Número de sílabas (desde 11/2008)

counter

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

EPIFANIA

Foto: Fernando de Souza
 
houve ali um momento
em que, inteira, a tarde desistiu de anoitecer:
suspensas, as flores e o canto dos pássaros;
mole, o vento;
no céu, o vermelho incipiente do Sol
guardou definitivo a própria forma luminosa
no calor sem corpo da promessa,
e dava para ver
na forma das nuvens
um gotejar ascendente de almas.

durou pouquíssimo,
uns dois segundos,
somente o tempo de um talvez:
revelou-se e desexistiu.
após,
voltaram os pássaros, os automóveis,
e a gosma auditiva da cidade
lubrificou novamente as engrenagens do tempo.

porém, naquele instante tão íntimo
(uma molécula das quatro horas de um novembro
fremindo estática na matéria,
pulsando imóvel nos momentos todos
que faltam vir),
desespero e maravilha
dançaram nus sob a pele da tarde em meu quintal,
e me pareceu alcançar de súbito,
como se houvesse sempre estado ali,
toda a idade entre mim
e aquele instante.

03-04/11/21

terça-feira, 5 de outubro de 2021

ALGUM LUGAR



em algum lugar, alguém está passando um café
por amor, simplesmente.
alguém dorme dentro de alguém
que escolheu ser cama.
em algum lugar, um sino dobra
apesar de não se entenderem mais os sinos.
em algum lugar não muito longe,
um broto novo atende ao Sol,
gretando na calçada imunda
a esperança diária.

sempre há um lugar
para as pequenas inutilidades,
essas que, à luz da Cartografia,
nunca existem nos mapas,
em que pese o fato de os mapas
não serem em nada úteis
a lugar nenhum.

há sempre um lugar que é como o nariz,
o qual do dono o cérebro ignora.
porém, respira, respira…

normalmente, consiste num quintal
ou num chão de sala
onde a casa não tem mais dono,
onde a casa é de todo mundo
— é em casa que não é de ninguém
que habita o imprescindível.

em algum lugar, que eu sei,
jazem maneiras velhas sob a sombra de um juá
o ressono do que já, e nunca mais, é novamente.
em algum lugar,
o novo se recria,
e o que resta ser
começa.

05/10/21

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

ÁGUAS


(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

(lá fora,
uma melodia aquosa e desgarrada
prenuncia as águas.)

— mas é setembro ainda.

— o quase, em meu coração,
é destamanhado.

16/09/21

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

DO TEMPO E DO TRAÇO

Foto: Fernando de Souza
(Clique na foto para ampliá-la.)

o tempo é juntura
com que tudo faço:
do rasgo, um laço
de fina costura,
que, só no momento
em que a faca fura,
cura o ferimento
com seu próprio aço.

novelo de tempo
com que me enlaço:
me cubro o cansaço
e me reinvento
— meu novo modelo
de renascimento
é estar sempre em sê-lo
da cruz ao regaço.

compões o cimento
do chão dos meus passos
— do meu erro crasso
tu és pavimento.
também és mansões
e compartimentos:
silêncio e canções
do fim donde nasço.

25/08/21

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

CURTINHOS

 
(Clique na imagem para ampliá-la.)

I
minha cama é uma jangada
de vela arriada,
por quatro âncoras,
ancorada
no fundo noturno do mar.

II
aqui era bom
quando ainda não era aqui.

III
embaixo dos carros,
gatos mortos e cães e pombos
evaporam.
tão certos são de chegar ao céu
como a água que se despede da lama.

IV
quando tinha dez a doze anos,
não imaginava
que me faria tanta falta.

04/08/21

ENTRE OUTRAS COISAS

(Clique na imagem para ampliá-la.)

desde menino, sei de coisas
que só as coisas sabem, por exemplo:
nadejar e tudejar
no terreiro amplo do espaço das tardes
como as terras, os ventos
e a indiferença das plantas;
andar a esmo nas importâncias
sem me dar delas;
caber no vazio
quando me apercebo dele;
e inexistir
na via expressa dos afazeres humanos.

04/08/21

DE CORPO E ALMA

 (Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

embora a alma dependa intimamente
do que não é alma,
o corpo, essa não-alma, depende
inteiramente
da ausência da alma noutro corpo,
do vazio que por ele será preenchido,
do desejo ardente de si mesmo,
de que é tão ausente.

04/08/21

domingo, 1 de agosto de 2021

AGOSTO

(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

por aí, no meio do mundo,
ainda há jogos e lutas rebarbando as pessoas.
nos bares e botecos, meus amigos pelejam contra a morte,
uns com os outros.
todos resistem, todos soterram os silêncios
sob camadas e camadas de palavras encharcadas.

a lama das palavras é fértil.
dela, nascem sonhos de dias melhores
e decapitações públicas.
no topo, no cogulo dos sonhos, um pomo imundo,
vermelho e vagabundo,
serve aos morcegos e periquitos
o sumo vivo da terra molhada,
a carne-e-sangue da comunhão da miséria
com o ódio
de se ver na noite, esparramado e invisível,
de se feder no ar, irrespirável:
a imperceptível hemácia
do sangue da revolução.

triste corpo, pobre corpo, que sangra em silêncio
há tanto tempo,
alimentando vermes e vampiros.

resta o sol, esse dia colonial,
essa alvorada em trombetas que anuncia mais uma marcha,
mais uma jornada de trabalho,
mais um milagre
que nos ressuscita e iguala a todos num mesmo corpo,
numa só máquina
— em que somos tudo, menos gente.

01/08/21

sábado, 3 de julho de 2021

JARDINS SUSPENSOS

Jasmim-do-caribe
 
do terraço de um edifício alheio,
vejo na sacada de outro
um jasmim-do-caribe não fazer diferença nenhuma
no massacre e no genocídio que correm no asfalto.

o branco-leite das flores
diz no azul celeste que existe uma Grécia,
e o açúcar no cheiro
sabe a adolesceres e deflorações suspirosas.

contudo, a terra roubada no miolo do vaso
levou consigo o sangue de milhares,
negros como a terra,
podres como o estrume,
férteis como o adubo,
os quais, sem nada de branco,
seivam os caules finos,
delicados, da vida suspensa
que ignora a existência da morte.

colhidos,
adornam os arcos rosa das orelhinhas
da filha mais nova,
linda como a irrealidade,
calçadinha de chinelinhas azuis,
imaculadas da sujeira do mundo,
e chafurdando na pureza floral da antessala.

no prédio ao lado,
no mármore antigo,
habitam todas as gerações
que, dado o ininterrupto polimento,
formam enormes salões de espelhos suaves,
multicoloridos de flores sem chão,
espalhadas na perpetuação das tardes coloniais.

23/06/21

ONDAS CURTAS

Rádio Philco Transistone

nós perdemos a briga,
coração.
mas,
como somos surdos
e simples,
continuamos
um no outro
batendo
num telecatch circense
transmitido pelo rádio.

