Número de sílabas (desde 11/2008)

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quinta-feira, 24 de novembro de 2016

TALITA


(Para minha esposa, minha vida, minha estrada e meu destino)

Foi na franja dos teus olhos
que me arderam nus e descarados
— além da face —
que te reconheci:
já te havia visto por aí, indecifrável,
oculta sob outras peles
na forma de um sangue que era só meu,
mas corria pelo ar,
batendo de meu coração as asas vermelhas.
Era um olhar de lança, de onça,
a parda morenice clara,
a caçadora vestida de caça,
à espreita, de esguelha, à espera de mim.

Eu, que te tanto construí,
era um menino perdido num labirinto de mármore:
tu, de braços langues e firmes,
sem pressa, sem pudor, sem medidas.
Nunca mais me achei os pedaços
que fiz questão de perder.
Eu era leve, e tu, celeste.

De ti, nascemos meu filho e eu:
ele, para fora; eu, para dentro.

Tu, que pariste a Flor e a Luz,
deste-lhes o cavaleiro, o pequeno homem
que nasceu sério e sozinho como o pai.
Tu me nasceste também.
Dentro de tua escuridão vermelha,
entendi os mistérios que me afastaram da vida
e que a mim a deram de volta,
macia, feroz, uma ilha vulcânica num mar de ondas verdes.
Contigo, aprendi a dormir e acordar,
a respirar, a caminhar sobre as brasas.
Tornei-me discípulo de uma religião sem mestre,
cuja deusa é a mim que cultua.

Sou teu. Sou tão teu que não me pertenço mais.
Tampouco, eu me quero.
Sou porque me fizeste.
Por ti, vida e morte, deuses e homens,
nada me importa:
se vivo, é porque teu coração bate;
por ele, bate o meu em Deus e no mundo
sem piedade.

Eu te amo, minha Mulher.
Sabias que eu não sabia de ti
o tanto que amava?
Venho-te descobrindo, desbravando,
percorrendo
e, quanto mais campeio, mais és terra, rios, serras, vales.
O labirinto de ti hoje é meu país e minha caverna,
onde, às margens da fogueira, acendo os olhos à memória-viva,
chama que renovou a terra e fez a vida renascer.

Tu, que tanto pedes,
mal suspeitas quanto tens…
Tens um homem.
Quantas poderão dizê-lo?
Quem te poderá tirá-lo?
Como poderás perdê-lo
se ele és tu, de tão teu que é?
Se notares, entenderás:
estou onde estiveres,
sou onde és,
vivo em ti
numa casa de longe, feita de vento,
espalhada
e cheia de mim.

Fortaleza, Padaria Pão&Café, 22/11/16, 18h42min

quinta-feira, 9 de junho de 2016

HISTO

(Clique na imagem para ampliá-la e no nome do autor, para acessar sua página)

(Para Miguel Hermano, meu filho, que, em meus sonhos, me sonhou)

 
Não demorei tanto tempo para escrever.
Venho escrevendo.
Sem tinta, papel, teclado, bits, impulsos mecânicos nem elétricos.
Venho escrevendo com meu corpo, minhas mãos, com minhas reações químicas,
Meus passos e meu cansaço, minha tão alterada pulsação,
Venho escrevendo.
Um romance.
Uma estória, uma historieta, uma estorietinha, porém um histo.
Um isto com agá: histo!
Histo, aportuguesamento meu do morfema grego histós,
Porque é histo que quero que seja: o que for, vertical.
Lagos são horizontais em sua placidez, e mesmo o mar, em suas revoltas.
A chuva, meu filho, a chuva é vertical!
Uma chuva de levitação, uma chuva que chova de volta às nuvens o mar que me fizeram.
Talvez venha escrevendo como quem acumula.
As letras atulhando-se, palavras potencializando-se em diques,
Um inchar-se de verbetes esperando a ascensão.
Devagarzinho, gotas e imensos amorfos líquidos efluindo-se baixinho,
Mais confessos que infensos, em direção às alturas.
Minha estorietinha, que vem de tão longe, galgou suas primeiras palavrinhas
Desde há muito, contando-se, contando-se…
Enumerando-se.
Meu romance vai muito bem, obrigado.
Seu primeiro tomo sai dentro de três semanas.
O resto, dizem, escreve-se sozinho.
Sozinho, sempre; sozinho, nunca!
A água, meu filho, é incontável.

09/06/16

quinta-feira, 28 de abril de 2016

DIÁLOGOS I

I
— Escrever nunca foi tão difícil.
— Por quê? Nunca é uma palavra assim tão inoperável?

II
— Desde quando você é assim?
— Sou novo nisso. De sua pergunta pra cá, tem uns três segundos.

III
— Não acho justo isso de aceitar mistérios. Somos desbravadores, vivemos em função das revelações.
— Eu, tampouco. Agora me diga: o que farei contigo de agora em diante?

28/04/16

domingo, 27 de março de 2016

AMOR

Acho que amo melhor de longe.
De perto, a mulher real atrapalha a imaginada.
Amar direito me parece ser possível
apenas em quadros, músicas e poemas,
lugares onde a vida não nos alcança e somos amorfos,
unívocos em nossas constantes transformações.

Amar não cabe nem no corpo nem na palavra.
É muito para sílabas, ainda que caiba na vogal
de um grito
ou de um gemido.

27/03/16

CANTEIRO DE OBRAS

Huub Keulers - Old Tools
(Clique na imagem para ampliá-la e no nome do artista, para acessar sua página) 

Tentar escrever com os sentidos desatentos ao que é interno,
ao que só pode ser transcrito por meio de um estado isolado, insular,
clandestino,
ilegal no que diz respeito às relações humanas,
é apelar para a memória muscular do espírito
e esperar que ele vença a camisa de força do cimento da razão.

Para o caso de ser frustrado pela solidez do jazigo,
escrevo com marretas e pás,
ainda que me sangrem mãos e palavras
e que o braile resultante dos golpes seja o que grite no papel.

Antes o grito tátil que uma mudez mumificada.

27/03/16

O TEMPO DE AMAR

Rakotz Brücke, Alemanha
(Clique na imagem para ampliá-la)

Se eu tivesse todo o tempo de amar
E se amar me fosse dado,
Não amaria.
Amar não é pra quem tem tempo pra amar.
Amar é coisa tão marginal na vida
Que quem ama tem de roubar do seu tempo de vida
O tempo de amar
E sair metendo o pé na carreira
Com o coração pinotando de medo e euforia
E o ser amado debaixo do braço.

Amar não é pra gente limpinha de pezinho rosa
Nem pras clausuras dos cleros do Altíssimo.
Não amam quem nunca soube o que é chafurdar na lama
Da incompreensão e do ciúme
Nem os que simplesmente se entregam em voos suicidas.

Amar é não saber sequer o que é amar
E amar escondido, com medo de que alguém lhe diga
Que amar é outra coisa.
Amar não é outra coisa nem coisa nenhuma: é ponte entre nada e lugar nenhum
Sobre um rio de almas penadas.

29/12/15