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quinta-feira, 9 de julho de 2020

SÃO MIGUEL ARCANJO

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(Para Miguel Otávio, filho de Dona Mirtes, morto em Recife em junho de 2020 pela cor de sua pele, que o havia condenado à morte muito antes dos nove andares de sua queda, pela cor de seus assassinos.)

    Miguel também é o nome do meu filho, um ano mais novo que o Miguel Otávio, filho da Dona Mirtes. O meu foi batizado em memória de Don Quijote, o meu cavaleiro. O de Dona Mirtes, eu não sei, mas suponho que tenha sido em honra de São Miguel Arcanjo. Em ambos, a pureza essencial humana, que se vai perdendo com o tempo, infelizmente. A de Miguel Otávio, não. Esta foi usada contra ele. Não só porque tinha cinco anos. Mas principalmente porque tinha cinco anos, era negro, filho da empregada doméstica da casa da mulher branca, mulher do homem branco, homem branco político do interior do Nordeste. Tudo isso junto dava ao Miguel Otávio a mesma pureza de um filhote de gato atropelado na pista: a pureza de quem vai sendo inúmeras vezes misturado ao asfalto pela cidade indiferente. Miguel Otávio teve uma morte negra: foi assimilado.
    Pranteou-se por ele por uns instantes — um pouco mais do que pelos gatinhos —, e, depois, estatistificou-se: só mais um. Mais um entre tantos, negros como o asfalto, invisíveis como o asfalto, pavimentando a cidade, que não pode parar, não pode! Não pode parar o ar sob seu corpo, impedindo sua queda, não pode parar o sangue no coração da patroa branca, sincopando-o, assustando-a a olhar para ele, percebê-lo, cuidar-lhe a vida.
    A cidade é movida a sangue negro, moído junto aos músculos, aos ossos, às vísceras e aos nomes. Só as palavras ficam. São os milhões de Souzas, como o meu Miguel e o de Dona Mirtes. São os Silvas, os Santos, os Ferreiras. São palavras evitadas, não têm grife, não têm pedigree. Mas nós voamos, com certeza. Nossas asas nos sustentam e nos elevam como povo e como ideia. Miguel, suas asas não foram cortadas, não puderam fazê-lo. Você voa entre nós como uma canção, como um poema de liberdade, tão puro, tão lindo que comoveria todos os mortos à memória no remorso dos vivos.
    Quem escreve isto é um pai nordestino, caboclo filho de caboclos e sertanejos, armado de lança e escudo, face a face com os moinhos. Voa, meu anjo.

09/07/20

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