08/06/21

domingo, 18 de abril de 2021

SETE ANOS DE SOLIDÃO

 
(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

    Sempre ensino aos meus alunos que se deve adaptar o princípio da alteridade ao texto. Imaginar o leitor é fundamental para estabelecer as premissas básicas do “diálogo”, e uma delas é a adaptação do que se tem a dizer nos planos da forma e do sentido àquele em cujas mãos o texto cairá. Contudo, não paro por aí. Intimamente, eu projeto a minha própria leitura ao momento do inédito da obra, ou até antes, quando ela não seria sequer possível. Recomendo essa experiência. Garanto que, no mínimo, ela é capaz de tornar filmes, livros, músicas que são absolutamente ordinários um entretenimento prazeroso. Com filmes, por exemplo, isso funciona, que é uma beleza! Vi Godzila vs. Kong e assumo que passei os primeiros minutos imaginando se não tinha nada melhor a fazer da minha vida, mas bastou me projetar no tempo até os primórdios do CGI e me vestir com os meus olhinhos de menino, que aquela lenga-lenga barulhenta se tornou um espetáculo sensorial, como um grandioso número circense. É verdade, aqui e ali, o adulto emergia e estragava a experiência, mas há que se dar um desconto: é um filme de dois babaus brincando de telequete. Quem não se diverte com isso cresceu demais, ao meu ver.
    No entanto, em alguns casos, esse ineditismo acontece de não precisar ser inventado, e, para minha sorte, foi isso que se deu com a obra de García Márquez. Ontem, fez sete anos que o colombiano de Aracataca, cidade que ele transformaria em continente, morreu. O primeiro livro que me veio às mãos foi logo o vencedor do Nobel de Literatura de 1982, Cem anos de solidão. Um dos livros mais traduzidos do mundo, ele teve a peculiaridade de ser um premiado bastante popular, o que fez a crítica questionar o seu valor literário posteriormente. Afinal, se o povão gostou, não pode ser tão bom assim, na cabeça erudita e ensebada da “elite” intelectual.
    O arrebatamento de que esse livro me vitimou foi desproporcional à minha própria capacidade de ser arrebatado, o que me causou a sensação de, muitas vezes, lutar por um ponto de equilíbrio numa ascensão espiralada, como se um rodamoinho me tragasse e me cuspisse, sem se importar onde ficavam o céu e o chão. Hoje, passados bem mais de vinte anos dessa primeira leitura — à qual se sucedeu bem uma dezena de outras — ainda não me arrisco a dizer que domei a voragem. Porém, entendi plenamente que era esse o objetivo de Gabo. A América Latina alegorizada em um pueblo chamado Macondo e o realismo mágico usado como caminho para a compreensão do homem imerso em sua história são, na minha opinião, os dois causadores principais dessa abdução do leitor de qualquer época, e é isso que ombreia García Márquez com Jorge Amado, com Saramago, com Cervantes, com Melville, com Homero. Os leitores desses homens sempre vão ser arrebatados e sempre se sentirão arremessados por furacões, sem o lastro do tempo e sequestrados por ciganos mágicos.
    Depois disso, li outras obras dele, poucas, reconheço, mas suficientes para me fazerem despertar em outras vidas, em outros lugares, tão meus como esta que vivo e este em que estou. Acredito que um grande escritor tem muito mais dos outros do que de si mesmo, é muito mais pessoas do que uma só. É capaz de prever vidas que nunca viveu e encantá-las, fazê-las reféns de si mesmo até que elas o sejam e, dessa forma, tornar-se imaterial, essencial, ubíquo em qualquer um que não padeça de insensibilidades.
    De verdade, isso me transformou. Escritores como Gabriel García Márquez, Clarice Lispector e os outros de que falei deixaram de ser pessoas simplesmente. São como uma música que vira intuição e sai num assobio sem que se pense mais nela, organicamente, misturada nos hábitos diários. Todos me habitam, todos sou eu um pouco: sou o patriarca gigantesco José Arcadio amarrado louco no tronco do castanheiro, sou a matriarca Úrsula aceitando estar morta porque assim lhe disseram por molecagem, sou o espectral Melquíades predizendo juízos finais. Sem eles, quem eu seria? O que teria sido feito da criança a quem o tempo roubou os brinquedos, mas manteve cruelmente os olhos?

18/04/21

quinta-feira, 15 de abril de 2021

QUANDO UM CABA VIRA MANO, MORRE MAIS QUE UM CALANGO

 
A cidade piauiense de Lagoa do Barro recebe pela primeira vez transmissão de TV, e seriado Chaves é pioneiro (05/12/1993).
(Clique na imagem para ampliá-la e na fonte, para acessar a página de origem.)

    Quando é que uma palavra deixa de ser palavra e vira “regionalismo”? Veja bem, isto não é nada contra as variantes. Muitíssimo pelo contrário, eu defendo a legitimação desses territórios culturais que as palavras demarcam. Minha inquietação vem justamente da marginalização que os termos regionais sofrem até mesmo nos dicionários, quando estes assim os setorizam, enclausurando, consequentemente, o seu escopo. Sempre me pareceu incômoda a categoria “folclore” na cultura, por exemplo, começando pela inglesada etimológica: folk (povo) lore (instrução). Então Zeus engolir Métis (grávida dele mesmo) e ele próprio parir Atena (que já nasceu armadurada) pelo quengo (que foi aberto a machadadas pelo seu irmão Hefesto, depois de uma grande dor de cabeça daquele lá) é mitologia, mas deixar uma peinha de fumo para agradar a Comadre Fulozinha antes de entrar na mata para caçar é folclore? Mas, menino! Pois vem daí o meu ranço. Quando alguém usa “regional” ou folclórico” para descrever algo, pode reparar na via de mão dupla dessa valoração: de um lado, despertam-se o orgulho bairrista, a memória afetiva, a herança, o telurismo; de outro, é como um prêmio de consolação, um Grammy Latino, um Oscar de melhor filme estrangeiro. É dizer que lacraia é melhor que embuá, ou pior, que o certo é caracol, e aruá é “só” um regionalismo.
    A pior parte disso vem agora, nestes tempos em que “profissões” como coach, influencer ou youtuber afetam diretamente os falares identitários, a cultura que o discurso de um povo reflete. Mais uma vez, é preciso esclarecer: eu não sou contra aquilo que soma; sou contra, radicalmente, aquilo que substitui, sou contra aquilo que subtrai. É mais ou menos como um gênero musical novo. Há alguns poucos anos, o k-pop ultrapassou as barreiras geográficas e idiomáticas e ganhou o mundo, especialmente, o Brazil, que adora bajular uma novidade, principalmente, as estrangeiras. À época, eu vi um documentário sobre essa música pop sul-coreana e entendi a importância que ela tem naquele país, onde foi o veículo de uma renovação de costumes, um sopro de liberdade num cenário dominado pelo tradicionalismo e pela sem-gracice. Uma vez aqui, a meninada adorou, como adorou o Menudo nos anos 80, ou como, nos 60, o yeah, yeah, yeah! virou iê-iê-iê e apavorou os que veem diabo até na cruz. Até aí, tudo bem, porque é sempre bom ter uma coisa a mais como expressão de arte ou de entretenimento. O problema é que a mídia, que é um dos setores que mais destroem a cultura — principalmente, pelo esgotamento — suprimiu de certa forma boa parte do espaço destinado aos gêneros nacionais, o que deu aos kapopeiros a sensação de onipresença do BTS e das Blackpink, retirando deles outras possibilidades de expressão — muito mais legítimas — de seu comportamento. Ser jovem é foda. Superficialidade e profundidade são extremos em constante batalha pelos coraçõezinhos adolescentes, e isso é natural. Mas vamos pelo menos lutar em português, não é?
    Pois bem. Semelhante ao que acontece na música, a linguagem vem perdendo espaço (há muito tempo, eu sei) e, consequentemente, prestígio para modismos internos oriundos das capitais e de seu pseudocosmopolitismo, visto que, no Brazil (com z, mesmo!), isso significa arreganhar as pernas primeiro ao Sul-Maravilha e, depois, à gringalhada. Como consequência, a criançada de 5 a 45 anos daqui do Ceará, por exemplo, passou a usar “mano” em vez de “macho” ou “má”, e o “cê é louco, meu” vem minando o “aí dento”, que resiste bravamente, apesar de tudo. Até o tema melódico dos sotaques vem sendo alterado. Lembro que, há muitos anos, um radialista aqui de Fortaleza anunciou um evento no então Mucuripe Club, que reabrirá com o nome Mucuripe Music (pois é!), alterando a prosódia da palavra para “Múcuripe”, talvez para combinar com o “clâb”, que ele pronunciou britanicamente, como convém a qualquer locutor que se preze. Sem gringuismo, não há respaldo, não é? Pois então!
    Além disso, eu percebo que a “neutralização” (para não dizer descarte) do sotaque cearense aumenta proporcionalmente à classe social e à conta bancária do fortalezense. Parece que existem vários esqueletos no armário que cada aspirante a “aristocrata” — ou, de fato, membro de alguma oligarquia — tenta desesperadamente esconder em cada s sibilado antes de t e d, em cada escolha vocabular artificial ou estrangeira, em cada amnésia idiomática afetada diante do constrangimento da palavra inconvenientemente ouvida (“o que é quenga?”). Eles forçam por se perder, por se desconectar. Sei que não se deve nunca ter pena de quem tem dinheiro, mas é digna de piedade a pessoa que não tem povo, que não tem gente, que só se assemelha pelos badulaques dispostos impecáveis no aparador, validando-os como “cidadãos do mundo”. Nada contra os cacarecos, que também tenho esses fetiches, e os considero um materialismo saudável, mas me parece que, sem eles, aquelas pessoas não são capazes de dizer quem são da mesma forma como fazemos meramente chupando uma ciriguela.
    Também é enorme a quantidade de Felipes Netos, de RezendeEvils, de Felipes Castanharis, de Kéferas Buchmanns, de Harus Jigglies, de Coccielos, todos eles misturados, que eu vejo no jeito novo de falar o cearês. O mais curioso é que o Whindersson Nunes, que é o youtuber mais bem-sucedido do Brazil hoje e é piauiense, não influencia a fala de ninguém. É o complexo nelsonrodriguesano de vira-lata, só que de um jeito mais hipócrita: todos adoram o pé-duro amarelo, mas ele nunca vai latir tão bem como um weimaraner.
    Eu me preocupo de verdade é com aquilo que se pode perder. Sou da capital, mas meu pai me deu o melhor presente que podia na minha formação de caráter, que foi o levar-me constantemente ao sertão e proporcionar que o sertão me levasse aonde ele não podia, que era a riqueza silenciosa de sua cultura. Sei o que é um jirau porque foi num que emborquei a caneca de alumínio para secar, no terreiro branco da casa de Dona Zefinha, em Pacajus. Sei o que são um puçá, um jereré, um landuá, uma sovela, um samburá, um mão-no-olho, porque tudo isso fez parte do meu universo de pescaria nos interiores e litorais daqui. Sei que pão de milho não é um pão, porque moí os caroços secos no quintal da casa de meus primos em São Miguel, hoje, Itaitinga. Sei o que é um quixó, porque meu pai me ensinou a fazer um para matar os ratos do quintal. Sei a diferença entre a rasga-mortalha e o caburé, porque ouvi os dois piarem, à noite e de dia, e aprendi ali o misticismo sertanejo, os malassombros e as visagens que ali, na Serra da Boa Vista, no roçado dos capuchos de algodão, tornaram-se meus como se tivessem nascido comigo. Sei, enfim, de um pouco da riqueza de minha terra, de minha gente, que me chegou nas palavras, nos cantares, nos sotaques tão gostosos quanto enciclopédicos, e tudo isso significa que eu pertenço a um lugar, a um povo, a uma beleza imaterial que se vivencia quando, simplesmente, se fala. Nada disso nunca foi “regional”, nunca foi “folclórico”, mas sim fui eu com os meus, foi vivência, foi natural como as palavras e as suas almas devem ser. Será que esse chão sobreviverá nos meus filhos? Será que essa pertença que a linguagem agrega ao falante vai enraizá-los em si mesmos, situando-os no mundo e dando-lhes a perspectiva de que sua fala é seu lar? Será que eles vão sobreviver a esse autoetnocídio financiado a dólar? Não sei, realmente. A vida é a cada dia mais “de plástico”, e o manual de instruções vem impresso em mandarim.

