Número de sílabas (desde 11/2008)

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segunda-feira, 20 de julho de 2020

REUNIFICAÇÃO


(Ao meu querido Rafael Sousa, que me instigou a escrevê-lo.)

eu me desaparelhei
como uma flor que se despetala
— um malmequer desses da vida.

hoje, nem sou nem tenho.
perdi todos nesta última década,
meus dez últimos anos de amor,
e sê-lo esqueceu-me.

o vento curou no rastro
e me achou o estame hirto, seco,
a face voltada para o muro,
uma sombra sob a sombra.

no caminho, apagou-me as pegadas,
e parece que nasci aqui.

não importa.

ao tocar-me, voejou-me,
e amanhã serei vento também,
um movimento sem começo e sem fim,
que tem uma tendência linda,
indiferente e justa
à reunificação.

20/07/20

terça-feira, 14 de julho de 2020

JUÍZO


(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem)

Não são a ciência
Nem o amor
Muito menos a chama da revolução
Que irão salvar o mundo

A beleza
Somente essa estúpida e inútil fraqueza da percepção
Poderá comover a alma dos homens dentro de seus corpos
Onde ainda, bem distante
Mas ainda
Rescende à terra molhada
A criança que eles mataram

14/07/20

sexta-feira, 10 de julho de 2020

SÓIDÃO DI CORPISTRÃIO

um dia mi dissero
queu miricia morrê
suzin

tumara mermo
quiá Dona Morte mi pegue num dia desse
di sóidão gostosa
merecedô dimin, vitorioso,
cheide paz

— púxuma cadera
tem café quentin
i muita istora pacontá

mar num pricisa não
quela mi cunhece
sab dimin faz tempo, tempo…
nunca li foi nem li fiz
segredo
di queu num sô daqui
i qui meu corpistrãio perambulô
si raspano
nu amô alhei
sem si misturá

mereço não, Dona Maria, mereço não
a vida diagunia
di só tê serventia
si fô cumeno nas mão
mereço mermo sô eu i mĩa sóidão
qui mi há di sê mĩa
nem qui seja oto dia
mais palá quiu sei não

09/07/20

quinta-feira, 9 de julho de 2020

SÃO MIGUEL ARCANJO

(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)


(Para Miguel Otávio, filho de Dona Mirtes, morto em Recife em junho de 2020 pela cor de sua pele, que o havia condenado à morte muito antes dos nove andares de sua queda, pela cor de seus assassinos.)

    Miguel também é o nome do meu filho, um ano mais novo que o Miguel Otávio, filho da Dona Mirtes. O meu foi batizado em memória de Don Quijote, o meu cavaleiro. O de Dona Mirtes, eu não sei, mas suponho que tenha sido em honra de São Miguel Arcanjo. Em ambos, a pureza essencial humana, que se vai perdendo com o tempo, infelizmente. A de Miguel Otávio, não. Esta foi usada contra ele. Não só porque tinha cinco anos. Mas principalmente porque tinha cinco anos, era negro, filho da empregada doméstica da casa da mulher branca, mulher do homem branco, homem branco político do interior do Nordeste. Tudo isso junto dava ao Miguel Otávio a mesma pureza de um filhote de gato atropelado na pista: a pureza de quem vai sendo inúmeras vezes misturado ao asfalto pela cidade indiferente. Miguel Otávio teve uma morte negra: foi assimilado.
    Pranteou-se por ele por uns instantes — um pouco mais do que pelos gatinhos —, e, depois, estatistificou-se: só mais um. Mais um entre tantos, negros como o asfalto, invisíveis como o asfalto, pavimentando a cidade, que não pode parar, não pode! Não pode parar o ar sob seu corpo, impedindo sua queda, não pode parar o sangue no coração da patroa branca, sincopando-o, assustando-a a olhar para ele, percebê-lo, cuidar-lhe a vida.
    A cidade é movida a sangue negro, moído junto aos músculos, aos ossos, às vísceras e aos nomes. Só as palavras ficam. São os milhões de Souzas, como o meu Miguel e o de Dona Mirtes. São os Silvas, os Santos, os Ferreiras. São palavras evitadas, não têm grife, não têm pedigree. Mas nós voamos, com certeza. Nossas asas nos sustentam e nos elevam como povo e como ideia. Miguel, suas asas não foram cortadas, não puderam fazê-lo. Você voa entre nós como uma canção, como um poema de liberdade, tão puro, tão lindo que comoveria todos os mortos à memória no remorso dos vivos.
    Quem escreve isto é um pai nordestino, caboclo filho de caboclos e sertanejos, armado de lança e escudo, face a face com os moinhos. Voa, meu anjo.

