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quinta-feira, 2 de julho de 2020

POEMA CRÔNICO DE DESAMOR

Dói muito mais desamar.
Há coisas que doem, como derramar sal nas chagas ou enterrar os mortos.
Desamar não é nada disso.
Tampouco, lavrar a terra nova depois da fazenda incinerada.
Muito menos, conjurar nuvens que renasçam essa terra.
Desamar não é renascer.
Não é um processo de cura.
Não é ajoelhar-se ante o deus dos tolos, condescendente e perdulário de perdões mal ajuizados.
Não é fazer as pazes com o eu-menino que foi violentado durante o mau amor.
Desamar requer muito mais do que a esperança cândida das madalenas arrependidas.
Desamar não é arrepender-se.
No eito da vida, das estórias dentro da história, jazem nas valas abertas de beira de estrada todos os instantes que a memória cuida de tecer, fiar e refiar em tecidos quase corpóreos, de tão tangíveis que são em sua malha.
Eles são as mortalhas com que se vela o amor morto, e carpida-se, e destroça-se a alma dentro dos ossos que se remoem em desesperação.
Isto ainda não é desamar.
Desamar não é autoflagelação.
Desamar dói muito mais.
Mais que o ciúme e a injustiça, que as injúrias e as humilhações.
Dói muito mais que a simplificação medíocre que é o apodrecer silente na alucinação da rotina que não se escolheu, porém se arrasta bovinamente em carroças de madeira rangentes num sertão sem horizontes.
Infinitamente mais.
Desamar viola todas as leis naturais, viola Deus e o Inferno, posto que, de ambos, ignora os dogmas e as maldições, sendo-lhe inócuo tudo isso.

Desamar é o retrocesso do que não tem retorno.
E, nesse estraçalhar impossível de engrenagens impossíveis, reinventa a máquina, recodifica os protocolos, oprime com o peso absoluto da invariabilidade a explosão do amor, até que ela se reconfigure em combustível; e a chama vulcânica da paixão, em nada, como se nada nunca houvera sido.
Desamar exige mais que a morte, visto que esta traz apenas repouso e transformação.
Depois dela, o mistério.
Desamar é mais que a morte.
Desamar é matar todos os mistérios na gênese, inexistindo-os sob todas as análises.
Tudo que concerne à vida e às amálgamas sensoriais que proliferam como ondas entre os corpos, tudo que é sentimento e intuição, tudo que edifica a casa em que o amor se torna, simplesmente, inexiste.
E inexistir não é esquecer.
Não é obliterar.
Inexistir é alterar o fluxo natural do tempo, coagindo-o a uma progressão instantânea ao seu próprio reverso até chegar à sua origem e, ali, atar-lhe novamente o fio e maculá-lo tão intimamente que ele próprio não terá nunca existido antes daquele ponto.
Desamar é forçar a inexistência do amor.
E, depois disso, não há mais o que falar.

02/07/20

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