15/04/21

sábado, 10 de abril de 2021

A CULPA É DA RÊMORA

 
(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

    Nesses dias, eu me peguei pensando num texto do Brecht que costumava usar em aulas de Interpretação Textual, “Se os tubarões fossem homens”. Texto genial, alegoria impecável, utilíssimo para meter o pau no sistema. A meninada adorava. Não há como fugir das metáforas nem como evitar a faísca da revolta, essa eterna adolescência do pensamento político. No entanto, hoje, só hoje, eu pensei nas rêmoras, os peixes-piloto que pajeiam tubarões e arraias, nadando colados aos seus flancos e ventres. Nunca consegui entender qual o benefício delas para os “hospedeiros”. Aos jacarés, com suas bocarras abertas, há pequenos pássaros que limpam os dentes, comendo os restos cadavéricos e faxinando a casa. Tia Consuelo, a namorada do dentista, minha professora de Ciências na quinta série, ensinou-me — entre uma piada e outra sobre o namorado colocar-lhe ferro na boca — que isso se chamava “cooperação” entre as espécies. O mesmo se dá entre a abelha e a flor, o paguro e as cracas etc. Foi ela que me falou das rêmoras, as quais, com o tubarão, têm uma relação de comensalismo, ou seja, uma espécie se beneficia da outra sem prejudicá-la, mas sempre me incomodou a associação infantil que ainda teimo em fazer com o jacaré: como o tubarão permite que um peixe entre em sua boca e colete ali os restos que poderiam muito bem ser do seu colega — talvez, parente — do lado oposto, que se descuidara? Ele não permite. Tubarão não é jacaré.
    Aí, veio-me o Brecht. Rapaz, como não pensei nisso antes? As rêmoras funcionam como os assessores, os corta-jacas, os baba-ovos, os paus-mandados, os moleques de recado dos tubarões, se estes fossem homens. No topo da cadeia alimentar, eles não precisam se rebaixar a indignidades tais como sacar vencimentos de funcionários — digo, peixinhos — inexistentes, ou mesmo o valor excedente depositado em conta daqueles que até existem, mas com o legítimo propósito de receber bocados gordos demais para suas boquinhas de xaréu, o que as rêmoras, prontamente, remedeiam com o translado até as bocas proporcionais dos seus mestres. Rá! Resolvi o enigma, Consuelo!
    Contudo, há, de raro em raro, ocasiões em que uma espécie excepcionalmente perigosa de tubarão põe em risco a harmonia do fundo do mar, que consiste em cada tubarão ter as suas próprias rêmoras, suas tartarugas, suas focas, suas sardinhas. É uma espécie cuja voracidade não permite que as presas se renovem a tempo de repor o estoque, tampouco respeita o território dos outros tubarões. Em situações mais raras ainda, no conflito causado pela intromissão em esferas alheias, esse tubarão passa a predar seus semelhantes, guardando exceção apenas para os familiares, os quais defende com fúria desproporcional, à revelia da lógica biológica entre as espécies, qual seja, nenhum tubarão pode se associar a moreias, por exemplo, ou a marlins, ou a orcas. Cada qual tem seu curralzinho, sua congregaçãozinha, seu eleitoradozinho para consumir. Esse tubarão percebeu que pode sim haver um grau acima na hierarquia oceânica. Ele entendeu que um tubarão poderia ser temido apenas pelo menear da cauda, pelo fremir dos opérculos, ou mais ainda, esse supratubarão poderia, apenas com a sua existência, submeter os outros tubarões como se estes fossem meras rêmoras.
    O problema é que não há um dente a mais na sua boca que na dos demais, nem mais velocidade ou força em seu corpo. A única vantagem que leva é a fidelidade absurdamente irreal de suas rêmoras. Elas são tantas que mal se lhe vê o corpo macilento. Somente os olhos sem vida e a bocarra indecentemente entreaberta à espera de novos bocados imediatamente servidos por elas se percebem. Os outros tubarões, obviamente, não podem tolerar tamanha aberração, tal desirmandade, tão traidora, tão vil. Reúnem-se. Confabulam. Esperam o nível de revolta entre os peixinhos — os dele e os seus próprios — chegar à beira do colapso, de modo que estes cheguem ao ponto de ver neles seus irmãos, seus vingadores, seus justiceiros. É o momento ideal. No mar, agora, não há mais “tubarões”. Há apenas um, o maldito, o inominável, o excrementíssimo, aquele a quem qualquer proporção de justiça não se aplica mais, seguindo-se a isso pedidos de estraçalhamentos e descarte dos restos em fossas abissais.
    O tirano, contudo, é covarde em seu delírio de Netuno. Intimamente, sabe que sua vida de predador só vale enquanto houver a anuência digestiva dos de sua laia. Todos precisam estar felizes no topo de suas cadeias, que é para isso que servem os peixinhos. Cada tubarão deve ter a sua tirania respeitada. Sabendo que é inevitável o ataque, ele apela para uma medida tão antiga quanto o sal do mar: a culpa é das rêmoras! Sim, ele fora mal assessorado, tivera sua visão velada pelo fluxo constante de barbatanas bajuladoras ao seu redor, fora uma vítima de oportunistas que, impossibilitadas de terem a sua grandeza, entraram em conluio para destruir a sua imagem perante os de sua espécie. Não pôde ver o que lhe faziam, e acabou sendo levado a decisões que comprometiam o grande conglomerado de tubarões, todos vítimas, todos seus irmãos.
    Funcionou. Centenas de rêmoras foram dilaceradas sem finalidade alimentícia, vingança pura, uma carnificina expiatória e purgativa, a carne podre da sociedade sendo cortada pelas suas lideranças. Enfim, voltou a reinar a paz. Cada tubarão continuou em sua bancada, com seus peixinhos fiéis. De quando em quando, uma rêmora era devorada para que as outras não esquecessem o seu lugar na cadeia democrática do oceano. O oceano, acima de tudo! Os caranguejos é que, habituados a se entocar e a se alimentar dos excrementos sociais — ao lado dos camarões e dos plânctons, a ralé absoluta daquele ecossistema —, entendiam a verdade final daquela aventura de poder: o único oceano seguro é aquele entre os recifes, sob as rochas, sob o leito, sob algumas camadas de terra, onde merda e vida são praticamente a mesma coisa, uma amálgama enorme, em cujo interior, em se permanecendo, sobrevive-se mais ou menos como agrada aos deuses.