09/07/20

O AMOR

tem uma dor aqui
uma angústia
a desesperação de uma fragilidade
recém-nascida no sal crispante do lajedo

tem uma dor aqui
que me chama dentro dela
e o meu nome é grito e sussurro
e a única palavra que ela conhece

meu deus, como eu queria
saber falar a língua dela!

tem uma dor aqui
que quer doer só para mim
e meu coração se enche todo
de amor por ela

do outro lado, que importa o outro lado?
não importa se ele existe
tem uma dor aqui
que é uma casa de mil quartos
de mil jardins
e de cornucópias na despensa

e só sabe dizer meu nome, tadinha

08/07/20

sexta-feira, 3 de julho de 2020

POLIGLOTA DE ALMAS


    Ler é ouvir de si mesmo as palavras de todos os outros e tornar-se daí um poliglota de almas.
    Não ler é trocar todas as vozes do mundo pelos gemidos dos fantasmas da casa assombrada pelo próprio silêncio.
    Ler não é só decodificar os signos, tampouco um bom leitor o é pela quantidade ou pela diversidade de temas, gêneros ou idiomas a que se dedica.
    Ler de verdade é ser generoso com o universo alheio a ponto de partilhar do que é oferecido, mesmo completamente diferente, mesmo que choque, mesmo que leve a conflitos e impasses. Ler não é apenas “colher” do texto, mas sim trabalhar a terra, semeá-la, enfrentar o estio e as águas, matar as pragas, para, somente assim, compreender o que se colhe e, por conseguinte, o valor do alimento que os dois, autor e leitor, levaram à mesa.
    Dessa forma, um bom leitor não pode ser como um glutão, guiado apenas pelo prazer da mesa posta. Muito pelo contrário. Um bom leitor é aquele que senta à margem do rio sob o sol, enfia os dedos na terra imunda de vida e compreende assim, totalmente sensorial, o milagre na semente.

03/07/20

SALVAGE

(Clique na foto para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

a calma e o silêncio
com que o fundo do mar
oxida o corpo férreo dos navios de guerra
comove as bombas sepultadas em seu ventre
— titãs que nunca nascerão.
elas sabem melhor que o mar
o valor daquela finita eternidade.
nas depressões abissais
é que as explosões, dentro do seu impossível,
descobrem a sua razão de ser:
a aniquilação dosada a conta-gotas
comprimida pela escuridão absoluta do mundo
é o perdão terminal dos deuses da guerra.

01/07/20

quinta-feira, 2 de julho de 2020

POEMA CRÔNICO DE DESAMOR

Dói muito mais desamar.
Há coisas que doem, como derramar sal nas chagas ou enterrar os mortos.
Desamar não é nada disso.
Tampouco, lavrar a terra nova depois da fazenda incinerada.
Muito menos, conjurar nuvens que renasçam essa terra.
Desamar não é renascer.
Não é um processo de cura.
Não é ajoelhar-se ante o deus dos tolos, condescendente e perdulário de perdões mal ajuizados.
Não é fazer as pazes com o eu-menino que foi violentado durante o mau amor.
Desamar requer muito mais do que a esperança cândida das madalenas arrependidas.
Desamar não é arrepender-se.
No eito da vida, das estórias dentro da história, jazem nas valas abertas de beira de estrada todos os instantes que a memória cuida de tecer, fiar e refiar em tecidos quase corpóreos, de tão tangíveis que são em sua malha.
Eles são as mortalhas com que se vela o amor morto, e carpida-se, e destroça-se a alma dentro dos ossos que se remoem em desesperação.
Isto ainda não é desamar.
Desamar não é autoflagelação.
Desamar dói muito mais.
Mais que o ciúme e a injustiça, que as injúrias e as humilhações.
Dói muito mais que a simplificação medíocre que é o apodrecer silente na alucinação da rotina que não se escolheu, porém se arrasta bovinamente em carroças de madeira rangentes num sertão sem horizontes.
Infinitamente mais.
Desamar viola todas as leis naturais, viola Deus e o Inferno, posto que, de ambos, ignora os dogmas e as maldições, sendo-lhe inócuo tudo isso.

Desamar é o retrocesso do que não tem retorno.
E, nesse estraçalhar impossível de engrenagens impossíveis, reinventa a máquina, recodifica os protocolos, oprime com o peso absoluto da invariabilidade a explosão do amor, até que ela se reconfigure em combustível; e a chama vulcânica da paixão, em nada, como se nada nunca houvera sido.
Desamar exige mais que a morte, visto que esta traz apenas repouso e transformação.
Depois dela, o mistério.
Desamar é mais que a morte.
Desamar é matar todos os mistérios na gênese, inexistindo-os sob todas as análises.
Tudo que concerne à vida e às amálgamas sensoriais que proliferam como ondas entre os corpos, tudo que é sentimento e intuição, tudo que edifica a casa em que o amor se torna, simplesmente, inexiste.
E inexistir não é esquecer.
Não é obliterar.
Inexistir é alterar o fluxo natural do tempo, coagindo-o a uma progressão instantânea ao seu próprio reverso até chegar à sua origem e, ali, atar-lhe novamente o fio e maculá-lo tão intimamente que ele próprio não terá nunca existido antes daquele ponto.
Desamar é forçar a inexistência do amor.
E, depois disso, não há mais o que falar.

02/07/20