Número de sílabas (desde 11/2008)

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quarta-feira, 13 de março de 2024

SALA DE PARTO

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essa demora, essa luz
suspensas e ubíquas
essa cegueira e essa roupa
que são feitas de tudo

existem!, e essa existência
não quer, não precisa,
não permite a participação

metais acesos e lentos
fulguram retorcidos
raios penetram pelas nesgas
rasgadas pelo breve tempo

a carne, mole, permanece
os ossos, tortos, espiralam
o espírito ordena:
nasce! nasce! nasce!,
em sussurros de prece
inauditos e afásicos
no oco da catedral

a forma se prepara
para a palavra que não existe
coisas sem nome
fogem das frases
que não as querem

mas a forma se prepara
se esquece
se esvazia
até se tornar só corpo
um corpo prestes
desde sempre à espera
da última palavra
que o definirá

13/03/24

JOÃO


(Inspirado em Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, e em Construção, de Chico Buarque)

    — Ando precisado de morte, mestre Caetano.
    Começava sempre assim o fim de seu dia, quando ia ter com mestre Caetano em seu boteco, que só abria depois do Angelus. Era um dos últimos antigos, com enorme balcão de sucupira, peitoril de milhares de vidas que a noite conduzia, intermediando seus êxodos e procissões.
    Trabalhava menos por necessidade que rotina. Não sabia quem era se não estivesse em alguma “empeleita” ou fazendo algum bico. Chegava primeiro ao balcão, olhava como sempre os calendários de várias décadas, alguns, com paisagens, outros, com santos, muitos, com mulheres. O tempo era registrado com sonhos que não sabia como ter. Até tentava se imaginar através das imagens, como fazia com filmes e novelas que mestre Caetano compartilhava na tevê de tubo, de vez em quando. Para ele, as gravuras, as fotos e a tevê estavam em algum idioma que lhe era estrangeiro, vedado à sua pequena humanidade. Eram a lembrança de que aquele balcão era a fronteira além da qual, caso se aventurasse, seria preso pela estranheza, ou, por ela, morto. Costumava desfiar as lamúrias em conversa baixa, sem interlocução definida, alternando a destinação a quem transitava ou lhe parava ao lado acidentalmente. Mestre Caetano costumava lhe engendrar um arrazoado qualquer de sua experiência, e, assim, existia fixo, ancorado naquela confirmação de que vivia, de que era alguém apesar de si mesmo. Mestre Caetano aferia que ele era uma pessoa.
    — Não carece de precisar, João.
   — Por quê, não? Preciso de dinheiro, preciso de comida, preciso de roupa, de uma dose… Bote uma aí. Preciso de morte, mestre.
    — Sua ou de alguém?
    — E eu não sou alguém?
    — Então não precisa.
    — Já tenho muita, né? Essa vida sem nada, sem mim, já tá toda preenchida de morte, né isso? Hoje, tava lá, na laje do condomínio, arriando o cimento na massa, fungando o pó cinza. Tem mais cimento em mim do que naquele prédio. Olhei pra baixo, vi os carros, as pessoas, todo mundo indo e vindo de algum lugar a outro. A vida é isto, mestre: ter lugar de onde se vem e aonde se vai. O mestre sabe que não tenho o primeiro, até meu nome veio da rua. Meu barraco é só o jacaré, duas panelas, dois armadores de rede. Não tem eu na minha vida, mestre. O lugar de partida e de chegada é a pessoa, é a razão, diz quem se é. A vida é ser, mestre. Eu não sou. Então, já tenho morte de sobra neste buraco cimentado, não é?
    — É. Mas isso não é ruim não, João. Todo mundo é cheio de morte, todo mundo é vazio de si. A gente passa a vida se procurando pra se preencher, e isso é a vida. Morrer é não procurar, morrer é viver nesse buraco, sem fundo e sem corda. Tome aqui.
    — Quem vai morar naquele condomínio é vazio, mestre? Quer dizer, aquela gente anda mais, viaja, procura mais, como o senhor disse. Quem procura mais é mais morto do que eu? Ou mais vivo? E eu sou mais morto porque passo a vida construindo lugar que não é meu pra essa gente se encontrar nele? Eu sou mais morto porque não posso me procurar, mestre, e tenho de passar a vida fazendo chão e levantando parede e cavando piscina e plantando jardim pra gente que vive?
    — Sim.
    — E é por isso que não preciso de morte, mestre?
    — Sim.
    — Morte chama mais morte…
    — Morte não chama nada, João. Quem vive morre. Uns, mais, uns, menos. A vida é assim também. Uma é a falta da outra, como um casal casado há muito tempo que não sabe mais ser cada um. Não é amor, não é amizade. É uma argamassa. A construção é a gente. A gaiola, as aranhas, a malha, o esqueleto. Os tijolos. No final, o prédio. Depois, a ruína. Depois, o basculho. Depois, o alicerce. E tudo de novo, meu amigo, como esta sucupira. Isto aqui já foi semente. Esta morte desta madeira é uma morte de vera? Hoje ela é tudo que ela não era, ela era vazia disto. A vida que ela tinha era cheia desta morte. A morte que ela tem é cheia daquela vida.
    — Esperar cansa, mestre. Não saber é não ser, e não ser é morte.
    — Vida, também.
    — Que vida?
    — Vida apenas, João. Você, eu, a sucupira, os moradores do prédio. Morte, também. Tudo junto.
    — E isso é justo?
    — Só não é justo pra quem não vive. Sua vida é vazia de você, mas é vida. Você é este balcão, João. Ele não sabe quem foi, não é mais quem foi. Sabe menos ainda quem será. Mas ele é. Você é, João. Ignorar não é morrer. E quem diz que sabe mente. Ninguém sabe.
    — Nem as pessoas que fazem os calendários?
   — O tempo é como esta cachaça: entretém, embebeda, acalma, mata. É parte da vida. Tá boa? Quer mais uma?
    — Viver direito é morrer direito, né, mestre?
    — Disse melhor do que eu.
    — Então, bote outra. Vamos fazer as coisas como se deve.

13/03/24

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

CARACTERES

Gérard Dubois - Moby Dick
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eu sou Fabiano e sou Baleia
no sertão de preás gordos

sou Rebeca Buendía com seu saco de ossos
sua pele verde e olhos fosforescentes
sou José Arcadio louco atado ao castanheiro
e Úrsula diminuta na mentira de sua morte

sou Vadinho no chão do Domingo de Carnaval
sou Rozilda e seu fel de Quarta-Feira de Cinzas

sou Sancho crédulo de sua ilha
sou Quejada alucinado e só num mundo grande
grande demais

sou Ishmael lúcido entre loucos
sou Ahab inconcluso e espedaçado
pela irracionalidade branca

sou a Rosa na redoma
o baobá e o vulcão
no pequeno asteroide ao pôr do sol
esperando sem esperar
o ofício da Serpente

sou Flor, Gabriela e Dora
e o cansaço de guerra de Tereza
sou Maria do Carmo embuchada de inevitabilidades
na rede de João da Mata
e a faca de peixes de Bertoleza
libertando o próprio ventre
ante a possibilidade do horror

sou Margarida, vulgo Mocinha
pequena e escura
descansando da vida dos brancos
na pedra da fonte da estrada de Petrópolis
e a esvaziada Macabéa
preenchida por um Mercedes amarelo
na rua atravessada

sou Severino do finado Zacarias
indagando vida e morte à beira do Capibaribe
e sou Mestre Carpina
em cuja calma nasce outro Severino
que também sou eu

sou Amaro e Aleixo no porão do navio
e o punhal assassino de Crapiúna

sou a lavação dos peitos mortos de Diadorim
e a traição do torso nu de Luzia-Homem

