sejam essas marcas as raízes das minhas árvores,
Talvez seja através das pequenas feridas que me sopres,
Que me ventes, que me vistas, que eu me musique.
Talvez, Deus, Tu sejas menino.
A criança que me olha impertinente
Na folha de papel desenhada de tantos anos atrás,
Quando eu aprendi a adorar os trovões
E a rabiscá-los entre os corredores estreitos dos cadernos de poesia.
Talvez as vítimas nem sejam frágeis, nem sejam vítimas…
Talvez as portas possam dormir abertas essa noite.

08/12/10

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Samarica Parteira

Essa joia da música popular brasileira foi composta em 1973 por Zé Dantas e Luiz Gonzaga.
Ela faz parte da minha memória afetiva desde um tempo que não sei determinar. Ela tem gosto de café com pão de manhã com o rádio ligado na FM Universitária, com minha mãe me contando o belo e o engraçado da vida. Ela tem gosto de viagem ao interior pra visitar minha história, minhas árvores, meus rios, minhas pescarias. Ela tem gosto de gente de verdade, coisa rara nestes dias...
Eu me lembro, por exemplo, da passagem "Pois é assim merm' minha fi'a, vosmecê casou com o vein' pensando que ela num era de nada? Agora cumpra seu dever, minha fi'a. Desde que o mundo é mundo que a muié tem que passar por esse pedacinh'. Ai, que saudade!" e de minha mãe morrendo de rir, e eu, ali, aprendendo o valor de uma história bem contada, de um rádio ligado, de gente reunida em torno de um legítimo representante de sua história... Este é Luiz Gonzaga, o maior representante musical de um povo que está passo a passo descaracterizando-se, perdendo-se, macaqueando-se em cópias de cópias de cópias de falsas identidades culturais. Ele empresta todo o seu talento de legítimo contador de legítimas histórias do interior do nordeste do Brasil a esta maravilha que tem tantos sabores, que faz parte da cozinha de minha casa, do cheiro do café, do som da risada de minha mãe.
Gonzagão tinha e tem esta função tão fundamental: reunir gente pra fazê-la vivenciar-se.
É pra se ouvir assim.
Aproveitem.