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domingo, 23 de fevereiro de 2020

FAXINA

Há que se deixar em paz um sentimento até ele deixar de ser. É preciso cuidar de deixar de sentir assim como de sentir. Somente assim, nessa retroação, podem-se faxinar dos cantos e desvãos os restos mortos dos que esperam no além pela paz do desamor. Funciona assim como com as sombras, que, estendendo-se nas superfícies onde estamos ausentes, continuam os corpos, como uma noite de um dia, e é preciso viver com os dois juntos, em harmonia. As sombras são a nossa presença ausente, a interseção do que somos e do que não somos. Contudo, não se fala nem se come nem se faz amor com sombras, muito menos se pode ter medo delas, principalmente da sua própria. Contemplam-se e esquecem-se, para que se possa depois contemplá-las devidamente.

13/12/19

BILHETE

juro que nunca te vi
nem te marquei na caderneta de minhas buscas

porém, soube de ti
como que de uma guerra num país distante
ou de um desastre no Oceano Pacífico

nessas notícias, eras de um longe
que o impossível era apenas
a metade do caminho

agora, aqui estamos
nesse fim de vidamundoamor
e não sei se te vejo
ou se te adivinho
mas a mim
vejosintoouçopegomato
a mim me despedaço
e não me despeço:
vou
como se nunca houvera estado
para o desvão gretado das paredes de outubro

deixo a tudo
menos a mim
este eu levo
na cachaça da última hora
e no espanto
que me vai assombrar pelo resto desse hoje
que não tem mais fim

30/09/19

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

SEM O CORPO

o corpo, este persiste.
eu, não.
sinto inveja dele, que existe
incondicionalmente,
assim como os mendigos e as mães.
existe em corpo, existirá em pústulas e nitratos.
existirá na terra e na flor continuada.
federá e subirá aos ares, será atmosfera e umidade.
o corpo sempre houve, e sempre existirá,
mesmo quando retornar carbono
ao ventre materno das estrelas.
já o que nele existe, que sou eu,
este não se pode dar ao luxo de não possuir condições.
eu, o inquilino do meu corpo, abro mão dele
humildemente,
pois só existo vadiando
pelos corpos de pensão
e sob as marquises dos corpos de ofício
que me cedem sombra.
existo na existência que me observa e me percebe
e na que me escala, de quando em quando,
para um carteado de corpos ou uma batalha de xadrez.
sem isso, perdoem-me,
mas existir não basta,
nem no meu eterno corpo
nem na pauta lagrimada.
amputado, vou para onde vão os feitos,
as palavras e os silêncios:
para esse nada tão indolente
que a memória-mãe trata de conduzir a um nada ainda maior
onde vivem os líquenes lodosos
das memórias órfãs e das assombrações mudas.

12/02/20