Número de sílabas (desde 11/2008)

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domingo, 17 de fevereiro de 2019

CONTINUAÇÃO

O tamanho exato do mundo eu não sei, nunca saberei
Mas o tamanho exato dele não me espanta nem engana
Porque o mundo é feito da minha mesma matéria
E se não me sei o tamanho nem nunca saberei
Sei-me, entretanto, inteiro e meu, inteiro e teu, inteiro e inteiro!

Tão inteiro que não me caibo e continuo nas coisas que olho, nas que me olham
Continuo no chão que piso e debaixo dele, entre raízes, tanajuras e vermes
No suor, que vira sal e nuvem, e chovo, e continuo no mar, que brilha azul visto da Lua
E na Lua flutuante na poça d’água que chovi

Continuo nos sons e nos silêncios
Que nada mais são que infinitas vozes que me imaginam
Que nada mais são que eu dentro dos ouvidos que emprenhei
E todas as frases que nem me sabem, mas me são misturado a tudo e quanto

Continuo em minha mulher e meus filhos e em meus pais que lhes conto
Carrego minha vida como água nas mãos
E morro regando meu rastro
Continuo mesmo descontínuo
Porque sou da mesma matéria do mundo, e o mundo é em toda parte
Diferente e outro, dentro de si e além

17/02/19

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

METASSONETO PRIMAVERIL

Ora-pro-nóbis

Sem forma de estar na carne presente
A elipse sente a hora encarnada
Tatuada na pele, e o corpo sente
A semente da ausência e a da chegada

A palavra que falta é intermitente
E a iminente estação é anunciada
O verso vibra a voz, e a mão pressente
A chuva que o verão tinha guardada

Lacuna e lagoa encheu a enchente
De poesia e prosa agora inchada
A terra é prenhe de estar fluente

Na língua morta, já ressuscitada
Donde letras virgens viçam cadentes
Na orgia floral versificada

13/02/19

LINGUAJOSIDADES

     Tem mistério suficiente na língua do povo pra encher um ror de gramática. O espaço entre o que se diz, o que se imagina que se diz, o que se imagina que o outro pensa sobre o que se diz, o que se imagina de si enquanto diz… Haja três-pontinhos! “Avia!”, dizia minha mãe me apressando. Chamar “avia” de interjeição é chamar minha mãe de organismo pluricelular. Ali tinha uma interseção de tudo que é materno, portanto causado por mim, filho. Tinha medo, raiva, afeto, dúvida, educação. Tinha o que só nós, na nossa idiossincrasia linguística, sabíamos. Chamar o “de’stá” cearense de “deixa estar” sincopado-apocopado é usar um microscópio pra olhar a Lua. Temos quase um dialeto de palavras-ônibus, uma frota, uma malha viária apinhada de quer-dizeres, de espaços abertos a interpretações imediatas e certeiras. Só a intenção do pingo já é um i.
     Numa viagem de acampamento há umas décadas, aconteceu uma coisa interessante. Um pescador com quem fizemos amizade, chamado Cai-Bala, tava indo pescar camarão no mangue e levava um jererê, como fui acostumado desde criança a chamar. Eu pescava com meu pai, e era assim que se chamava aquele instrumento no nosso universo linguístico. Pois bem!, bastou que eu usasse o timbre fechado nas vogais pra que o Cai-Bala sapecasse de volta: “é jereré, pau na roda!” Pronto! Bastou aquilo pra que tudo que eu sabia sobre pescaria (que era menos que o que ele sabia, óbvio) virasse riso escarnecedor. O pior é que o Houaiss registra as duas formas, mas quem quer saber! Lá era aquilo, e pronto! “Ora, mas tá!”, como diria meu pai, o dono da palavra é o povo, é quem faz dela ferramenta.
     É difícil o ofício de ensinar língua portuguesa. É como advogar em defesa de uma ré confessa.
     — Ela é linda, é limpinha, cheira bem… mas tem esqueletos no armário.
     Alvíssaras (eita, piula!) que os linguistas incrementaram as gramáticas com as variações linguísticas há algum tempo já, caso contrário eu seria um terrorista gramatical, sempre sabotando a fixidez hipócrita das regras. Entretanto, é linda sim, ainda que nada limpinha, nossa língua, e é tudo que temos como fator de integração nos extramuros das variações. É gostoso e desforrado ensinar “isso sim, e isso também”, em vez do maniqueísmo da Tia Amélia (que Deus a tenha, e, se ainda não tiver, que a tenha em breve), segundo a qual eu era burro por achar, aos onze anos, que substantivo era uma coisa. Coisaram bastante com o ensino no início dos anos 80, era a ditadura deixando de coisar, mas ainda querendo, era a Educação Moral e Cívica e a OSPB coisando a História, a Filosofia e a Sociologia, e era a Tia Amélia coisificando os alunos em coisa boa e coisa ruim (eu não gostava muito de fazer parte do primeiro grupo). Acho que era falta de coisar da parte dela mesmo, além do racismo cintilando por trás daqueles olhos azuis.
     Acho que a linguagem é muito mais do que uma roupa que se veste conforme a ocasião, como costumo simplificar aos meus alunos. A linguagem é uma grande parte da cadeia do DNA social de um povo mutante e adaptável, melhor exemplo antropológico do darwinismo. Não se muda de roupa linguística; muda-se de pele, de estrutura óssea, de espécie, de estado físico da matéria. E não se enganem, não!: de mansa, não tem nem o rastro. É subversiva até o talo. Ridiculariza-se a todo e quanto, desdiz-se, reinventa-se, dissimula-se, envenena-se, renasce. Não é à toa que é substantivo feminino, abstrato e comum, comum como coisa, palavra linda que a Tia Amélia, sem querer ser, era, mas de um jeito tão feio que era mais coisado que cantiga de anum.

13/02/19

GEOMETRIA CRUA

O esquadro perpendicula e tangencia linhas
A partir de outra em gradação perfeita
Todas retas e perfeitas
Mas, quando as vejo, não parecem verter…
Sequer as sinto arestas!…
Sinto os traços como acasos geométricos
Ou vetores cujas fontes se ocultaram

Nesta vida espiralada e vertiginosa
De helicoides velocíssimas
A curva é uma ilusão de harmonia parabólica
Apenas a sensação do desvio
Causada pela eterna pressa em destinar-se

Os ângulos nos definem
Em rabiscos que se cruzam e se ignoram mutuamente

13/02/19

CÓPIA MANUAL

O mimeógrafo deixa nos dedos a violeta
A azulácea pétala orbicular flamejante de óbitos
Descortinados na folha pálida de copo-de-leite
Repetidas vezes encharcada de oblíquas formas
E desorientados ornatos
Que morrerão amassados em poucas horas
Como as flores esmagadas pelo féretro do tempo.
Como nada, como este poema
Que volve à palavra em busca de si
Ruidosamente, girando-a, girando-a, girando-a…
Tinta que nunca mais sairá dos dedos
Mas trespassara etílica a alma branca do papel de ofício.

13/02/19

METONÍMIA POBRE

Queria escrever com o coração, mas lhe faltam mãos.
Já as mãos sobejam calos pela falta de cordialidade.
E os laços imaginários entre a tinta e o papel
Desfizeram-se no mata-borrão da vida comum.
Aqui sobra só o desejo de que o espírito ainda esteja
Onde e como de costume:
Além, chamante, incrédulo
Armado de porrete e ódio
Do ridículo de sua mais nova caricatura.

13/02/19