Número de sílabas (desde 11/2008)

counter

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

DESDE SEMPRE


Quando nasci, meu corpo me bastava.
Era meu país e minha fronteira.
Cresci, e meus limites me exportaram
— imigrei ilegalmente para muitas terras,
donde eu mesmo me expulsei.
Com a idade, entendi que esta sensação
de não caber
tão bem me cabia que virei um expatriado sem bandeiras,
um retirante sem sertão.
Mal sabia eu que essa estrada que sempre se me abria
era nada mais que o maior pedaço de mim
que deixou para nascer depois,
uma voz de que me descobri eco,
a corda cuja vibração me soou.
Para onde vou agora, finalmente, ficou claro.
Desde sempre, meu amor, eu te quis
e te montei célula a célula num passado-futuro que agora está aqui.
Tu és mais que pode dizer o meu sangue.
Quando te mexeste, eu me assustei;
quando teu forte coração ribombou na sala escura, eu sorri.
Quando te vi em preto e branco, como num filme antigo, mudo,
eu me acalmei.
Não tenho um mundo grande para te dar como a mim me deram.
Tampouco, a força de quem me fez.
Mas o que tenho, filhinho, dentro deste coração grosso,
posto nestas mãos fortes,
é o homem que preparei para ti,
para tomar da tua mão e te levar para o que fores.
Eu sou a tua estrada, Miguel Hermano, calçada pedra a pedra
pelas tuas mãozinhas, que ainda nem nasceram.
O destino — dirão — é uma incógnita.
Porém, o teu é ser feliz,
e isto, meu filho, quem diz sou eu, o teu pai.

28/12/15

domingo, 6 de dezembro de 2015

É UMA NOITE QUENTE

É uma noite quente, e tem sido quente por toda parte.
Um ar salgado se precipita narina adentro
Como se eu respirasse um mar que me afogasse
E me mantivesse vivo ao mesmo tempo.
A noite é grande.
Meu corpo parece estar incrustado nela,
Engastado como uma pedra velha numa coroa de lata
Que já me distinguiu entre os homens que imaginava.
Depois de haver reinado, colhi meu corpo do chão da casa
E crucifiquei-o no cetro com que benzi em meu próprio nome
A religião que professei.
Mas chega de liturgias!
Não há nada de sagrado em funerais.
Deixem que o féretro leve o que não é mais útil à ilusão
De que a vida é algo mais.
A vida é só esta noite quente e grande,
Dentro da qual resto e respiro um mar
Que me afoga e me nutre
Sem que haja pacto algum com a manhã que se aproxima.
Vejo pessoas todos os dias
Engavetadas dentro de ônibus, carros, compartimentos móveis,
Indo e vindo pelas prateleiras da cidade.
Em seus olhos, procuro como se eu mesmo tivesse perdido
A faísca da divindade essencial dentro dos homens.
Olhando para mim, estatela-se como um corpo caído no chão de um edifício,
Como um pombo abatido por um fio elétrico,
A pergunta:
— Quem te convidou?

06/12/15