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sábado, 10 de abril de 2021

A CULPA É DA RÊMORA

 
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    Nesses dias, eu me peguei pensando num texto do Brecht que costumava usar em aulas de Interpretação Textual, “Se os tubarões fossem homens”. Texto genial, alegoria impecável, utilíssimo para meter o pau no sistema. A meninada adorava. Não há como fugir das metáforas nem como evitar a faísca da revolta, essa eterna adolescência do pensamento político. No entanto, hoje, só hoje, eu pensei nas rêmoras, os peixes-piloto que pajeiam tubarões e arraias, nadando colados aos seus flancos e ventres. Nunca consegui entender qual o benefício delas para os “hospedeiros”. Aos jacarés, com suas bocarras abertas, há pequenos pássaros que limpam os dentes, comendo os restos cadavéricos e faxinando a casa. Tia Consuelo, a namorada do dentista, minha professora de Ciências na quinta série, ensinou-me — entre uma piada e outra sobre o namorado colocar-lhe ferro na boca — que isso se chamava “cooperação” entre as espécies. O mesmo se dá entre a abelha e a flor, o paguro e as cracas etc. Foi ela que me falou das rêmoras, as quais, com o tubarão, têm uma relação de comensalismo, ou seja, uma espécie se beneficia da outra sem prejudicá-la, mas sempre me incomodou a associação infantil que ainda teimo em fazer com o jacaré: como o tubarão permite que um peixe entre em sua boca e colete ali os restos que poderiam muito bem ser do seu colega — talvez, parente — do lado oposto, que se descuidara? Ele não permite. Tubarão não é jacaré.
    Aí, veio-me o Brecht. Rapaz, como não pensei nisso antes? As rêmoras funcionam como os assessores, os corta-jacas, os baba-ovos, os paus-mandados, os moleques de recado dos tubarões, se estes fossem homens. No topo da cadeia alimentar, eles não precisam se rebaixar a indignidades tais como sacar vencimentos de funcionários — digo, peixinhos — inexistentes, ou mesmo o valor excedente depositado em conta daqueles que até existem, mas com o legítimo propósito de receber bocados gordos demais para suas boquinhas de xaréu, o que as rêmoras, prontamente, remedeiam com o translado até as bocas proporcionais dos seus mestres. Rá! Resolvi o enigma, Consuelo!
    Contudo, há, de raro em raro, ocasiões em que uma espécie excepcionalmente perigosa de tubarão põe em risco a harmonia do fundo do mar, que consiste em cada tubarão ter as suas próprias rêmoras, suas tartarugas, suas focas, suas sardinhas. É uma espécie cuja voracidade não permite que as presas se renovem a tempo de repor o estoque, tampouco respeita o território dos outros tubarões. Em situações mais raras ainda, no conflito causado pela intromissão em esferas alheias, esse tubarão passa a predar seus semelhantes, guardando exceção apenas para os familiares, os quais defende com fúria desproporcional, à revelia da lógica biológica entre as espécies, qual seja, nenhum tubarão pode se associar a moreias, por exemplo, ou a marlins, ou a orcas. Cada qual tem seu curralzinho, sua congregaçãozinha, seu eleitoradozinho para consumir. Esse tubarão percebeu que pode sim haver um grau acima na hierarquia oceânica. Ele entendeu que um tubarão poderia ser temido apenas pelo menear da cauda, pelo fremir dos opérculos, ou mais ainda, esse supratubarão poderia, apenas com a sua existência, submeter os outros tubarões como se estes fossem meras rêmoras.
    O problema é que não há um dente a mais na sua boca que na dos demais, nem mais velocidade ou força em seu corpo. A única vantagem que leva é a fidelidade absurdamente irreal de suas rêmoras. Elas são tantas que mal se lhe vê o corpo macilento. Somente os olhos sem vida e a bocarra indecentemente entreaberta à espera de novos bocados imediatamente servidos por elas se percebem. Os outros tubarões, obviamente, não podem tolerar tamanha aberração, tal desirmandade, tão traidora, tão vil. Reúnem-se. Confabulam. Esperam o nível de revolta entre os peixinhos — os dele e os seus próprios — chegar à beira do colapso, de modo que estes cheguem ao ponto de ver neles seus irmãos, seus vingadores, seus justiceiros. É o momento ideal. No mar, agora, não há mais “tubarões”. Há apenas um, o maldito, o inominável, o excrementíssimo, aquele a quem qualquer proporção de justiça não se aplica mais, seguindo-se a isso pedidos de estraçalhamentos e descarte dos restos em fossas abissais.
    O tirano, contudo, é covarde em seu delírio de Netuno. Intimamente, sabe que sua vida de predador só vale enquanto houver a anuência digestiva dos de sua laia. Todos precisam estar felizes no topo de suas cadeias, que é para isso que servem os peixinhos. Cada tubarão deve ter a sua tirania respeitada. Sabendo que é inevitável o ataque, ele apela para uma medida tão antiga quanto o sal do mar: a culpa é das rêmoras! Sim, ele fora mal assessorado, tivera sua visão velada pelo fluxo constante de barbatanas bajuladoras ao seu redor, fora uma vítima de oportunistas que, impossibilitadas de terem a sua grandeza, entraram em conluio para destruir a sua imagem perante os de sua espécie. Não pôde ver o que lhe faziam, e acabou sendo levado a decisões que comprometiam o grande conglomerado de tubarões, todos vítimas, todos seus irmãos.
    Funcionou. Centenas de rêmoras foram dilaceradas sem finalidade alimentícia, vingança pura, uma carnificina expiatória e purgativa, a carne podre da sociedade sendo cortada pelas suas lideranças. Enfim, voltou a reinar a paz. Cada tubarão continuou em sua bancada, com seus peixinhos fiéis. De quando em quando, uma rêmora era devorada para que as outras não esquecessem o seu lugar na cadeia democrática do oceano. O oceano, acima de tudo! Os caranguejos é que, habituados a se entocar e a se alimentar dos excrementos sociais — ao lado dos camarões e dos plânctons, a ralé absoluta daquele ecossistema —, entendiam a verdade final daquela aventura de poder: o único oceano seguro é aquele entre os recifes, sob as rochas, sob o leito, sob algumas camadas de terra, onde merda e vida são praticamente a mesma coisa, uma amálgama enorme, em cujo interior, em se permanecendo, sobrevive-se mais ou menos como agrada aos deuses.

10/04/21

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