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quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

CARACTERES

Gérard Dubois - Moby Dick
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eu sou Fabiano e sou Baleia
no sertão de preás gordos

sou Rebeca Buendía com seu saco de ossos
sua pele verde e olhos fosforescentes
sou José Arcadio louco atado ao castanheiro
e Úrsula diminuta na mentira de sua morte

sou Vadinho no chão do Domingo de Carnaval
sou Rozilda e seu fel de Quarta-Feira de Cinzas

sou Sancho crédulo de sua ilha
sou Quejada alucinado e só num mundo grande
grande demais

sou Ishmael lúcido entre loucos
sou Ahab inconcluso e espedaçado
pela irracionalidade branca

sou a Rosa na redoma
o baobá e o vulcão
no pequeno asteroide ao pôr do sol
esperando sem esperar
o ofício da Serpente

sou Flor, Gabriela e Dora
e o cansaço de guerra de Tereza
sou Maria do Carmo embuchada de inevitabilidades
na rede de João da Mata
e a faca de peixes de Bertoleza
libertando o próprio ventre
ante a possibilidade do horror

sou Margarida, vulgo Mocinha
pequena e escura
descansando da vida dos brancos
na pedra da fonte da estrada de Petrópolis
e a esvaziada Macabéa
preenchida por um Mercedes amarelo
na rua atravessada

sou Severino do finado Zacarias
indagando vida e morte à beira do Capibaribe
e sou Mestre Carpina
em cuja calma nasce outro Severino
que também sou eu

sou Amaro e Aleixo no porão do navio
e o punhal assassino de Crapiúna

sou a lavação dos peitos mortos de Diadorim
e a traição do torso nu de Luzia-Homem

sou o cínico Brás e seus emplastros
o inepto Bentinho em turvação
ante o mar ressaqueado de Capitolina

sou tantos, e não sou nada
nem o sentimento do mundo tenho
nunca fui o infante sadio e grimpante
nunca guardei rebanhos
nunca fui a Pasárgada
nem conheço rei algum
ou felicidade, ainda que clandestina

sou um caractere apenas
um espaço-em-branco
vasilhame que o outro mundo preenche
e que este mundo rotula e enfileira na prateleira

sou também a boca que bebe
ora no copo, ora no gargalo, ora no mar
as pessoas que por mim trafegam
e transpassam como se meu único trabalho
fosse registrá-las
e esquecê-las

esquecendo, existo
e, através de mim, existem todos

22/02/24

domingo, 18 de fevereiro de 2024

MANEJO

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a mão esquece
quem é que a traz ao pulso

esquece que tem braço 
e este, que tem torso
e este, que é casa
que deve resistir a tudo

não pode a mão
seguir-se de uma oferta
um aperto, um entrelace
se são do corpo
a carne para o soco
e o rosto para a tapa
se é no corpo
o espírito que se imola

perdões
é necessário que existam
mas nunca em prejuízo
da dor
rasgada a tratores
na terra do corpo
sob a escusa de estradas
e vias públicas

no volante, a mão esquece
quem é o condutor
que fez do nascedouro
a incerteza da partida
e, da vida, a morte
entre tráfegos e engarrafamentos

a mão de nada sabe
das sentenças que assina

18/02/24

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

JARDINZINHO ORDINÁRIO

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mandei construir um cocho
na fachada de minha casa
onde plantaria um pequeno jardim

nele, sonhei chananas, mandacarus e girassóis
e outras tantas que carrego comigo
no mais íntimo

feito o cocho, plantado o jardim,
vieram ladrões
e arrebataram o que crescia

mudei as plantas:
cravei espadas-de-ogum e um jasmineiro
e deixei o matinho vicejar
o que o asfalto e as caminhadas
não permitem

hoje, pingam jasmins na minha janela,
e me protege Ogum de todo o mal,
e a beldroega flora amarela,
e ramam outras que não sei

na frente de minha casa,
o possível sobrepujou o projetado
e, como na vida,
como em tudo,
escancarou a janela de sua lindeza
no inusitado do ordinário

permita-se o ordinário
na fachada de cada coração

01/02/24