Número de sílabas (desde 11/2008)

counter

domingo, 11 de outubro de 2020

O GLUTÃO

Hieronymus Bosch - Fragmento de A mesa dos pecados capitais.
(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

 
    — Bom dia, pessoal! Vamos começar nossa entrevista de hoje aqui no Café com Paula com o notório glutão, o Sr. Marcondes Gamela. E vamos começar logo com a polêmica, que eu sei que o senhor gosta de uma. Quer dizer então que o senhor tem ódio aos veganos, é isso mesmo, Sr. Gamela?
    — Bom dia, querida Paulinha, bom dia, pessoal de casa. Não, não é isso. O que eu sinto é uma preguiça enorme de dialogar com eles. Veja só, outro dia, vieram me perguntar num restaurante se havia algum vegetal que eu não comia. Perguntaram assim, pra me provocar mesmo. Ora bolas, se eu dissesse aquilo em voz alta, brotaria um vegano ovolacto das profundas pra tentar me converter! Sim, porque aquilo, quando querem, é uma religião, e eu sou o Belzebu! “Quem você pensa que é pra falar assim da Santa Abobrinha?”. Ora, meu amigo, eu não sou ninguém, sou só um homem que gosta de comer e que assume o onívoro que é. Agora, tem exceções, é claro que tem… tanto na comida, quanto nos veganos. Veja, eu até já namorei uma. Sou amigo de vários, até. Não tenho preconceito, Nenhum mesmo. Você é vegana?
    — Sou.
    — Opa!
    — É… Então o senhor já NAMOROU uma vegana? Conta aí como é que foi!
   — Não, minha querida, quem come, opa!, quem beija não fala.
   — Sei. Machista disfarçado de cavalheiro. Mas, não pode contar nada?
    — Bom, posso contar como terminou.
    — E como foi?
    — Foi porque ela me acusou de traição. Veja bem, eu não sou contra você não querer comer bicho. Acho que cada um come o que quiser. Eu mesmo crio bicho, cachorro, gato, passarinho. Não comeria nenhum deles porque são meus, tenho afeto, mimo… Mas acho que isso não pode limitar você. Eu comeria tranquilamente um filezinho de buldogue ou uma passarinha de angorá. Sem preconceito! Não mataria pra comer, porque eu crio. É por isso que eu não condeno quem cria boi, porco de estimação. Bicho é bicho. Também sou experimentalista. Comeria um escorpião, um gafanhoto, se tivesse a chance. Quando for à China, vou fazer a festa naqueles mercados de rua. Eu sei que é ruim, já me disseram. Mas é bicho, e bicho é bicho.
    — Sim, mas e a traição?
    — Eu chego lá. Então, um dia, ela, irritada com o fato de a gente ter ido a um rodízio de pizza que não tinha opção vegana, começou a surtar e me escolheu, óbvio, como alvo! Começou a dizer que tinha medo de mim, que eu era capaz de cortar um pedaço dela pra comer, coisa e tal. Eu respondi calmamente que comeria sim carne de gente, gente é bicho, e bicho é bicho, né?
    — Meu Deus, o senhor a comparou com um bicho?
    — Peraí, que vai piorar. Eu também já não estava  muito feliz naquele relacionamento, muita implicância, muito mimimi. Ela me fez essa mesma cara que você tá me fazendo agora. Ainda calmamente, eu disse a ela: “Veja só, não há muita diferença entre você, uma vaca ou uma baleia pra mim no nível alimentar. A diferença é que matar você seria crime, e, além do mais, você é próxima como a Tchutchuca”. Tchutchuca é a minha cadelinha. Rapaz, ela empalideceu, ficou da cor de um palmito. Deu até mais fome, pensei em pedir uma pizza de palmito naquela hora.
    — É… bem…
    — Sim, sim, a traição. Pois foi aí que eu disse que também não se comeria uma pessoa qualquer. Tinha de ser um hedonista, um bon-vivant, alguém narcisista, de bem consigo mesmo acima de tudo. Nem políticos, nem professores, nem psicólogos. Nesses aí, a carne é estragada pelo excesso de toxinas produzidas pelo corpo. Tipo cabrito, quando morre apavorado. Fica com gosto amargo, sabe? Ela envermelhou, começou a me xingar baixinho, que ela era dessas, uma lady. Mais calmo ainda, eu disse a ela que a moça da mesa ao lado deveria ter um gosto bom, era cheiinha, a gordura deveria ser bem docinha. Rapaz, essa mulher endoidou. Começou a me chamar de tudo que era nome, que eu não a respeitava, que eu era um porco… Sim, sim, eu me comeria, olha esse toucinho aqui. Pois bem, eu, morrendo de rir, disse que não se preocupasse, que comer, sem ser com a boca, só ela mesmo, mas isso piorou ainda mais a situação. De tudo que eu disse, ela só lembrou o que eu falei da moça. Terminamos ali. Sorte que eles tinham pizza de palmito.
    — Sr. Gamela…
    — Eu entendo a sua expressão indignada. Mas olha, você até que daria um bom prato, viu?
    — O senhor me respeite!
    — Calma, calma, que é isso? Falo alimentarmente. Apesar do seu porte atlético, porque, veja, isso de levantar peso deixa a carne muito dura, acho que um suco de abacaxi poderia dar uma boa amaciada…
    — Vamos encerrar a entrevista por aqui. Muito obrigada, Sr. Marcondes Gamela pela sua participação no nosso programa…
   — Sabe o que vai bem com suco de abacaxi? Vodca. É chegada?
    — …
    — Então?
   — Nem que o senhor fosse o último homem do mundo, Sr. Gamela. Além do mais, eu não gosto de homens. Todos são meio assim como o senhor, uns porcos. A diferença é que o senhor, pior que os outros, assume a chauvinice.
   — Tudo bem, tudo bem, sem preconceitos. Poderia ser um jantar a três. Olha, eu tenho uma amiga…
   — O senhor vá para o inferno! Gente, vocês me desculpem, mas assim não dá. Diretor, diretor!
    — Mas nem um fast-foodzinho?
    — ME SOLTA! ME SOLTA, QUE EU VOU DAR NELE!
   — Tá vendo? Vegana. Só podia ser vegana. Com um mau humor desse…
   — VERME! VERME DESGRAÇADO! GORDO ESCROTO, MACHO ESCROTO!
    — Verme é bom, mas com tequila. Dizem que escroto de boi é afrodisíaco, comem na Espanha com os testículos.
    O diretor:
    — Ok, que é isso, gente, corta, corta… O senhor tenha mais respeito pela Paula!
    Última fala antes de entrarem os comerciais:
    — Mas eu sempre tenho respeito pelas mulheres, comidas ou não…

11/10/20

Nenhum comentário: