Número de sílabas (desde 11/2008)

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quinta-feira, 13 de outubro de 2011

MANHÃ DE OUTUBRO

 Foto: Nate Ortiz

Ah, quão bom é procurar de uma memória o gosto e descobri-la insípida… Todavia, como se já não bastassem os meus fantasmas que já estiveram vivos, vou eu a engravidar de outros… Já não basta a casa prenhe de espíritos? Já não são suficientes os mortos pelas ruas ao lado de seus vivos?
Devagarzinho, a manhã me encontrou desperto e inteiro, à sua espera. Tenho estado à sua espera durante muito tempo. Tenho procurado por ela em cada ilusão de amor, em cada café desencontrado, em cada instante agudo e viciante de melancolia — a solidão é um bicho quente que seduz e devora a gente ao mesmo tempo. Ao chegar com seus raios e seu chumbo derretendo-se em azul e amarelo, ei-la também inteira, ao seu modo de manhã: a mensageira, a que bate à porta, a que sorri fatalidades.
— Estou pronto — gritei-lhe baixinho para não acordar família, vizinhos e circunstantes —, estou pronto, estou prestes, estou posto! Leva-me!
Ela apenas me olhava, e seus raios e mormaços me respiravam. Sentia-me a respiração com a língua que lhe saltava dos olhos alaranjados — a manhã tem o seu próprio jeito de comer os que estiveram sempre acordados.
Pensei nos meus pais. Quanta espera… Quantos fantasmas de palavras que morreram sementes secas ou podres, que nunca germinaram. Pensei em meu filho, morto feto, como tudo que lhe diria. Pensei em uma ou duas mulheres que amei, e pareceu-me tudo apenas degraus da escada de meu egoísmo que levava unicamente à superfície de mim, e entendi minha profundidade. Percebi-me formado por tudo aquilo que abandonei ou que me abandonou.
— São muitos mortos — disse-me ela. Levarás todos contigo?
— Eles não têm vontade própria?
— Eles não existem.
— Não?
— Sem ti, não. Assim como eu. Assim como toda a tua espera, tua angústia e tudo que me trouxe até aqui. E, assim como eu, não existe nada, nem tu, sem que haja o desejo vão de existir. E o existido é fruto do desejo dos viventes, isso que te prende a mim e a mim, a ti.
— E se eu desejo não existir? E se eu desejo não desejar, mas sim ser objeto de outro desejo que me tire a culpa do próprio desejar, de querer, como dizes, o vão da existência?
— Não é a existência que é vã. O desejo dela é.
— De que adianta existir sem desejá-lo?
— De nada. Por isso, estou aqui.
— Raiarás apenas para mim? Não te alimentarás dos que me cercam, de minha família, meus vizinhos?
— Venho para os que me aguardam, e cada um tem seu próprio alvorecer. Não me quiseste?
— Não. Apenas te esperava. O que eu desejava era a noite, que tu, quando não te fazias, roubavas de mim sem me dar em troca coisa melhor que pesadelos. Viraste-me do avesso com aquilo.
— Germinei em ti a espera por mim.
— Pois não existes sem mim, não o disseste? Não somos eu e o meu desejo vão que te fazem?
— Ainda não o percebeste…
— O quê?
— Não existes.
— Já?
— Continuas não percebendo. Já não se aplica a pessoas como tu. Pergunta a teus fantasmas quem foste. Por mais que tentem, não te saberão dizer nada. O que foste, foste apenas para ti. Não despertaste nada exceto manhãs em teu peito. Não entardeceste como os homens, não anoiteceste como as mulheres. Não criaste, não destruíste, não influenciaste ninguém. Não te manifestaste. Passaste pelos dias como teus fantasmas: seguindo portas claramente abertas, sem chaves, sem vontade de trespassar. Quando olhavas para o céu, vias-me e fingias não me ver. Estava em cada crepúsculo, em cada sombra que estendia diante de ti. Sabia-lo. Nunca te fui surpresa. Observaste os homens e vias a mim. Deitavas-te com tuas mulheres e tocavas minha alva em seus corpos nus. Mesmo em teus mortos eu estava, mesmo quando eram coisa de que te compunhas. Já não se aplica a ti. Apesar de teres vivido o quase, tua palavra é nunca.
— E qual, a tua palavra?
— Agora.

