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segunda-feira, 3 de agosto de 2020

ATÉ O FIM


Não posso prestar mais
muita atenção ao que diz meu corpo.
Quase sempre, são fragmentos de fim,
entretrapos de uma bandeira derrotada pelo tempo.
No entrecortado de sua fala,
ora arquejante, ora gemedora,
estalam-me os ossos
e guincham-me as fibras sob a pele,
como se, com o seu barulho,
tentassem suplantar o sangue,
que, de sua parte, me grita:
“assoreei, meu filho!,
aqui ninguém navega mais!”
Não lhes posso dar ouvidos.
Há algo que me surge debaixo de tudo,
algo suave, congênito, febril, eterno.
Algo que tem o som que tem o sol
quando ele me jorra sombras no torrão das ruas.
Algo que me canta os sucessos dos meus mortos
que nem cheguei a conhecer ou prantear.
Algo que me veste
com a insensibilidade a mim mesmo,
com essa dormência nevrálgica,
sem a qual sou — e sempre serei —
alguma coisa sem mim.
Esse algo me diz,
sem voz nem palavra,
sem silvo nem trinado,
que meu nome é medo na boca da morte,
e que, trêmula, ela me pragueja todos os dias.
Que esta rota, onde me perco,
é a avenida principal de meu retorno a casa.
E que, seja como for,
a condenação de meu corpo
é conduzir-me nela até o fim,
depois do qual, ele, silenciado pelos vermes,
e eu, por estes desacorrentado dele,
desencadearemos de nós dois o sonho
da útil e pacífica continuidade.

03/08/20