10/04/21

sexta-feira, 9 de abril de 2021

OS PARDAIS E O FIM DO MUNDO

 
 (Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

    Ultimamente, tenho visto pouquíssimos pardais. Antes, eram onipresentes. Tudo bem, entende-se a ausência deles no meu quintal, eu tenho seis gatos. Mas as rolinhas, os bem-te-vis e os beija-flores ainda estão lá, mesmo que mais cautelosos após alguns óbitos; os morcegos, também, farfalhando a noite em relâmpagos negros. Então, onde eles estão?
    De todos os pássaros urbanos, o pardal sempre me infligiu lições, por exemplo: ele nunca se habituou ao homem. Chega um, foge o outro. Nesse quesito, difere do pombo e da hamburguesa, além do qual, há o atenuante de ninguém nunca ter caçado, capturado ou comido um pardal — meninos de baladeiras, talvez, embora isso seja coisa de sertão, onde o alvo preferido são as avoantes, hoje, raras por causa disso. De vera, ninguém lhe dá a mínima. Nem migalhas, que estas se jogam nas praças columbinas. Mesmo assim, sem ser molestado, o pardal é de natureza arisca, mais que todos os outros com suas pixilingas: ao menor sinal de gente, põe-se em alerta e chispa voo se alguém se move.
    E agora, esta: somem! A ordem natural das coisas tem jeitos sutis de se queixar, antes de ignorar a criação e pôr-se a reinventar a vida. Esquentam uns célsius aqui, somem abelhas acolá, e pimba!, aparece o solo negro onde dormiam neves que se supunham eternas.
    Se o sumiço dos pardais é um sinal de uma nova enxaqueca divina, pegou-nos completamente desatentos. Escolhesse o Criador um bicho mais notável, mais midiático, como o elefante-africano ou o dragão-de-komodo, vá lá, a gente perceberia. Ou não? O mico-leão-dourado e a ararinha-azul que o digam.
    Desta vez, talvez o cansaço tenha sido maior, tenha sido demais. Talvez o limite de Deus tenha sido o “batismo” de Bolsonaro no Rio Jordão. Ou a Damares conclamando linchamentos morais contra o aborto legal de uma criança estuprada. Ou o Brazil como um todo, por que não? Somos um país que não merece mais pardais nem segundas chances. Talvez estejamos sendo o limite arbitrário entre os dilúvios, já que Deus parece descartar a criação com um desamor proporcional ao amor. Minha irmã costumava repetir o que os carismáticos lhe haviam ensinado: “da próxima vez, vai ser com fogo!”. Nisso, eles se assemelham bastante aos neopentecostais, já que a alucinação de ambas as congregações com o Juízo ultrapassa os parâmetros hollywoodianos, de Michael Bay para lá! Contudo, a nós, nordestinos, possa até fazer sentido: primeiro, ateia-se o aceiro; depois, revolve-se a terra nitrificada.
    Eu, de minha parte, acho que tanto Deus como os pardais acharam algo melhor a fazer. Longe daqui, destas sucessões de absurdos e horrores, da compra dos votos do centrão, das torturas e assassinatos institucionais, da extrema-direita, da FIESP, do apodrecimento do Sudeste, do (des)Governo genocida, enfim, bem longe da safadeza do Brazil, devem estar numa praça qualquer mais ou menos assim: Deus, com uma marmita de cordeiro ao vinho recém-devorada, arrotando satisfeito mais um mandamento; e os pardais, pinicando, festejando com o que Lhe cai das barbas galácticas. Aqui e ali, uma pontadinha de indigestão, uma peristalse, um deslocamento de flato e uma catinguinha Lhe recordam as terras onde já gorjearam os sabiás, para onde, em Seu nome, dirigiram-se os piores europeus imagináveis, em caravelas de progresso e evangelismo. Nada que uma abanada de mão divina não afaste e uma soneca digestiva não converta em bosta santa, adubo divino do barro primordial.

09/04/21

sábado, 3 de abril de 2021

É VERDADE ESTE “BILETE”

Foto: Fernando de Souza
(Clique na foto para ampliá-la.)