13/10/11

terça-feira, 11 de outubro de 2011

ABDUÇÃO


O amor tirou-me da carne a rosa merencória
E alijou de mim minha tristeza
Em troca, deu-me a incerteza
E o não saber meu nada que não é memória

Roguei-lhe a volta da negrura complacente
Com que misturo o café e a noite sólida
Pois fez-me inquieta a forma estólida
E, a alma escura, a violência incandescente

Ao que, depois, disse-me risonho:
— É bom saber insípida a memória
Em cujo fel o amor se viciara
Cuja hora triste a outra dissipara
E à rosa feia devolvera a glória

09/10/11

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

A ALMA DOS GUERREIROS


Estava vendo aqui as modinhas do Facebook e me lembrei de um diálogo de um filme excelente chamado A Alma dos Guerreiros (Once Were Warriors), de 1994 ou 95 (não sei ao certo), dirigido por Lee Tamahori. O filme trata da rotina do povo maori residente nos subúrbios de Auckland, na Nova Zelândia, centralizada na vida de uma família conflituosa. Ao final, um dos filhos, ao ser inquirido sobre o porquê de não usar as tatuagens tribais com que seus amigos demonstram o seu orgulho étnico, responde:
— As minhas são por dentro.
Talvez seja a necessidade moderna de seguir tendências, talvez seja simplesmente uma deficiência de personalidade, talvez seja somente frivolidade… O fato é que as redes sociais fizeram as pessoas viciarem-se em si mesmas. O curioso é que, ao passo que urgem ser raríssimos e individuais como diamantes negros, agrupam-se em tribos de indivíduos igualmente diferentes (ou diferentemente iguais). Não há novidade nisso. O hedonismo “neohippie” (que fique clara a ironia desta adjetivação) destes anos 10, o questionamento presunçoso (visto que fundamentado não na coletividade, mas em si mesmo) dos padrões sociais, a ascensão de uma burguesia mais burra que as suas predecessoras, o egocentrismo, a infanto-adolescência estendida aos limites do que a mídia categoriza como “jovem”, enfim, essas mazelinhas sociais que flagelam essa nova classe média oriunda do conceito do “poder de compra” e da ideia de permanente (e, por que não dizer, obrigatória) felicidade dele advinda trouxeram consigo essas novas autodefinições.
— Eu sou contra os maus-tratos aos animais, logo porei dezenas de postagens com mutilações, seus mutiladores e seus mutilados para que todos saibam como eu sou “antenado” com as injustiças cometidas àquelas pobres almas.
— Eu sou contra a construção da usina de Belo Monte, logo postarei aqui fotos de crianças indígenas para expressar a minha indignação e o meu desejo de justiça.
— Eu sou contra a violência infantil, logo (genial, genial!) mudarei minha foto do perfil do Facebook para a imagem do meu personagem preferido de HQ/cartum/mangá/desenho animado/longa-metragem de animação/etc. para que todos percebam como eu me importo.
Algum problema com as três causas citadas acima? Na minha opinião, com as causas, nenhum. Todavia, é bom ponderarmos sobre que buraco de personalidade é esse que se tem hoje, que se preenche com causas como se fossem modas; com inquietações legítimas como se fossem comunidades orkutianas (indicadores máximos de personalidade na década passada); com almas alheias como se fossem as suas. Caio Fernando Abreu virou o tradutor virtual oficial da liberdade irresponsável que se apregoa hoje aos quatro ventos: a bandeira do “eu mereço ser feliz” (mais uma vez, frise-se aqui a minha ironia).
Qual é, meu povo? Qual é?
Estas últimas décadas parecem mais órfãs que eu e os de minha geração. Perdemos pais, ídolos, referências, mas mantivemos ideais enraizados firmemente. A quem recorrem esses de hoje? Ao Google?
Vou dar um jeito de rever esse filme que mencionei no início… “As minhas são por dentro” é algo que, hoje, faz mais sentido a mim do que nunca.

04/10/11