Número de sílabas (desde 11/2008)

counter

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

ARMORIAL

 

(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

(Em homenagem a Susassuna, o Ariano armorial, e ao meu primeiro grande amor, que me sertanejou a vida.)

a cultura que renegas
eu, íntimo, abraço:
um abraço feito de pele e fome,
tapioca agreste e macia com café
na manhã nevada e serrana de minha casa.

nela, eu, antigo e novo,
encavaleiro-me,
vestido com o gibão de minha própria pele
cosido com as histórias de meus pais
e armado com o delírio dos cegos:
cravejada em meus olhos,
a alucinação solar que nos norteia.

minha morte é minha vida:
é cobra que me rasteja;
é a onça espreitando por mim;
mas também é a montaria,
égua encarnada e ligeira,
que pisoteia o que não é vida
e me galopa os segredos
dos sertões adiante.

pelejo por esporte
e sobrevivo por profissão.
comigo, levo pouco de meu:
minhas letras, meu nome,
meu silêncio.
mas, no sangue
— moto-perpétuo ancestral —,
trago aboios e novenas,
incelenças e cordéis,
litanias e tiranas,
canções de nascer nos corpos
as almas de antes,
cheias de novidades de cacimbas
e maravilhas do além-mar.

a cultura que renegas
é o mandacaru que te dá flor,
mas te rasga na pele o atrevimento
de te achares
— tu, que és seco e estéril de poesia —
o inverno
de que ela é chuva.
não é palavra nem silêncio
o sertão que não carregas.
é o olhar cheiroso que não tens,
é a saudade mansa que não sentes,
é o orgulho fibroso que não te acocha
esse peito mole sem amor nem ódio,
sem jeito de amar mordendo,
sem pátria onde querer morrer.

23/10/20

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

FORNICAÇÃO

(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

só,
ou em meio a números
— casal, ménage, swing, bacanal —,
o artista é,
essencialmente,
um sozinho.
 

caso não,
erra das duas uma:
a arte
ou a conta.

21/10/20

domingo, 11 de outubro de 2020

O GLUTÃO

Hieronymus Bosch - Fragmento de A mesa dos pecados capitais.
(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