    Essa pandemia mudou completamente a maneira como compreendemos a vida que levamos dentro das alterações forçosas de rotina. As interações assumiram novos valores, e muitas delas acabaram por ser percebidas completamente inúteis. Entre as úteis, estão as laborais e as sentimentais. Amigos, família, amores e afetos empreciosaram-se na lonjura, e a internet acabou finalmente atingindo o seu objetivo mais nobre, que é o de aproximar o que importa nas pessoas. Imagino como devem ser — pois esse tempo já passou por mim — a necessidade da presença física, a urgência de abraços e beijos, a carência dos dedos nos cabelos, os ouvidos procurando nos cantos da casa o leque-leque das chinelas nas solas dos pés assinalando que não se está sozinho; e nada disso ser possível. Pelo menos, por agora.
    Eu, de certa forma, tenho a sorte de estar numa fase muito confortável de minha misantropia. Faltam-me meus amores perto, é óbvio. Porém, ter normalizada a minha necessidade de solidão é bastante redentor. Pela primeira vez, vejo uma utilidade prática para a minha saúde emocional em eu ser exatamente assim como sou.
    Acontecem também outras curiosidades, e algumas oscilam entre a surrealidade e a brasilidade, semissinônimos que se opõem pelo contexto apenas. Trasanteontem, dia 1º — é mesmo verdade este “bilete”! —, por volta de 18h, caminhava pela orla da Beira-Mar em direção a mais uma aula particular. É o fantasma da morte nos ônibus, nos supermercados, nos próprios apartamentos dos alunos, mas a precisão prevalece. Não parei de aproveitar em nenhum momento as oportunidades de aulas que surgiram. Em parte, sentia-me culpado por estar ali, já que afirmo e confirmo a obrigatoriedade do isolamento nestes tempos, mas, fazer o quê, preciso trabalhar. Melhor que seja pelo menos agradável o risco de morte, pois não? Pois bem. Pus Zé Rodrix para tocar nos fones de ouvido, sentei-me numas pedras ao lado de um dos espigões e comecei a comer o pão com mortadela que preparara em casa, pois tinha bastante tempo até o início da aula e antevi a fome. Olhei o mar, andei pela areia, observei algumas poucas famílias por ali, alguns namorados, vários solitários. Todos, meio que como eu: o olhar apreensivo, buscando qualquer coisa nas ondas que fizesse a vida valer a pena. Caminhei até o ponto no calçadão que ficava em frente ao prédio, ainda tinha uns 40 minutos. Sabia que ninguém deveria estar ali, mas, para mim, era o jeito. Pelo menos, não chovia. Máscara, viseira, álcool em gel, desconfiança e distância dos outros. No fone, já tocava outra coisa, mas eu queria ouvir de novo “soy latino-americano e nunca me engano, e nunca me engano”. No momento em que procurava, percebi de canto de olho uma linha humana preta, cinza e laranja se aproximando a pé, de moto e em camburões: era a polícia. Tirei os fones.
    — Senhor, estamos em lockdown — ele falou como eu, “loquidáun”, apesar de eu ter notado a polidez forçada pelo ambiente e ensinada pelo chefe da corporação para momentos em que se aborda alguém na “área nobre”.
    Sempre que vejo a polícia, lembro-me da noite em que o Miguel, meu filho, quebrou a clavícula num escorregão. Ele tinha então 2 anos, e fomos de Uber ao José Frota ele, a mãe e eu. Na pressa, o motorista foi pelo itinerário do aplicativo, o que nos meteu num lugar esquisito, deserto, miserável, típico ponto de desova. Na saída desse “cheiro do queijo”, uma viatura nos parou, todos apontando as automáticas. Apesar de estarmos de mãos para cima, calmos e afirmando que levávamos uma criança ao hospital, eles só baixaram as armas e a truculência quando viram o Miguel no banco de trás, improvisadamente tipoiado e no colo da mãe. Desde então, entendi que só estamos seguros de joelhos e com as mãos na cabeça. E olhe lá.
    — Ô, meu querido, eu entendo, mas estou esperando a hora de começar a trabalhar. Naquele prédio ali, veja.
    Apontei. Sempre ando como se ainda fosse estudante: jeans, tênis ou chinela, mochila, camiseta, boina, fone de ouvido. Acho que ele demorou a associar aquilo que viu a um trabalhador. Poderia ter dito que era professor, que ia dar aula particular, mas poderia piorar minha situação. Vai saber.
    — Meu senhor, a partir das 17 horas, está proibido ficar na área de lazer da praia.
    — Claro, eu concordo com tudo isso. Pode deixar.
    E fui andando. Eu adiei uns segundos o problema imediato: andaria para onde?
    — Meu amigo, me diga uma coisa: onde eu posso ficar?
    Acho que ele não esperava a pergunta óbvia. Acredito que só aí ele entendeu que não tinha escapatória senão revelar a brasilidade de nossas medidas legais, emergenciais e urgentes em meio a esta pandemia, que é deixar cair o biombo que esconde a macacada hipócrita que é o nosso comportamento geral. Nenhum de nós, mesmo aqueles que, como eu, perdemos parentes e amigos para o vírus, agimos como deveríamos nestes últimos 15 meses. Talvez não o tenhamos feito nunca, mas era de se esperar que pelo menos o medo da morte motivasse a responsabilidade que se espera de quem quer viver. O problema é que temos de sobreviver primeiro. Viver vem depois.
    — O senhor pode ficar do outro lado da rua.
    — Oi?
    — Ali, do outro lado da rua.
    Várias pessoas estavam lá. Semiaglomeradas. Quase todos que foram tangidos do calçadão, os moradores dos prédios, os seguranças, os porteiros… Isso, sem falar no pequeno engarrafamento causado pela baixa velocidade dos camburões e das motos, aboiando com as sirenes o gadinho magro. Era um cortejo fúnebre-carnavalesco de fardas, buzinas e xingamentos em voz baixa.
    A vontade de rir foi grande. A máscara me ajudou, escondendo o sorriso de nojo.
    — Ali pode?
    — Pode, só não pode ficar aqui, na área de lazer.
    Era uma aula de pragmatismo in loco. Proibido, para a proteção da própria população, era ficar apenas na área de lazer. Ficar aglomerado na calçada oposta já contava como lockdown, segundo o silêncio eloquente e desconcertado do policial.
    — É, meu amigo, tá certo. O ideal era que nenhum de nós precisasse estar aqui, né?
    — Isso. Nenhum de nós. Mas tem de trabalhar, né?
    — Pois é. Quem manda ser brasileiro, né? Bom trabalho aí.
    — Pro senhor também.
    Atravessei a rua, obedeci. Fiquei uns 20 minutos embaixo de uma árvore de calçada, tão bem podada que parecia de plástico como quase tudo por ali. Pensei nos que sofriam, nos que estavam morrendo, no meu irmão morto, nos meus filhos, que dependem de eu estar ali. Abri a playlist. Zé Rodrix não fazia mais sentido ali. Belchior, talvez… Acabei na minha pasta de samba, procurando o Roberto Ribeiro. “Coisas da Vida” sabia melhor naquele começo de noite, cheio de ausência de humanidade, inteligência e esperança: “e, se falar a verdade das coisas tristes da vida, no peito, tristeza que dói. Assim eu levo o meu canto, sangrado em desencanto, e, se me alerto pra vida, é obra de puro espanto”. A última faixa de um dos melhores discos de samba de todos os tempos, de um 1979 em que eu, com 5 anos, a mesma idade do Miguel, não tinha a menor ideia ainda do que era ser brasileiro.

03/04/21

ISOLAMENTO


de que me serve a constatação das horas
progressivas no relógio da parede?
continuar aqui ou extraviar-me
não importarão dentro de uma hora.

de mim, estagna uma poça
a imagem de ontem
onde a chuva choveu,
enquanto passado e futuro brincam
de bandido e mocinho
nos meus terreiros.

o meu tempo é a parede.

a vida perdeu toda a aventura possível.

03/04/21

sexta-feira, 2 de abril de 2021

FLOR DE ALGODÃO

Foto: Fernando de Souza

    Ali pela segunda metade da década de 1980, meu pai trouxe de Pitombeiras uns cortes de galhos de pé-de-algodão que pegaram fácil na calçada da minha casa e na dos meus vizinhos de quarteirão. Aqui, que era pelado de árvores, floriu de amarelo em pouco mais de um ano, de um lado e de outro da rua, e eu guardo esse orgulho besta de termos sido os traficantes desse arborecer. Nessa época, saíamos (a pivetada) de casa em casa com pau e lata pra colher jambos. Os que não comíamos viravam munição pra batalhas campais que deixavam até a alma roxa. E quando estes acabavam, valíamo-nos dos torrões de barro vermelho seco que se encontravam em toda parte devido às obras de saneamento na rua. Era uma época de roubar frutas, guerrear de molecagem e despetalar o amarelo dos algodoeiros. Debaixo deles, sentávamos à noite e de dia, nas calçadas que ninguém nunca mais terá, e éramos aquilo que nunca mais seremos. E eu sabia intimamente que não poderia ser mais feliz.
    Foto tirada em 31 de março, num meio-dia de tempestade, numa cidade sem graça, sem frutas e sem molecagem. Ainda tentei carregá-la no bolsinho da alça da mochila, onde guardo o frasco de álcool em gel, pelo máximo que pude, mas ela não aceitou essa antinaturalidade e descoroou-se, jogando-se na calçada mais estéril possível, defronte a uma farmácia de conveniência no Meireles, salpicada aqui e ali da mais polimerosa artificialidade. Só pude pensar que pelo menos as flores ainda resistem com suas delicadezas, apesar de havermos perdido as nossas.

01/04/21

quinta-feira, 1 de abril de 2021

1º DE ABRIL

Clique na imagem para ampliá-la.

não meças nunca a noite do teu cansaço
pela aurora do vigor alheio.

só as tuas derrotas
é que sabem de ti
e de tuas ressurreições.

tu rastejas nessa noite
sem pele, sem pés, no asfalto imundo,
incógnito,
desaparecido.

contudo, não temas a noite
nem a odeies.

deixa-a fazer
o que ela faz de melhor
— matar-te —
e conta as estrelas se não chove,
que é entre uma e outra,
muito além delas, porém,
que adormeces,
e a tua própria noite encontra na outra
o colo materno que faltava
a quem te venceu;
e todos os teu irmãos extraviados.

já os guerreiros,
obtusos por incapacidade,
o que veem são deuses no céu,
e tudo lhes é nada mais que gráfico
e matemático
no preenchimento desse vácuo,
para o qual inventam
hinos, bandeiras
e outras que tais inutilidades.

sabem menos que tu,
que padeceste as tuas torturas
e as deles;

vivem menos que tu,
que morreste mil mortes
e vives no peito causticado
dos outros crucificados diários.

tu, agora,
conheces a matéria heterogênea
da noite verdadeira.

deitaste.
descansa.
guarda do céu a última friagem,
que, além, no lado oposto da dor
e do tempo,
te aguardam reconstruídos
os teus irmãos,

e é lá o teu lugar.