sou o cínico Brás e seus emplastros
o inepto Bentinho em turvação
ante o mar ressaqueado de Capitolina

sou tantos, e não sou nada
nem o sentimento do mundo tenho
nunca fui o infante sadio e grimpante
nunca guardei rebanhos
nunca fui a Pasárgada
nem conheço rei algum
ou felicidade, ainda que clandestina

sou um caractere apenas
um espaço-em-branco
vasilhame que o outro mundo preenche
e que este mundo rotula e enfileira na prateleira

sou também a boca que bebe
ora no copo, ora no gargalo, ora no mar
as pessoas que por mim trafegam
e transpassam como se meu único trabalho
fosse registrá-las
e esquecê-las

esquecendo, existo
e, através de mim, existem todos

22/02/24

domingo, 18 de fevereiro de 2024

MANEJO

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a mão esquece
quem é que a traz ao pulso

esquece que tem braço 
e este, que tem torso
e este, que é casa
que deve resistir a tudo

não pode a mão
seguir-se de uma oferta
um aperto, um entrelace
se são do corpo
a carne para o soco
e o rosto para a tapa
se é no corpo
o espírito que se imola

perdões
é necessário que existam
mas nunca em prejuízo
da dor
rasgada a tratores
na terra do corpo
sob a escusa de estradas
e vias públicas

no volante, a mão esquece
quem é o condutor
que fez do nascedouro
a incerteza da partida
e, da vida, a morte
entre tráfegos e engarrafamentos

a mão de nada sabe
das sentenças que assina

18/02/24

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

JARDINZINHO ORDINÁRIO

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mandei construir um cocho
na fachada de minha casa
onde plantaria um pequeno jardim

nele, sonhei chananas, mandacarus e girassóis
e outras tantas que carrego comigo
no mais íntimo

feito o cocho, plantado o jardim,
vieram ladrões
e arrebataram o que crescia

mudei as plantas:
cravei espadas-de-ogum e um jasmineiro
e deixei o matinho vicejar
o que o asfalto e as caminhadas
não permitem

hoje, pingam jasmins na minha janela,
e me protege Ogum de todo o mal,
e a beldroega flora amarela,
e ramam outras que não sei

na frente de minha casa,
o possível sobrepujou o projetado
e, como na vida,
como em tudo,
escancarou a janela de sua lindeza
no inusitado do ordinário

permita-se o ordinário
na fachada de cada coração

01/02/24

sábado, 13 de janeiro de 2024

"THE BROWNING VERSION"

 
Mike Figgis - The Browning version
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(Para Sérgio Alencar e Paulo Mosânio Teixeira Duarte, que me ajudaram a dar serventia às palavras)


