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segunda-feira, 1 de maio de 2023

CRÍTICA DE "THREE THOUSAND YEARS OF LONGING"

 

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    Mais uma de George Miller! Depois das franquias “Mad Max” (“Fury Road”, de 2016, é um dos melhores filmes desta década) e “Babe” (1995), de “As bruxas de Eastwick” (1987) e “O óleo de Lorenzo” (1992), ele produziu, escreveu e dirigiu em 2022 o excelente “Three thousand years of longing”, com Tilda Swinton e Idris Elba. Antes de mais nada, uma reclamação: eu me recuso a aceitar o título vertido para o português, logo não vou mencioná-lo aqui. Não sei o que se passa com os responsáveis por essas versões! Dependendo do filme, elas acabam afastando o seu público-alvo com uma repetição exaustiva de clichês que eles julgam adequados para cada gênero: se é romance, tem de ter “amor”, “paixão”; se é ação, tem de ter “mortal”, “fatal”; e por aí vai. Por que não traduzir, simplesmente? Qual seria o problema com “Três mil anos de saudade”? 

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    Pois bem. O filme é, como toda boa grande obra contemporânea, um passeio por alguns gêneros (romance, drama, fantasia), com algumas intertextualidades descaradas e outras, muito sutis, e muita, muita metalinguagem, e acho que é aqui que ele brilha mais: o metatexto não é cinematográfico, mas sim literário, ou seja, a jornada da personagem principal é, simultaneamente, diegética (visto que ela assume a perspectiva sobre si, narrando-se à medida que evolui) e exegética (pois essa própria jornada é composta de uma constante análise literária sobre si mesma, num dilema entre realidade e irrealidade). O roteiro, coescrito por Augusta Gore, é baseado no conto “The Djinn in the Nightingale's Eye”, de A. S. Byatt, e traz Swinton como Alithea Binnie, uma “expert” em Narratologia que, desde criança, lida com algo semelhante à esquizofrenia, porém, como se desenrola em uma narrativa fantástica, o roteiro trata suas visões como personagens literárias com as quais ela convive em sua profunda solidão. As estórias tomam o lugar de sua própria vida, soterrando tudo que não seja pertinente à sua profissão, na qual é uma autoridade mundialmente reconhecida.

    Em um dado ponto, bem no seu início, após uma crise e um desmaio de Alithea em uma palestra em Istambul, o filme abraça a fantasia de que dava sinais nos primeiros minutos, e George Miller nos conduz sob os questionamentos entre realidade e irrealidade, alucinação e mágica, tudo isso, graças ao paradoxo que a rapidíssima caracterização da personagem de Alithea nos apresenta: ela é, simultaneamente, uma cientista e uma esquizofrênica e, dadas as estratégias que desenvolveu para lidar com sua condição, possui um alto grau de suscetibilidade e de controle sobre os seus episódios (os primeiros minutos são guiados por ela, como narradora de uma realidade alegórica de sua própria realidade, e, nesse momento, eu me lembrei do ótimo “Don Juan de Marco” — 1995 —, de Jeremy Leven). A partir daí, passamos quase uma hora e meia sendo conduzidos por narrativas dentro de narrativas, num jogo de argumentação por parte de Djinn, personagem de Idris Elba, e dúvida por parte de Alithea, até que ocorrem a aceitação e a entrega total a toda a personalidade que ela havia soterrado sob camadas e camadas de escapismo e autoproteção. Vale aqui ressaltar que uma das várias intertextualidades do filme é com a mitologia ocidental e a oriental. Alithea (Aleteia) é uma personagem da mitologia grega que representa a verdade suprema (a manifestação daquilo que é ou existe tal como é), e Djinn (gênio) é uma personagem das mitologias pré-islâmica e muçulmana, equivalente (mais ou menos) ao “dæmon” grego. Ironicamente, a verdade de Alithea precisa ser revelada, o que só acontece depois que ela abre mão de todas as suas dúvidas sobre Djinn, aquele que, em todas as histórias de que se tem conhecimento a seu respeito, existe apenas para enganar e ludibriar as pessoas com a realização falsa de seus desejos mais verdadeiros.


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    George Miller, Tilda Swinton e Idris Elba conseguiram equilibrar numa história o encantamento, a filosofia, o romance e o drama numa mistura que me capturou do início ao fim e que permaneceu, durante a escrita deste texto, frutificando em possibilidades interpretativas que, certamente, permanecerão aqui. Vi “Three thousands years of longing” com a sensação de estar vendo algo novo e original, muito provavelmente, devido à mistura inusitada de narrativas que ele ia me recuperando da primeira à última cena. Acho que foi uma postura diferente, andando pelos mesmos caminhos, que acabou por criar uma paisagem completamente nova.

     Assistam crédulos.

01/05/23

NÃO TENHO TEMPO

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As horas me chamam.
A raiva e a fome, a tesura e a inércia, a solidão e as hordas,
elas me chamam.
Não tenho tempo.
Não tenho tempo de sangrar meu nome na boca alheia.
Não tenho tempo de esfacelar-me em relações
nem de esfacelá-las,
não tenho.
Tudo é muito breve, e o sal
— que habita tanto a onda quanto a lágrima original
e a fibra seca do cadáver —
está em meus pulmões, meu hálito e minha voz
e crispa na minha sombra e no meu rastro
como um rastilho de pólvora.

Não tenho tempo de pensar no que é cáustico ou doce
— minha boca não tem tempo para o que não é palavra,
por isso as guarda todas
e reza nelas a voz que não é minha,
que nunca foi minha,
porque não tive tempo de dizê-las.
Não atendo a porta, o telefone, a súplica, o insulto.
Não tenho tempo para as palavras
que não são verdadeiramente minhas.

O eu que trabalha e dialoga
e o eu que dá bons-dias e que manda à merda,
também não tenho tempo para eles.
Tudo é muito breve, e as horas me chamam:
não tenho tempo para reprises,
apesar do moto-contínuo da vida.
O novamente das oportunidades perdidas não me interessa,
e o novo é um átomo num universo de possibilidades.
Não tenho tempo para pequenezas,
e das grandiosidades que cuide a metafísica.

O presente é enorme e me requer inteiro
— o meu tempo é a palavra indefesa, anacolútica,
enjaulada na infinita enciclopédia de um tempo maior,
alheio a mim.
O passado não é senão fumaça,
e o futuro, o vento que ainda não é ar.
Não tenho tempo para o que não é chama,
não tenho olhos para o que não é luz.
Por isso, leio-me atentamente,
infenso ou exultante ao fluxo do que sou,
e nada mais:
pois o que sou não tem tempo para o que não fui;
o que sou é o próprio tempo,
tempo este, sim!,
que tenho infinitamente.

01/05/23