31/03/21

terça-feira, 16 de março de 2021

MARINHOS

Foto: Fernando Girotto (Icapuí - CE)  
(Clique na foto para ampliá-la e no nome do autor para acessar a página de origem.)

I

dentro das palavras, onde moram as coisas,
existem coisas ainda maiores
— o ignorado.

veja o mar, por exemplo.

dentro da palavra, ao lado do que é e sempre foi o mar,
existe outra coisa a que também chamo mar,
mas que, diferente daquele,
sobre-existe esvoaçante, muito além da água e do sal,
dos peixes e dos navios cheios de petróleo e armas.

é um mar feito de luz e de cabelos,
cuja água, onipresente sobre o corpo,
desdenha da superfície da terra.

nele, a vazante e a preamar
são pressentimentos,
tanto que rompem com a Lua
por padecerem de outros magnetismos,
por obedecerem a leis que se renovam
com a maré.

é um planeta submerso,
salpicado de ilhas cor de vento
e baías que nasceram já dançando
de uma eterna meninice,
de uma saudade mais antiga
do que o próprio objeto da saudade.

esse mar, que habita dentro da palavra mar,
não se vale de sua força
para urrar quem é à costa
nem se guarda aos faróis
como se os apagasse a naufrágios.

ele é manso e humano e anda sempre ao meu lado,
corre como um rio por onde quer que eu vá,
adiante de mim,
e dentro, na fome de que sinto falta,
na comida que nunca mais haverá.

ele é feito, assim, única e simplesmente
de tudo aquilo que zarpou
de todas as beiras de praia de minha vida.

II

se me perguntassem onde termina o mar
não saberia dizer
se na chuva que dele sobe
antes de chover
se no leito negro dos abismos
se na vela recolhida e enxuta
se no porto
ou se na aurora

se no casco, que lhe faz fronteira
se na costa, que a onda lambe
ou se na concha, malassombro de seu marulho

o mar
acho que termina
naquele casal que se beija
e bebe um do outro
a sua própria maresia

termina na areia
entre os dedos dos pés da criança
tragada pelo ralo do banheiro do apartamento

talvez no lixo escumado
talvez no sunglass do playboy
talvez na sempre enigmática
mise-en-scène do carnaval

o mar
acho que termina mesmo
no fundo do prato de plástico
no fundo da gelateria chic
no fundo mais profundo e estéril
do bairro mais nobre à beira-mar

16/03/21

terça-feira, 2 de março de 2021

BARRAVENTO

 
Luíza Maranhão em cena de Barravento (1962), de Glauber Rocha.
 (Clique na imagem para ampliá-la e no título do filme, para acessar a página de origem.)

de todas as palavras com vento,
barravento é a que prefiro:
giro do corpo e do mar
quando vem orixá,
quando vem tempestade,
quando o espírito e as águas
são os dois
a carne de Deus.

é quando a vida se revolve
e se anuncia o tempo íntimo
das revelações
— comprima-se o átomo,
este minúsculo coração,
que é o universo
o que me espera.

01/03/21

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

O NOME DE DONA IRENE

Imagem digitalizada por Francisco Carlos.
(Clique na imagem para ampliá-la e no nome do autor para acessar a sua página.)

     Memória é, no meu caso, primariamente um negócio afetivo. Vejamos um exemplo. Estudei por pouco tempo numa escola que não existe mais, chamada XV de Novembro, quando muito criança, ali pelos 6, 7 anos, início dos anos 1980. A diretora se chamava Rita, minhas professoras eram Sônia e Cláudia. Meu melhor amigo era o Jairo. Eu era apaixonado por uma menina chamada Márcia. A zeladora era a Dona Irene, e o porteiro, o Seu Geraldo. Não lembro de me contarem, lembro porque lembro, lembro porque eu assimilava o mundo ao meu redor com o coração, com a imaginação, como deveria ser com toda criança. Em 2019, encerrei 10 anos de contrato de trabalho numa escola X, como professor de Português. Por esses 10 anos, eu convivi com algumas pessoas ótimas, outras, detestáveis, porém o meu afeto não me permitiu (ou não permite) lhes guardar devidamente os nomes. Preciso fazer um longo esforço de reconstituição de cenas para lembrar que a senhora da copa se chamava Lourdinha, por exemplo. No entanto, com um falecido porteiro — pai de um aluno meu muito querido, chamado Maurício —, que se chamava Seu Marcos, não tive sucesso; precisei da ajuda da Vivi, ex-colega de trabalho, que me corrigiu — achei que fosse Seu Mauro. Porque isso acontece, não sei; gostava igualmente dos dois. Mas a D. Irene, aquela do XV, que ficou uma vez esperando comigo sozinha na escola porque meu irmão Cláudio se esquecera de me buscar, está gravada permanentemente na minha memória. Já os nomes de muitos outros eram tão circunstanciais que eu precisava inquiri-los a terceiros, de cujos nomes, por sua vez, só me lembrava por sorte. Sorte, no sentido etimológico do radical: aleatoriedade. O afeto me permite recuperar-lhes os rostos, a camaradagem, ser-lhes solidário nos votos de boa-aventurança. Já seus nomes, estes se perderam na voragem sucessiva das coisas ordinárias dos dias iguais.
    Talvez, eu tenha me tornado um cínico, ou um escapista, ou um misantropo, ou uma espécie de sociopata, como sugeriu certa vez Dona Fátima, mãe do Hálinson e da Natália, esposa do Seu Messias, todos muito queridos meus. Conversávamos sempre com muita alegria, e, numa tarde, falando sobre esses “apagões” mnemônicos, eu tinha dito a ela que não conseguia me lembrar dos nomes de algumas ruas do meu próprio bairro nem de alguns dos meus amigos, muitos, de infância, até, e que me perdia com facilidade, por não gravar os caminhos. Ela me ouviu pacientemente, analiticamente. Ouviu como mãe. Respondeu como juíza. “Isso acontece porque você não se importa com nada”. Dona Fátima, com o pragmatismo de uma contadora — que ela é —, asseverou o encadeamento de palavras que, na minha autodefinição, ainda não eram sequer letras. Porém, lá estavam, epigrafadas: “ele não se importa com nada”.
    Como acertara D. Fátima… Ali, de certa forma, deram-se tanto uma epifania quanto uma libertação. Não levei a mal, muito pelo contrário. Eu tinha agora uma frase que me definia bem, e só quem vive a perturbação da busca constante sabe o quanto isso é difícil de se encontrar. Não era um problema meu de afeto, não era eu que não sabia sentir as pessoas, não era um aleijão sentimental. Era, isso sim, o oposto da posse. Era um olhar de transeunte permanente, de constante temporariedade, era a janela do ônibus com a vida em curso nas avenidas, ruas, calçadas, botecos, olhares, contatos. Tudo passando, tudo fugaz. Ou quase tudo. D. Irene, não. Ela, cabelo grisalho, vestido de chita, pés apressadinhos nas chinelas, fez mais que o seu trabalho quando outros negligenciaram os seus. Dona Irene, que já deve estar no céu das Irenes, junto à de Manuel Bandeira, é nome que não passa na janela. Fica sentada junto de mim, com todos os outros nomes que, sei lá por quê, me acompanham nesses ônibus circulares desta cidade provinciana que sou eu.