    “God, from afar, looks graciously upon a gentle master”.
    Ser um professor foi, certamente, a escolha de vida que mais me consumiu. Perde-se muito quando se entrega corretamente o espírito. Talvez para aliviar um pouco as articulações desse mesmo espírito, eu goste tanto de ver (bons) filmes sobre o magistério, sem a pieguice das superficialidades, quais sejam: o poder de transformação da sociedade, a perpetuação de valores e conhecimentos, blá-blá-blá. Não transformamos quase nada em termos sociais, efetivamente, e, se perpetuamos algo, este é, principalmente, a invariabilidade da estrutura de opressão do mundo. Eu ainda nem tinha decidido se entraria, ou não, na faculdade, menos ainda se seria professor, quando assisti à versão de 1994 de The Browning version, provavelmente o melhor de todos os filmes que vi sobre minha profissão, justo por tratar de algumas das grandes dores que, se ainda não o foram, serão vivenciadas por qualquer professor: a frustração, a obsolescência, a derrota, a subqualificação.
    A versão de 1994 (dirigida por Mike Figgis e produzida por Percy Main) é a refilmagem da de 1951 (dirigida por Anthony Asquith), a qual, por sua vez, é a adaptação da peça homônima de Terence Rattigan, de 1948. O roteiro é adaptado por Ronald Harwood sobre o livro de Rattigan, o qual é creditado como corroteirista. Harwood foi indicado ao BAFTA, e Figgis, à Palma de Ouro por esse trabalho. De antemão, peço perdão a quem quer que leia este texto pela não citação do título comum aos dois em português, dadas a tacanhice interpretativa de quem o “verteu” e a subsequente indignidade de menção. O Google pode muito bem expor essa estupidez no meu lugar. Contudo, a obra cuida rapidamente de estabelecer a que vem.
    O filme também é, de certa forma, uma testemunha das mudanças dos meados dos anos 90. O professor de Estudos Clássicos de uma escola tradicionalíssima inglesa, chamado Andrew Crocker-Harris, interpretado pelo magnífico Albert Finney (vencedor da premiação de melhor ator na Boston Society of Film Critics Awards por esse trabalho), está sendo substituído por um professor mais jovem e com uma abordagem moderna, interpretado por Julian Sands, cujas limitações interpretativas foram perfeitamente aproveitadas por Figgis em sua personagem para fazer o contraponto, o perfeito contraste à grandeza da personagem de Finney, e à deste próprio. As transformações sociais são sutil e organicamente mencionadas na obra: o início da acessibilidade geral aos computadores, o fim da perestroika, a incorporação da diversidade cultural aos Estudos Clássicos, a presença incômoda dessa mesma diversidade na própria escola, portanto, na própria elite britânica, tudo está lá. Andrew também está com problemas cardíacos, desculpa utilizada pela corpo diretor para a sua demissão, e vivencia a ruína de seu casamento com Laura (Greta Scaachi, espetacular), aproximadamente 20 anos mais nova que ele, por quem se incompatibilizou e criou aversão e que o trai com Frank Hunter (Matthew Modine), o professor de Ciências. Andrew é chamado de “Croc”, ou o “Hitler da 5ª série”, apelidos maldosos que lhe deram pelas costas os seus alunos, que têm por ele, acima de tudo, temor. Tive eu mesmo, no Ensino Médio, um grande professor de Português chamado Sérgio Alencar, o qual apelidávamos de “o carniceiro de Acaraú”. Inventávamos várias histórias sobre uma cicatriz em forma de meia-lua que trazia na ponta do queixo, e, mesmo dentro da nossa molecagem de cearenses, tínhamos-lhe grandes medo e respeito. Sérgio foi, e ainda é, precedido por Paulo Mosânio, um dos meus dois espelhos de profissional. Certamente, em vários momentos, isso me levou também a ser, em várias ocasiões, o carniceiro de tantos e tantos alunos.

 
Mike Figgis - The Browning version
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    A derrota de Andrew é a derrota de todo e qualquer professor, e estas são o ponto central, a base que me fideliza à personagem: a sua certeza vergonhosa do fracasso em ensinar e a consciência de que não fez o melhor que poderia ter feito. Andrew não entende como, nem quando, as crianças pararam de rir de suas piadas e passaram a isolá-lo em suas tentativas de lhes mostrar o que tinha de melhor, que era a paixão pelo que ensinava, assim como a fé em que a cultura, como fundamento civilizatório, tinha nele o maior responsável pela sua perpetuação. Ele sabe que falhou na sua missão e vai terminar de cumpri-la resignado, assim como se resignou diante de todas as injustiças cometidas pela esposa e pelo colegiado, que pretende culminá-las na preterição de Andrew no discurso de despedida ao corpo discente. Juntamente com ele, um professor chamado Fletcher, que é idolatrado pelos alunos pelo seu sucesso no críquete, esporte no qual é campeão, vai deixar a escola para poder competir nacionalmente. Por esse motivo, pede-se a Andrew que abra mão de sua prerrogativa de encerrar o evento em função de Fletcher, argumentando que o oposto seria um anticlímax. É a derradeira ofensa. É a morte simbólica de um mestre ante a glorificação de um ídolo, o qual, não por acaso, demonstra-se inepto fora de seu esporte.
 
