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segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

DOIS SÓIS


Cícero R. C. Omena - Catadoras
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Existe uma grande diferença
entre o sol que me entra pela janela
que é meu
e confere cor a tudo que sua luz toca
e me diz nas retinas
da beleza de minhas plantas
e dos cabelos de minha filha

e o sol que diz nas costas
dos catadores de material reciclável
dos pedreiros sem carteira assinada
dos mendigos e abandonados
as cores da cidade
e a verdadeira aparência
do amor de deus

O primeiro chega com vento
e vaza pelas frestas do telhado
Romantiza os cantos da casa
e diz ao mandacaru no meu quintal
que já é hora de flor

O segundo chaga, punge e mata
quem não é patrão e alguns empregados
porque a maioria é semente bruta
que adia e realiza a morte
que se acostumou a chamar de vida

Dois sóis, superpostos em perspectiva
brilham num só
Menos são meus olhos que os dividem
que a injustiça deste mundo
que os conjura

Cruza a rua, além do parapeito
onde meus pequenos cactos, devidamente hidratados
fotossintetizam
e me apaziguam
o Seu Aquino, 35 anos, já avô
puxando sua caçamba feita de uma geladeira
o qual me vendera por 20 reais
um patinete velho e verde
com que presenteei meu filho

Dois pobres, ele e eu
mas cada um, nesta flora selvagem da urbe
reflete luzes diferentes
que se prismam em pequenas distorções de luz
por este horroroso vitral metropolitano
— pequena e miserável catedral provinciana
onde ainda se rezam nas missas
novenas em prol da moral
e dos bons costumes

10/12/23

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

DEIXE O DIA


Deixe o dia respirar um pouco
Que cada segundo, minuto e hora
Tiram-lhe um pouco o fôlego 
Quando não o asfixiam

Abra uma janela, uma cerveja, um abraço
E deixe o dia respirar do que não é ar
Mas sim perfume, fragrância do momento
Que você criará dentro dele:
Uma ampola, um balão
Do oxigênio que roubam todo o tempo aos instantes

Deixe o dia esticar as pernas
Quebrar a ampulheta
Enfiar-lhe os pés n'areia
Respirar do mar sem turistas
Sorrir para um cão
Reciprocamente

Deixe o dia passar
Num'avenida sem relógios
Nos semblantes sem pressa
Deixe o dia morrer no mar, antes que o Sol o mate
Menos de tédio que de saudade

Deixe o dia sobre a mesa
Deixe-o saber que está só
E que tudo está bem

Deixe o dia respirar
Desalvoroçado
Feito o mistério da moça que nada olha
Que nada sonha
Numa eternidade breve que mata o tempo
De inveja e de amor

07/12/23