23/02/21

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

GIGOT

Gigot (Gene Kelly, 1962)

      Fico me perguntando se a vida adulta consiste em arrependimentos e tentativas de fazer as pazes com a criança que se foi. E em inventar nos caminhos adiante — não se pode voltar — tesouros artificiais que substituam os verdadeiros, os que caíram e quebraram, os que foram varridos com o lixo da casa, os que se perderam nesse afunilamento que é envelhecer.
    Era a primeira metade dos anos 80, a “década perdida”, quando nós éramos “programados a receber o que vocês nos empurraram com os enlatados dos USA, de 9 às 6”. A diferença é que era madrugada. Minha mãe tinha esse hábito dos solitários, o de ver filmes enquanto todos dormiam. Valia a pena ser solitário junto dela. Minha mãe calava a revolta e as frustrações da vida simplificada no seu dia-a-dia de dona de casa cuja promessa de felicidade fora substituída pela servidão e pelo abandono matrimoniado. Em suas tentativas de conciliação inúteis, ensinou-me a calar também. Aprendi a revolta que vive nas covas do silêncio. Mas também foi nessa época que comecei a aprender o silêncio, a imaginação e as paixões que vivem dentro das estórias que começara a partilhar com ela na frente da tevê. Eram tantos filmes, e tão bons, tão ilimitados! Não havia quase nenhuma restrição de conteúdo; víamos de tudo: tragédias, épicos, pornochanchadas, comédias pastelão. Devo à minha mãe esse amor ao Cinema que tenho hoje, ainda que bastante empoeirado e desanimado, essa capacidade de viver outras vidas que roubou da Literatura e da Música o meu espírito.
    Hoje, assisti novamente, depois de uns quarenta anos, a um pedaço tão bonito dessa minha infância, um filme tão triste, tão tocante e revoltante, tão lindo. Pensando bem agora, talvez tenha sido a minha primeira experiência com o desespero e o desalento diante da injustiça e da hipocrisia. Claro, uma experiência projetada. As reais vieram a cavalo, em seguida. O filme se chama Gigot. É uma produção lançada em 1962, um clássico que tem lugar na França e foi idealizado e protagonizado por Jackie Gleason, que também compôs as músicas temáticas, e dirigido lindamente por Gene Kelly. A personagem principal, que intitula a obra “perna” (de cordeiro, geralmente), em francês , é um homem mudo, gordo, enorme e extremamente bondoso, simples e gentil, ridicularizado por todos do seu bairro, os quais, em virtude de sua incapacidade de se impor, se aproveitam dele com uma condescendência tardia, mas nunca suficiente para se tornar uma piedade. Tomado por deficiente mental, é envolvido numa cadência de desventuras que lembram as de Quasímodo, de O corcunda de Notre Dame (William Dieterle, 1939) ao qual também assisti com minha mãe , porém com um falso final trágico, em que ele é dado como morto, e o seu gorro, a sua única peça de roupa encontrada após uma perseguição cruel, é enterrada pela mesma multidão que o perseguia furiosa. Era típico dos roteiros estadunidenses dessa época tratar os dramas e as tragédias como intensidades que deveriam sempre ser quebradas, ou seja, havia alívios cômicos constantes durante as narrativas para que as obras, ao final, entretivessem mais do que chocassem o público. Isso sempre me incomodou. Filmes como Papillon (Franklin J. Schaffner, 1973), Os três mosqueteiros (George Sidney, 1948) e A ponte do Rio Kwai (David Lean, 1957), por exemplo, têm momentos de comédia salpicados na sua cadência, o que hoje cansa, desestimula e até atrapalha a imersão na trama principal. Contudo, a fusão do entretenimento à arte, o conservadorismo cultural e o excesso de musicalização e teatralização eram bastante normais para os espectadores dos cinemas, que talvez não digerissem bem uma obra mais densa sem esses “enquadramentos”, e isso poderia até significar o fracasso financeiro da obra.
    Por isso, é necessário sempre tentar, pelo menos, adaptar a percepção à do público-alvo da época do lançamento ou da publicação de qualquer obra artística. Se Gigot fosse feito hoje, respeitando-se o drama e a reflexão que ele visa promover, encontraria um cinéfilo diferente do de 62 neste aspecto: ele poderia apreciar a obra se ela se desvestisse da suavização e se apresentasse crua, amarga, naturalista, mais próxima da natureza humana e de suas patologias. Reconheço que o grande charme do filme não se perde, mas eu sou bastante suspeito nesta crítica, já que assisti a ele menos de 20 anos após o seu lançamento, e ainda era bastante usual se manterem aqueles recursos narrativos no início dos anos 80. Era uma transição. Star wars era uma grande novidade, e todo mundo queria ter a BMX do E. T., contudo ainda se possuía a grande inocência de se vibrar com os filmes de kung fu e de se pôr febril e amarelo com Emanuelle. E é nesse caldo de experiências que se está a delícia da redescoberta das obras. É assim que quem é da minha idade consegue habitar ao mesmo tempo dois, três, vários corações: catamos de volta os olhinhos de nós-meninos e, de novo, podemos chorar com a mesma legitimidade original, com o mesmo espírito que os filmes ajudaram a construir, e essa emoção é o que o cinema tem de mais precioso a oferecer. Minha mãe, meu silêncio e o dela, meus tesouros, tudo se reencontra aqui, nesta cama, com este laptop no colo, num único corpo repleto de espíritos.

?/2020-02/2021

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

IMPASSE

então esta é a noite
de que tanto me havia falado
a madrugada.

não é mágica nem sinistra
tem ocos de solidez
e desavisa manhãs

mas
caberá nela um sonho
que, por antigo, apessoou-se ao meu lado
e me conta, ele próprio, histórias de mim?

caso não, preciso escolher
agora
se devo arcar com o peso dos olhos
e deixar adormecerem os joelhos
ou
contemplá-la de fora
à margem do sonho que me dorme
como quem nasce
desde antes de mim.

17/01/21

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

DO SAPIOSSEXUAL AO BBB: O FETICHE PELA DIFERENÇA SUPRIMIU AS SEMELHANÇAS

 