 
Mike Figgis - The Browning version
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    No meio desse processo, o jovem Taplow (interpretado com uma excelência incrivelmente precoce por Ben Silverstone, com 14 anos à época), aluno de Andrew, parece ser o único que consegue ver além da sua couraça. E é aqui que o filme acerta no âmago de qualquer professor. Taplow, que pleiteava trocar os Estudos Clássicos pelas Ciências, razão pela qual tinha todos os motivos para antagonizar Andrew, é o único que se  identifica com o seu amor pelos clássicos, tanto que compra com seu próprio dinheiro uma versão de Robert Browning (daí, o título) de Agamémnon, de Ésquilo, para presenteá-lo. Andrew diz, após receber o presente e se mostrar pela primeira vez vulnerável, a ponto de desabar em prantos diante de Taplow, que aquilo valia mais que qualquer coisa que pudesse ganhar naquele momento.
    É nesse ponto que se inicia o terceiro ato do filme, o qual não vou arruinar aqui com pequenas descrições. Porém, Figgis, magistralmente, faz um jogo de clímax-anticlímax-clímax que é arrebatador. Não é novidade que toda história bem contada, em que há o reconhecimento e a ascensão após uma longa humilhação, é, de fato, garantia de sucesso de audiência. Também não é, para quem assistiu à obra, é claro, um drama com uma história original. É bem verdade que já vimos inúmeros assim, e um enredo em cujo clímax o protagonista revela suas fraquezas e recebe o devido mérito por sua humanidade chega a ser até um clichê. No entanto, Figgis conduziu o microdetalhismo da interpretação de Albert Finney e Greta Scaachi, assim como o brilho irresistível e a veracidade de Ben Silverstone, de tal maneira que tudo nesse filme é extraordinariamente inato, original, como uma canção genial dentro de um gênero ordinário, a qual, de tão singular, parece pertencer a um gênero próprio.
    The Browning version ficou décadas dentro de mim, que o procurei, sem sucesso, nas minhas garimpadas em sebos e locadoras. Encabeçava minhas listas (sim, eu as fazia, no Excel, inclusive) de filmes a serem possuídos. Nem mesmo na internet, eu o havia encontrado, até que o consegui ontem e o vi hoje, dia 12. Comecei a escrever esta crítica (ou ensaio, ou resenha, ou sei-lá) imediatamente após me reencontrar nele e com ele. Eu o vi pela primeira vez nessas sessões televisivas noturnas nas quais me refugiava ali pelos meus vinte e poucos anos, quando a angústia, o medo e a depressão me afastavam cada vez mais da vida. Ainda não era professor, e faltava muito pouco para me perder do estado de ser alguma coisa e me encontrar apenas como uma coisa, em último resumo. The Browning version, assim como algumas outras preciosidades, mantiveram comigo um diálogo que, sem exagero nenhum, me ajudaram a chegar até aqui e, de várias formas, ainda me ajudam a continuar, como as “minhas” músicas e minhas plantas, meus relicários e minhas memórias, uma coleção de mim que me suporta o reconhecimento neste mundo e em meu espelho. Hoje, após metade de minha vida sendo profissionalmente um professor, esse filme é particular e intimamente meu. Assim como os de Andrew, são os meus fracassos que legitimam as batalhas que lutei. Assim como a de Taplow, foi escrita por mim a citação com que o Agamémnon foi presenteado a Andrew: “Deus, à distância, considera graciosamente um gentil mestre”. E fui eu que o recebi.
 
 
Mike Figgis - The Browning version
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    Assistam com todo o coração.

