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domingo, 11 de outubro de 2020

PROSPECÇÃO

 

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    Vou escrever. É o que eu sei fazer, e, nessas horas, é preciso confiar no que se sabe fazer. Todo dia, a vida vem parecendo uma coisa que só acontece aos outros. Nas redes sociais, ela pulula. Este, no boteco, nos aniversários, nas academias de ginástica; aquela, na praia, no trabalho, nas boates dançantes. Todos, enérgicos e relaxados; todos, produtivos e lassos. Todos vivendo. John Lennon o disse, e eu, por muito tempo, repeti que a vida é o que lhe acontece enquanto você se ocupa fazendo outros planos. Tradução minha, e livre. Faltava acrescentar a essa tradução as circunstâncias de produção da frase. Ou melhor, faltava a definição desse “você” e desses “planos”. A música era para o Sean, cujo irmão, Julian, filho do casamento anterior, fora tratado como lixo pelo mesmo pai. Os planos desse pai consistiam em continuar vendendo a falsa imagem branca do propagador da paz e do amor que lhe rendeu milhões de dólares e de fãs. Os planos consistiam em vender. O você fazia parte do produto ideal. Não sou vendedor, já tentei, atrás de balcão e de porta em porta. Não conseguiria convencer um faminto a comprar comida. Muito menos, uma amante a permanecer amando. Parece que, a mim, a vida lennoniana aconteceu ao contrário. Parece que, ao ser incapaz de praticar os “outros planos”, outorguei à vida que lá acontecesse, e de lá desdenhasse da minha espera por seu acontecimento.
    Não foi bem assim. Do lado de cá, eu me debati bastante por viver. Tentei amar, tentei confraternizar, tentei participar, tentei me integrar. Tentei produzir, funcionar, compartilhar, influenciar. Tentei ser filho, irmão, amante, namorado, marido, pai, tio, primo etc., etc., etc.… Nada disso aconteceu como deveria, e a vida — essa, lennoniana — sobrava na vida dos outros. Na minha, na minha vida, eu me descobri um simples espectador de tudo. Isso, muito antes de as redes sociais existirem, muito antes do palco virtual onde a vida dos outros eclode radiante e glamorosa. Antes de professores terem de se preocupar com a qualidade das câmeras, por trás de cujas captações sua imagem, conhecimento e experiência passaram a competir com as de outros professores por likes, follows e retweets (e contratações, pois não?).
    Espectador e expectante, a isso meio que se resumiu a minha vida. Exceto aqui, na escrita. Aqui, escavei, prospectei, fingi verdades. Lapidei-as, poli-as para exposição em galerias, ao mesmo tempo em que as pus a chafurdar na pior imundície do exagero. Porém, nunca as menti. Mentir é uma ferramenta muito útil para se atingirem os “planos”, principalmente, se a vida está lá, e não cá. Dessa forma, para viver, menti, menti bastante. Menti como quem respira, sempre na esperança de a onipresença da mentira convertê-la automaticamente em verdade, em vida. Sempre fui eu o principal objetivo de todas as mentiras, assim como o assunto de todas elas. Mentindo-me, coisa que nunca consegui em literatura, talvez fizesse algo mais que existir observando. Talvez, assim, pudesse ser eu a estar lá, nos púlpitos da vida, propagando imagens de quem sou, todas elas orgulhosas de mim, todas reluzentes e sombrias, todas paradoxalmente belas e invejáveis como uma androginia de percepções casuais e incopiáveis, todas boas demais para o copidesque ou a maquilagem existenciais. Talvez, se eu houvesse sido outro, não física, mas animicamente, como um vasilhame cujo conteúdo se troca, talvez eu conseguisse ser suficiente, talvez dançasse, sorrisse e rolasse nos lençóis brancos lennonianos, fingindo não ser aquilo a vida, mas sim algo que me aconteceu enquanto eu estava distraído. Se eu acreditasse que conseguiria… Meu Deus, por que eu nunca acreditei? Por que votei minhas crenças a uma beleza somente possível se prospectada como um mineral? Continuam lá, as imagens, vivendo. Cá, eu, assistindo. Faminto e resignado, limpo como um vidro de aquário, imperceptível de tão transparente, que não fragmenta raios nem oferece sombras. Ou negro, tão negro quanto o écran que reproduz as letras que digito, sem questioná-las, sem interferir nelas. Porém, quem digita as letras que reproduzo está ciente também de que só existe nelas e, ainda assim, somente se lhe perfurarem a crosta e lhe adentrarem as escuridões?
    O que sei fazer se resume a isto: escavar-me, escrever-me, publicar-me. Devo confiar no que sei fazer, mesmo que minha prática possa revelar-se uma mutilação na rocha sempre quebradiça sobre a qual resido e atendo, sempre desconfiado, sempre cansado e triste, sempre sem esperança.

11/10/20

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