 
    — Bom dia, pessoal! Vamos começar nossa entrevista de hoje aqui no Café com Paula com o notório glutão, o Sr. Marcondes Gamela. E vamos começar logo com a polêmica, que eu sei que o senhor gosta de uma. Quer dizer então que o senhor tem ódio aos veganos, é isso mesmo, Sr. Gamela?
    — Bom dia, querida Paulinha, bom dia, pessoal de casa. Não, não é isso. O que eu sinto é uma preguiça enorme de dialogar com eles. Veja só, outro dia, vieram me perguntar num restaurante se havia algum vegetal que eu não comia. Perguntaram assim, pra me provocar mesmo. Ora bolas, se eu dissesse aquilo em voz alta, brotaria um vegano ovolacto das profundas pra tentar me converter! Sim, porque aquilo, quando querem, é uma religião, e eu sou o Belzebu! “Quem você pensa que é pra falar assim da Santa Abobrinha?”. Ora, meu amigo, eu não sou ninguém, sou só um homem que gosta de comer e que assume o onívoro que é. Agora, tem exceções, é claro que tem… tanto na comida, quanto nos veganos. Veja, eu até já namorei uma. Sou amigo de vários, até. Não tenho preconceito, Nenhum mesmo. Você é vegana?
    — Sou.
    — Opa!
    — É… Então o senhor já NAMOROU uma vegana? Conta aí como é que foi!
   — Não, minha querida, quem come, opa!, quem beija não fala.
   — Sei. Machista disfarçado de cavalheiro. Mas, não pode contar nada?
    — Bom, posso contar como terminou.
    — E como foi?
    — Foi porque ela me acusou de traição. Veja bem, eu não sou contra você não querer comer bicho. Acho que cada um come o que quiser. Eu mesmo crio bicho, cachorro, gato, passarinho. Não comeria nenhum deles porque são meus, tenho afeto, mimo… Mas acho que isso não pode limitar você. Eu comeria tranquilamente um filezinho de buldogue ou uma passarinha de angorá. Sem preconceito! Não mataria pra comer, porque eu crio. É por isso que eu não condeno quem cria boi, porco de estimação. Bicho é bicho. Também sou experimentalista. Comeria um escorpião, um gafanhoto, se tivesse a chance. Quando for à China, vou fazer a festa naqueles mercados de rua. Eu sei que é ruim, já me disseram. Mas é bicho, e bicho é bicho.
    — Sim, mas e a traição?
    — Eu chego lá. Então, um dia, ela, irritada com o fato de a gente ter ido a um rodízio de pizza que não tinha opção vegana, começou a surtar e me escolheu, óbvio, como alvo! Começou a dizer que tinha medo de mim, que eu era capaz de cortar um pedaço dela pra comer, coisa e tal. Eu respondi calmamente que comeria sim carne de gente, gente é bicho, e bicho é bicho, né?
    — Meu Deus, o senhor a comparou com um bicho?
    — Peraí, que vai piorar. Eu também já não estava  muito feliz naquele relacionamento, muita implicância, muito mimimi. Ela me fez essa mesma cara que você tá me fazendo agora. Ainda calmamente, eu disse a ela: “Veja só, não há muita diferença entre você, uma vaca ou uma baleia pra mim no nível alimentar. A diferença é que matar você seria crime, e, além do mais, você é próxima como a Tchutchuca”. Tchutchuca é a minha cadelinha. Rapaz, ela empalideceu, ficou da cor de um palmito. Deu até mais fome, pensei em pedir uma pizza de palmito naquela hora.
    — É… bem…
    — Sim, sim, a traição. Pois foi aí que eu disse que também não se comeria uma pessoa qualquer. Tinha de ser um hedonista, um bon-vivant, alguém narcisista, de bem consigo mesmo acima de tudo. Nem políticos, nem professores, nem psicólogos. Nesses aí, a carne é estragada pelo excesso de toxinas produzidas pelo corpo. Tipo cabrito, quando morre apavorado. Fica com gosto amargo, sabe? Ela envermelhou, começou a me xingar baixinho, que ela era dessas, uma lady. Mais calmo ainda, eu disse a ela que a moça da mesa ao lado deveria ter um gosto bom, era cheiinha, a gordura deveria ser bem docinha. Rapaz, essa mulher endoidou. Começou a me chamar de tudo que era nome, que eu não a respeitava, que eu era um porco… Sim, sim, eu me comeria, olha esse toucinho aqui. Pois bem, eu, morrendo de rir, disse que não se preocupasse, que comer, sem ser com a boca, só ela mesmo, mas isso piorou ainda mais a situação. De tudo que eu disse, ela só lembrou o que eu falei da moça. Terminamos ali. Sorte que eles tinham pizza de palmito.
    — Sr. Gamela…
    — Eu entendo a sua expressão indignada. Mas olha, você até que daria um bom prato, viu?
    — O senhor me respeite!
    — Calma, calma, que é isso? Falo alimentarmente. Apesar do seu porte atlético, porque, veja, isso de levantar peso deixa a carne muito dura, acho que um suco de abacaxi poderia dar uma boa amaciada…
    — Vamos encerrar a entrevista por aqui. Muito obrigada, Sr. Marcondes Gamela pela sua participação no nosso programa…
   — Sabe o que vai bem com suco de abacaxi? Vodca. É chegada?
    — …
    — Então?
   — Nem que o senhor fosse o último homem do mundo, Sr. Gamela. Além do mais, eu não gosto de homens. Todos são meio assim como o senhor, uns porcos. A diferença é que o senhor, pior que os outros, assume a chauvinice.
   — Tudo bem, tudo bem, sem preconceitos. Poderia ser um jantar a três. Olha, eu tenho uma amiga…
   — O senhor vá para o inferno! Gente, vocês me desculpem, mas assim não dá. Diretor, diretor!
    — Mas nem um fast-foodzinho?
    — ME SOLTA! ME SOLTA, QUE EU VOU DAR NELE!
   — Tá vendo? Vegana. Só podia ser vegana. Com um mau humor desse…
   — VERME! VERME DESGRAÇADO! GORDO ESCROTO, MACHO ESCROTO!
    — Verme é bom, mas com tequila. Dizem que escroto de boi é afrodisíaco, comem na Espanha com os testículos.
    O diretor:
    — Ok, que é isso, gente, corta, corta… O senhor tenha mais respeito pela Paula!
    Última fala antes de entrarem os comerciais:
    — Mas eu sempre tenho respeito pelas mulheres, comidas ou não…

11/10/20

PROSPECÇÃO

 

(Clique na imagem para ampliá-la e na fonte, para acessar a página de origem.) 

