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segunda-feira, 8 de agosto de 2022

SALA DE VISITAS

É o 12° andar de um prédio onde eu nunca moraria. Da sacada, veem-se os tetos das construções mais baixas e os perfis ladeados de toda uma complexa família de prédios seus irmãos, de gente e de fuga. Ao longe, entre um de paredes marrons e outro, de verdes, espreme-se, pintado numa ilusão de ótica, um pedaço humilíssimo de horizonte do mar, azul fugente, opaco como um loteamento desvalorizado pelo abandono.
Abaixo, no chão, outros como eu também se espremem nos desvãos da tarde. O trabalho nos divide, mas a cidade nos coletiviza pelo anonimato.
Uma retroescavadeira planta mais um edifício. Evito pensar nas suas fundações e nos mortos que elas comprimem, mas sem sucesso.
Aqui correram os tacapes que escorraçaram Pinzón. Aqui eram dunas, matas de murici e macaúbas. Aqui era Oxóssi provendo de caça as tribos. Hoje, é Vicente Leite com Canuto de Aguiar, e isso é tudo o que é.
Tento me enternecer com a companhia e o vento, que são aduladores aqui em cima. Cria-se uma sensação de regozijo e júbilo, tão reais quanto ilusórios. No entanto, sou terral, tenho nos pés, no máximo, raízes de mangue. Não posso evitar lembrar que esse vento já foi da cidade inteira, que aquele cubículo de mar se podia ver desde muito mais longe, e que, quando não, esse mesmo vento lhe ofertava o cheiro de porta em porta, vestindo com ele os caibros de carnaúba e as telhas multiformes das taipas provincianas. Era uma pobreza gloriosa e pacífica, era uma necessidade sem ausência que nos igualava em cor e aspecto, e podia-se dizer que éramos na carne um povo.
Não tenho mais ternura com esta terra, e esta gente me desorienta com seu excesso de nortes. Que já fui caboclo, cafuzo, crioulo e mameluco, mal lembro. Hoje só sou pobre e tenho de pedir licença para pisar em minha própria história,  assim como nesta sala de visitas onde bailam sabores e anfitrionatos, temporários e falsos, respectivamente, e nunca meus.

02-08/08/22