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segunda-feira, 1 de maio de 2023

NÃO TENHO TEMPO

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As horas me chamam.
A raiva e a fome, a tesura e a inércia, a solidão e as hordas,
elas me chamam.
Não tenho tempo.
Não tenho tempo de sangrar meu nome na boca alheia.
Não tenho tempo de esfacelar-me em relações
nem de esfacelá-las,
não tenho.
Tudo é muito breve, e o sal
— que habita tanto a onda quanto a lágrima original
e a fibra seca do cadáver —
está em meus pulmões, meu hálito e minha voz
e crispa na minha sombra e no meu rastro
como um rastilho de pólvora.

Não tenho tempo de pensar no que é cáustico ou doce
— minha boca não tem tempo para o que não é palavra,
por isso as guarda todas
e reza nelas a voz que não é minha,
que nunca foi minha,
porque não tive tempo de dizê-las.
Não atendo a porta, o telefone, a súplica, o insulto.
Não tenho tempo para as palavras
que não são verdadeiramente minhas.

O eu que trabalha e dialoga
e o eu que dá bons-dias e que manda à merda,
também não tenho tempo para eles.
Tudo é muito breve, e as horas me chamam:
não tenho tempo para reprises,
apesar do moto-contínuo da vida.
O novamente das oportunidades perdidas não me interessa,
e o novo é um átomo num universo de possibilidades.
Não tenho tempo para pequenezas,
e das grandiosidades que cuide a metafísica.

O presente é enorme e me requer inteiro
— o meu tempo é a palavra indefesa, anacolútica,
enjaulada na infinita enciclopédia de um tempo maior,
alheio a mim.
O passado não é senão fumaça,
e o futuro, o vento que ainda não é ar.
Não tenho tempo para o que não é chama,
não tenho olhos para o que não é luz.
Por isso, leio-me atentamente,
infenso ou exultante ao fluxo do que sou,
e nada mais:
pois o que sou não tem tempo para o que não fui;
o que sou é o próprio tempo,
tempo este, sim!,
que tenho infinitamente.

01/05/23

Um comentário:

Raymundo Netto disse...

Não temos esse tempo infinitamente breve. Parabéns