    Pode-se dizer que a humanidade propriamente dita começou com a nomenclatura das coisas. E que ela se requintou quando essas coisas deixaram de ser coisas e passaram a ser o abstrato: medo, coragem, deuses, futuro. Contudo, há uma categoria de coisas intermediárias, com um pé em cada mundo — um se percebe com os cinco sentidos; outro se imagina e se adivinha. Aí estão a dor, a fome, o frio… e o sexo. Quando nos requintamos ainda mais, subdividimos as principais delas segundo critérios autoexcludentes: digno-indigno, moral-imoral, belo-feio. O sexo, esse, que nasce do desejo — e este, por sua vez, que se difere dos outros desejos por incluir em si o próprio ser desejoso em um estado de sensações muito específico, no qual não se separam egoísmo e altruísmo, dor e prazer, sublimação e objetificação —; esse sexo, que, por ser nascente no espírito humano, antecede e transcende o corpo e a própria ideia de corpo, visto que pode exigir adereços, ferramentas, ambientações, projeções — característica que faz dele a ação humana que mais ignora a realidade em função do imaginário —; esse sexo foi o fator, dentre todos os requintes aos quais a palavra imaginada submeteu as coisas que descreve, que mais retrocategorizou as pessoas, de forma que chegou ao ponto de ser formador de nações entre os povos: nessa, ficam aqueles que se relacionam com o gênero feminino cis; naquela, os que se relacionam com os dois gêneros que a cultura patriarcal determina como aceitáveis; naqueloutra, os que se relacionam com os gêneros trans; já ali, os que preferem os cis masculinos; acolá, os que aceitam qualquer gênero, contanto que se vistam de coelhinho rosa; e, por aí, vai, e tudo isso é muito natural.
    Não que eu esteja diminuindo a importância e a visibilidade das minorias, porque não estou. A sociedade está gravemente enferma de preconceitos e de violências oriundas das mais abjetas imbecilidades, e tudo isso deve ser combatido por meio, inicialmente, das exposições e das ações afirmativas; e, finalmente, da adaptação e da aplicação de leis que protejam totalmente quem sofre com a estupidez humana. Porém, midiaticamente, não está sendo feito assim. Parece aos influenciadores que a caricatura é o único rosto possível, e que é ao redor dela que se devem agregar os oprimidos.
    Estava lendo nesta manhã um artigo do El País sobre os sapiossexuais, matéria ilustrada por uma fotografia de Marilyn Monroe, que, sabemos, comeu o pão que o diabo amassou nas mãos dos que a desejaram, rejeitaram, abusaram e daqueles a quem ela própria o fez desde que era Norma Jean. Segundo o texto, a sapiossexualidade é a atração sexual lenta e condicionada à intelectualidade da pessoa, sexualidade essa que não considera as características físicas como prioridade e que, dada a oposição que as culturas modernas estabeleceram entre mente e corpo, até chega a desprezá-las totalmente. De pronto, vieram à memória as aulas de Introdução à Linguística, nas quais aprendi que existe para cada noção substantiva um conjunto de outras noções que a excluem, ou seja, uma coisa se categoriza por não ser outras coisas muito mais do que por ser o que é. Lembrei-me também de todos os meus relacionamentos e de mim neles. Houve uma enxurrada de pequenas epifanias, que logo se mostraram mais conclusões do que revelações: o que eu fui sexualmente sempre dependeu do que eram as minhas parceiras, e acredito que tenha sido assim também para elas. Nossas “falhas” sexuais não foram critérios de exclusão, mas pequenos obstáculos que, nesse e naquele caso, tornaram-se até gostosinhos na cama. Minha heterossexualidade ia se moldando ao que dava, ou não, prazer. Com uma, ela era romantiquinha, com musiquinha e frescurinha; com outra, era bruta e requeria cordas e cinturões; com aquela, baseava-se exclusivamente no corpo; com outra aquela, na voz e nos gemidos. Fiquei pensando em como nenhuma dessas atrações excluía as outras, em todas as pequenas transmutações de comportamento que nunca me foram inaceitáveis. Porém, o que mais me incomodou na leitura da matéria foi a relação que fiz entre ela e aquelas minhas aulas de substantivos: as nomenclaturas.
    Veja, como professor de Português, não sou nem posso ser contra a criação vocabular ou as metamorfoses semânticas. Elas são exigências dos requintes culturais, como já disse. Contudo, não me conformei com a redundância desse “sapiossexual”, no qual identifiquei a mim e a quase todo mundo que conheço. O pleonasmo é explicável: tanto nas minhas relações quanto nas dos meus amigos e conhecidos, eu verifico a mesma inclinação natural: escolhem-se as pessoas que se mostram mais interessantes intelectualmente, e isso significa que selecionamos quem admiramos dentro do escopo da nossa própria intelectualidade ou acima desta. Duvido muito — novamente, afirmo: falo de mim e dos que conheço — que alguém de qualquer sexualidade escolha para um relacionamento longo uma pessoa cujas inteligência, sagacidade, esperteza etc. não o atraiam. “Vem cá”, diria o enamorado em um teste que talvez nunca admitisse estar fazendo, “você não acha que se exagera muito nessas tribos comportamentais que as pessoas criam?”. Dependendo da resposta facial e verbal da moça, ele a classificaria — sim, todas as pessoas classificam umas às outras, essa é a vida real — e poderia escolher, dada a sua maturidade emocional, continuar, progredir, ou não. O caso é que, além de não haver na nomenclatura uma identificação clara
— como acontece com as outras semelhantes — de um grupo, escolher alguém com quem se identifica comportamental e intelectualmente é o usual, é o que sempre se fez. Não carece de uma nomenclatura isso. A não ser, é claro, que a investigação científica esteja bastante entediada, e a Sexologia resolva categorizar todas as nuanças, mesmo que sejam elas as mais óbvias e genéricas, da sexualidade humana.
    Acredito que o contrário, sim, é que deveria ser estudado e dissecado, e no escopo das parafilias: como se nomeia a atração patológica que se sente pelas pessoas mais imbecis? Não porque seja rara, pois não é. Gente que se simplifica e se submete à estupidez existe a rodo — aqui eu conjecturo, reconheço, mas que outra razão existe senão essa para que se transcenda essa parafilia para um fetiche institucional, e se passem a eleger estúpidos, idolatrá-los, tatuá-los no peito, mitificá-los? Ou vai você, caro leitor, dizer que não existem essas projeções daquilo ou daqueles que se desejam sexualmente para as representações sociais, tais como patrões, sacerdotes e políticos, nos quais se idealizam corpos e comportamentos, atitudes e passividades? Vai também dizer que não as faz?
    Portanto, eu, que me categorizei hoje um sapiossexual e que não sei em que isso me melhora — a não ser talvez numa exibição lexical irônica dessas que se fazem bêbado —, reconheço que falhamos enquanto pensadores, professores e cientistas numa espécie de superdicionarização do mundo. Parece que estamos mais preocupados em dar nome às coisas e em nos excluir pelas diferenças nas quais nos categorizamos que em nos unir em torno de causas coletivas urgentes. Ontem, por exemplo, votou-se pela aprovação da autonomia do Banco Central, a qual, sendo definitivamente estabelecida, vai tornar virtualmente impossível para o Estado a intervenção nos bancos e a regulação da economia em casos de crise. Mas o que importa isso diante da sexualidade dos concorrentes do Big Brother Brasil 21 — 21 anos, olha aí, millennial, já pode ser responsabilizado criminalmente (piada de tio) — e das tribalizações ideológicas em nichos que não agregam de fato aos seus integrantes mais que o fariam se estes se festejassem por suas semelhanças? Melhor, parece, são o circo e a guerra, ainda que não se tenham entendido até agora quais são a piada ou a causa.

11/02/21

sábado, 6 de fevereiro de 2021

PROMETEU

Imagem: Mãe Terra cristais.
(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda para acessar a página de origem.)


no sono da pedra,
trincam o sonho do cristal
demônios flamejantes,
correntes
e enforcamentos.

06/02/21

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

A LATA DE LIXO DA HISTÓRIA

O livro A lata de lixo da História, de Roberto Schwarz, foi publicado em 1977.

    Bom dia.
   Não é mais possível existir limpo. Embora haja ainda os limpos, o ar quase sólido do fedor brasileiro os enterra na indignidade como tênias, como lombrigas cegas nos intestinos da mendicância civil. O único lugar habitável do País, encimando o monturo mais alto, da mais tóxica salmoura, é a lata de lixo da História. Ah, o glorioso vasilhame, o camburão onde estão os mais imundos, os mais legítimos patriotas desta máquina de moer carniças! Lá, todos são ricos e brancos, inclusive os pouquíssimos não-brancos; sua famílias, prósperas de bilionaridades; suas relações, intimíssimas, mais íntimas que a de Deus com o papa. De lá, dessa vedeta, lugar de vagas seletas, reservadas aos alpinistas mais hábeis, vertem riachuelos escuros e pastosos, compostos da decomposição dos povos ainda esfiapados entre os grampos de suas botas. Nunca são limpas, pois são distintivos da força e bravura com que o conteúdo da lata mereceu o seu continente. Quanto mais carcaças entre os dedos, tantos mais auspícios entre os seus, e, consequentemente, mais alto o seu lugar na pilha, a qual, como toda boa pústula, entumesce indefinidamente gorda e vertical. No pico, a bandeira hasteada, mortalha indecentíssima do cadáver em decomposição eterna, freme putamente acenos desavergonhados de luxúria direcionados ao céu da lata de lixo, ao céu de todas as latas de lixo da História, a tampa distante, cujas enormes ranhuras, vistas de um certo ângulo, lembram a sola de uma enorme bota onde se lê, com a solenidade e a servidão que a fé verdadeira exige: "made in USA".
    Bom dia.

02/02/21

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

TEIMA

não teime em ficar.
você é a estória da estória
e já mudou três vezes só neste verso.

de quantas voltas de chave
é feito um adeus?
ou ele é portas abertas
numa casa sem miolo?

no pátio, as rolinhas bicam
o último grão de arroz que nos choveram.
já é tarde demais, diz o café frio,
e eu concordo.

porém, à noite,
debaixo do gume cego do tempo,
rasgam-se as horas,
e é lá, nesse desvão,
que ainda se lê o seu nome
— e o que ele diz sou eu.

19/01/21