13/01/24

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

DOIS SÓIS


Cícero R. C. Omena - Catadoras
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Existe uma grande diferença
entre o sol que me entra pela janela
que é meu
e confere cor a tudo que sua luz toca
e me diz nas retinas
da beleza de minhas plantas
e dos cabelos de minha filha

e o sol que diz nas costas
dos catadores de material reciclável
dos pedreiros sem carteira assinada
dos mendigos e abandonados
as cores da cidade
e a verdadeira aparência
do amor de deus

O primeiro chega com vento
e vaza pelas frestas do telhado
Romantiza os cantos da casa
e diz ao mandacaru no meu quintal
que já é hora de flor

O segundo chaga, punge e mata
quem não é patrão e alguns empregados
porque a maioria é semente bruta
que adia e realiza a morte
que se acostumou a chamar de vida

Dois sóis, superpostos em perspectiva
brilham num só
Menos são meus olhos que os dividem
que a injustiça deste mundo
que os conjura

Cruza a rua, além do parapeito
onde meus pequenos cactos, devidamente hidratados
fotossintetizam
e me apaziguam
o Seu Aquino, 35 anos, já avô
puxando sua caçamba feita de uma geladeira
o qual me vendera por 20 reais
um patinete velho e verde
com que presenteei meu filho

Dois pobres, ele e eu
mas cada um, nesta flora selvagem da urbe
reflete luzes diferentes
que se prismam em pequenas distorções de luz
por este horroroso vitral metropolitano
— pequena e miserável catedral provinciana
onde ainda se rezam nas missas
novenas em prol da moral
e dos bons costumes

10/12/23

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

DEIXE O DIA


Deixe o dia respirar um pouco
Que cada segundo, minuto e hora
Tiram-lhe um pouco o fôlego 
Quando não o asfixiam

Abra uma janela, uma cerveja, um abraço
E deixe o dia respirar do que não é ar
Mas sim perfume, fragrância do momento
Que você criará dentro dele:
Uma ampola, um balão
Do oxigênio que roubam todo o tempo aos instantes

Deixe o dia esticar as pernas
Quebrar a ampulheta
Enfiar-lhe os pés n'areia
Respirar do mar sem turistas
Sorrir para um cão
Reciprocamente

Deixe o dia passar
Num'avenida sem relógios
Nos semblantes sem pressa
Deixe o dia morrer no mar, antes que o Sol o mate
Menos de tédio que de saudade

Deixe o dia sobre a mesa
Deixe-o saber que está só
E que tudo está bem

Deixe o dia respirar
Desalvoroçado
Feito o mistério da moça que nada olha
Que nada sonha
Numa eternidade breve que mata o tempo
De inveja e de amor

07/12/23

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

DESENCAIXE



Todo dia, um pedaço de mim sai de casa
Vai à rua, pega ônibus, toma sol
Compra café
E se perde como aquelas peças de quebra-cabeças
Do Corcovado e do Cristo Redentor
Que minha mãe me comprou
Tirando do dinheiro reservado ao mercantil

Cento e vinte peças, todas miudinhas

Muitas mais sou eu

Muito mais me perco

A despeito de todo o desencaixe

30/11/23

terça-feira, 7 de novembro de 2023

MORTE À VALÊNCIA DA SAUDADE

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(Poeminho linguisticoso e recalcado de fim)

A Gramática determina
que a saudade é valente
Palavra de substância, de um argumento só,
o qual, preposicionado por um de,
a complementa

Já eu digo
que valente sou eu,
cujo nome, avalente e intransitivo,
nada completa

E que o que foi, indiretamente, objetificado,
que jaza! entre os tantos nomes outros
que actam apenas semânticos
nas ruminâncias da memória

Saudade não tem objeto
Saudade não se mata
nem vira livro

Saudade se organiza entre os outros abstratos inúteis
no concreto dos neurônios mais velhos,
onde não há nenhuma sintaxe possível
de complementação

Ao final, é verbete apenas,
irremissível e estrutural
que a língua professa lacônica
e — por que não? —
saudosisticamente

07/11/23