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quinta-feira, 26 de maio de 2022

VERANIA

(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a sua página de origem.)
 
a sombra tem cheiro de passos.
a calçada, atropelada,
embioca aos trambolhões numa ladeira
que tudo leva, meu Deus:

música, alma e cidade,
tudo despenca desimaginado
na correnteza empoeirada da rua,
que dá no mar.

a concha no ouvido me diz dos carros,
dos ônibus e caminhões.
na terra, mais gente que areia
é marulhada pela brisa que lhe espalha
o sal e as cinzas
pelo calçadão.

desconecta-se a orla
do mar que a produz.
muita gente, muita gente,
muitos muitos entulhados
no basculho da restinga urbana,
que incha
e avança ferozmente.

no céu, um domingo epitelial;
mal sabe o Sol, que não nasceu ontem,
do fiasco da vida de seus raios.

quem sabe, à noite,
a rua bêbada suba a maré
e permita que a fauna urbana
— a verdadeira —
retome a posse da vida
no vaivém indiferente e sanitário das hordas.

25-26/05/22

terça-feira, 17 de maio de 2022

SEMEADURA


eu, um velho anacoluto,
que sou letra sincopada
da palavra que refuto,
encarno o matuto puto
da caatinga inventada

e uso a palavra molhada
para irrigar o meu luto:
nutro a terra, escalavrada
(de nua, a esferografadas),
com o meu rascunho enxuto.

à maniva dou indulto,
e a vagem salpicada
brota no mesmo minuto
em que a flor do milho hirsuto
pendurica, embonecada.

a tessitura enramada
viceja em estado bruto
— ora estame, ora fruto,
ora bulba açucarada:
ora nada; ora vulto.

14/11/18, 10-16/05/22

DE VEZ


e ali foi deixada a palavra, verde ainda,
esticada sobre a pedra,
quarando sob o sol:
cada letra, ciente de sua inutilidade futura,
e seus sons evolando, na manhã amarela,
sua alma prematura,
dismorfa e incoerente.

é comum que a verdade caia verde do pé
e morra azeda sem ser chupada.
e a terra?
amargurece.

01-04/22

sábado, 7 de maio de 2022

E QUEM UM DIA IRÁ DIZER...?


“E quem um dia irá dizer…?” Quem diria que um filme que tinha tudo pra não passar de uma homenagem melosa ao Renato recheada de fan services da Legião pudesse ir tão além, e tão cinematograficamente honesto e delicado? “Eduardo e Mônica” me catou no primeiro “bom-dia”, que o ótimo Gabriel Leone (Eduardo) dá a um pôster de Malu Mader pregado na parede de seu quarto (o filme se passa em 1986, ano do lançamento da obra-prima “Dois”, disco do qual consta a música que o inspirou). Não há retoques nas atuações dos atores principais: Otávio Augusto (sempre carismático), Juliana Carneiro da Cunha e Victor Lamoglia (o “carinha do cursinho”) dão os suportes luxuosos aos arcos dramáticos individuais dos protagonistas. Alice Braga deu à Mônica uma maturidade e um conflito que fazem o paradoxo perfeito com a inocência e a aparente inexperiência do Eduardo de Gabriel Leone: aquela, não é nenhuma surpresa que seja excelente, porém consegue se reafirmar sempre; este cativa a gente da primeira à última fala (também pudera, o Eduardo da música — e esse, do filme — representa milhões de adolescentes oitentistas, e não há como quem tem mais de 40 não se identificar com esse cara). E esse mérito é dos dois atores e do diretor, René Sampaio, que pintou esse filme com a ajuda da fotografia ESPETACULAR de Gustavo Habda. O roteiro e o argumento de Matheus Souza são uma (aqui, sim!) verdadeira homenagem ao Renato e à minha geração (o cara colocou uma Caravan — o Renato possuía uma — como o carro da família da Mônica!). O filme é, enfim, uma delicadeza concretizada em imagem depois de 36 anos que sua história nos foi cantada e (insisto!) vai arrancar lágrimas de cada verdadeiro legionário. Assistam como se tivessem nascido em 1974 (ou antes) e se (re)apaixonem.

07/05/22