    Vou escrever. É o que eu sei fazer, e, nessas horas, é preciso confiar no que se sabe fazer. Todo dia, a vida vem parecendo uma coisa que só acontece aos outros. Nas redes sociais, ela pulula. Este, no boteco, nos aniversários, nas academias de ginástica; aquela, na praia, no trabalho, nas boates dançantes. Todos, enérgicos e relaxados; todos, produtivos e lassos. Todos vivendo. John Lennon o disse, e eu, por muito tempo, repeti que a vida é o que lhe acontece enquanto você se ocupa fazendo outros planos. Tradução minha, e livre. Faltava acrescentar a essa tradução as circunstâncias de produção da frase. Ou melhor, faltava a definição desse “você” e desses “planos”. A música era para o Sean, cujo irmão, Julian, filho do casamento anterior, fora tratado como lixo pelo mesmo pai. Os planos desse pai consistiam em continuar vendendo a falsa imagem branca do propagador da paz e do amor que lhe rendeu milhões de dólares e de fãs. Os planos consistiam em vender. O você fazia parte do produto ideal. Não sou vendedor, já tentei, atrás de balcão e de porta em porta. Não conseguiria convencer um faminto a comprar comida. Muito menos, uma amante a permanecer amando. Parece que, a mim, a vida lennoniana aconteceu ao contrário. Parece que, ao ser incapaz de praticar os “outros planos”, outorguei à vida que lá acontecesse, e de lá desdenhasse da minha espera por seu acontecimento.
    Não foi bem assim. Do lado de cá, eu me debati bastante por viver. Tentei amar, tentei confraternizar, tentei participar, tentei me integrar. Tentei produzir, funcionar, compartilhar, influenciar. Tentei ser filho, irmão, amante, namorado, marido, pai, tio, primo etc., etc., etc.… Nada disso aconteceu como deveria, e a vida — essa, lennoniana — sobrava na vida dos outros. Na minha, na minha vida, eu me descobri um simples espectador de tudo. Isso, muito antes de as redes sociais existirem, muito antes do palco virtual onde a vida dos outros eclode radiante e glamorosa. Antes de professores terem de se preocupar com a qualidade das câmeras, por trás de cujas captações sua imagem, conhecimento e experiência passaram a competir com as de outros professores por likes, follows e retweets (e contratações, pois não?).
    Espectador e expectante, a isso meio que se resumiu a minha vida. Exceto aqui, na escrita. Aqui, escavei, prospectei, fingi verdades. Lapidei-as, poli-as para exposição em galerias, ao mesmo tempo em que as pus a chafurdar na pior imundície do exagero. Porém, nunca as menti. Mentir é uma ferramenta muito útil para se atingirem os “planos”, principalmente, se a vida está lá, e não cá. Dessa forma, para viver, menti, menti bastante. Menti como quem respira, sempre na esperança de a onipresença da mentira convertê-la automaticamente em verdade, em vida. Sempre fui eu o principal objetivo de todas as mentiras, assim como o assunto de todas elas. Mentindo-me, coisa que nunca consegui em literatura, talvez fizesse algo mais que existir observando. Talvez, assim, pudesse ser eu a estar lá, nos púlpitos da vida, propagando imagens de quem sou, todas elas orgulhosas de mim, todas reluzentes e sombrias, todas paradoxalmente belas e invejáveis como uma androginia de percepções casuais e incopiáveis, todas boas demais para o copidesque ou a maquilagem existenciais. Talvez, se eu houvesse sido outro, não física, mas animicamente, como um vasilhame cujo conteúdo se troca, talvez eu conseguisse ser suficiente, talvez dançasse, sorrisse e rolasse nos lençóis brancos lennonianos, fingindo não ser aquilo a vida, mas sim algo que me aconteceu enquanto eu estava distraído. Se eu acreditasse que conseguiria… Meu Deus, por que eu nunca acreditei? Por que votei minhas crenças a uma beleza somente possível se prospectada como um mineral? Continuam lá, as imagens, vivendo. Cá, eu, assistindo. Faminto e resignado, limpo como um vidro de aquário, imperceptível de tão transparente, que não fragmenta raios nem oferece sombras. Ou negro, tão negro quanto o écran que reproduz as letras que digito, sem questioná-las, sem interferir nelas. Porém, quem digita as letras que reproduzo está ciente também de que só existe nelas e, ainda assim, somente se lhe perfurarem a crosta e lhe adentrarem as escuridões?
    O que sei fazer se resume a isto: escavar-me, escrever-me, publicar-me. Devo confiar no que sei fazer, mesmo que minha prática possa revelar-se uma mutilação na rocha sempre quebradiça sobre a qual resido e atendo, sempre desconfiado, sempre cansado e triste, sempre sem esperança.

11/10/20

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

PARALELO