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domingo, 28 de outubro de 2018

NOTA DE ENLUTAMENTO

(Manchas de sangue da travesti morta a facadas no Fortaleza Bar e Bilhar, no Largo do Arouche, SP. Clique na imagem para ampliá-la e aqui, para acessar o site.)

Este foi um dos anos mais difíceis de minha vida, e ainda faltam dias. Hoje, agora, sinto como se houvesse morrido alguém. Uma clausura entreaberta, de onde se sentem o cheiro do horror e o amargo de gritos retorcidos, é o que parece minha janela. Os fogos lá fora fumam à morte. Tudo sabe à morte. Os sorrisos, a histeria a dois dedos de explodir em um ataque de ódio simiesco. Nas avenidas, nas ruas da periferia, os bares têm gosto de morte. Pessoas atravessam as ruas como cães fugindo das toneladas automobilísticas, bólides do sangue urbano. Fogem da morte. Da sacada, um que queria ser militar para defender a pátria dos ladrões de bicicleta saca do 38 escamoteado da Feira dos Pássaros e atira para cima como se alvejasse todos os favelados do mundo, mesmo morando em favela. A noite se contorce moribunda. Estertora-se uma prévia de como será a agonia desta madrugada.
De fato, morreram muitos. Perdi um dos meus melhores amigos, também se foi o meu maior professor. Morreram outros. Morreu Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, morador de uma favela do RJ, por isso e por ser negro. Morreu Charlione Lessa Albuquerque, pacajusense, por manifestar sua cor vermelha e seguir sua estrela. Morreu uma travesti que não pôde ser identificada devido aos golpes de faca que levou no rosto e pelo fato de, para o Estado, ser apenas mais um viado na geladeira do IML. Morreu Mestre Moa do Katendê, baiano, 62 anos, 12 facadas nas costas destinadas a matar tudo que não fosse branco. Morreu Marielle Franco, vereadora carioca, fuzilada junto com seu motorista, Anderson Pedro Gomes, por amplificar a voz das minorias. Morreram outros, ainda. Morreram professores no fundo de seus corações. Morreram negros de todas as cores, morreram quilombolas, indígenas, ribeirinhos, morreram cristãos e ateus, gays e lésbicas, artistas, morreram todos em um lugar irreparável de seus espíritos. Morremos os nordestinos. Morreu Luís Inácio Lula da Silva no seu cárcere, cercado de indignidades e vulturinismos. Morre hoje também a democracia; esta, por suicídio. O Brasil morreu. Mas, que Brasil? O de Chico Mendes, o de Dorothy Stang? Esse Brasil nunca constou no rol da cidadania. Sua morte ou sua agonia não ecoam. Essa pátria sem bandeira vem sendo torturada a frio e a brasas nos camburões, nos quartéis da Marinha, no abandono das periferias e das cidades interioranas do Norte-Nordeste, que é a grande periferia deste país, há muito tempo, mas o tempo da dor causada não se conta. Não se mede a extensão do horror da inanição intelectual. Não se contabilizam os futuros esquartejados no entre-carros das cidades.
Talvez, o que se ouça sejam os gritos de paroxismo oriundos dos porões do Leviatã, reverberados no silêncio dos peitos quebrados, dos olhos arrancados, das genitálias queimadas. Talvez, sejam os gritos dos que sabem da morte vindoura, talvez, os dos que não nasçam. O fato é que a sensação de morte ultrapassa os túmulos e os gavetões dos IML. É palpável. Só nos resta a História, com suas lições de ressurreição. Só nos restam os livros que não foram queimados, os olhos que não foram arrancados, as mentes que não foram apagadas. Só nos restam o trabalho e a resistência de quem carrega nas costas a tarefa de repetir a lição. Talvez, haja num futuro não muito distante um obituário menos cruel e mais justo, e ensinemos o nome dos verdadeiros mortos a fim de que assim permaneçam.

28/10/18, 22h56min

domingo, 21 de outubro de 2018

JUÍZO

(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar informações sobre o artista)

As almas estão gordas, obesas,
mórbidas com seus 380kg,
prostradas nas bancadas pentecostais.
O banquete pago a dízimos
dizima fígados, entope as artérias,
ulcera os estômagos das almas,
que cagam dezessete vezes por dia
não pelo reto, obstruído de medo,
mas na mais imunda, abjeta e vociferante
coprolalia.

No céu — posta a imobilidade, lá chegam caindo —
dessas almonas brancas, espessas, celulíticas,
há um Deus ocre ainda mais gordo e suíno,
exsudando adiposidades neoliberais,
meritocratizando em sentenças:
“merecei!, tomai e comei, pois, da minha carne”.
No inferno, estão os outros; ele, não.
Não há diabo cá.
O inferno é feito de diferenças,
cada alma com sua exclusividade:
almas rosa, vermelhas, marrons e negras,
meias-almas,
almas secas, divergentes.
Todas refugiadas.
De cá, esperam por um juízo,
ainda que supremo, ainda que mundano,
ainda que final,
um juízo que desnivele os baixios desse novo céu
que se abriu nas profundezas
e que tudo traga como um vórtice,
na ferocidade do bem dos novos homens.

21/10/18

PESTE NEGRA

 (Guarda-chuva que foi confundido com um fuzil pela PM do RJ. Clique aqui para ler a notícia)

(Este poema é por Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, assassinado pelo Estado por ser negro)

A pele ictíica
A têmpora esponjosa
Sob a pele hematômica
Fibras imóveis permanentemente
Sujos a roupa, a carne, a calçada
O nome e a estatística
Grão de morte anônimo
No monturo da favela

Fora filho, pai, irmão
Só não fora gente
Elemento fora da tabela
Partícula substancial do povo
O oposto da utopia meritocrática
O incômodo trágico do liberalista
O cálculo renal da diurese urbana

Súbito
Encontrou a bala perdida
No diálogo entre o Estado e o povo
Alimentou, banguela, a cárie do Leviatã
E o telepronto vespertino
Acumulou circunstantes
Favoreceu discursos
Virou argumento de sargento
Em péssimo português técnico-instrumental

Fugira da escola
Que não o quis
Aprisionou-o a palavra
Óbito
Virou discurso jornalístico

Deixou gritos, silêncios e sirenes
Filhos reparidos em aborto reverso
Direto na barriga de Jonas travestido de baleia
Lá dentro, encontrou Nínive
Sodoma e Gomorra
E, no subdiluviano mundo
Jazeu morto
Mazela morta
Porém viva graxa preta
Nas engrenagens dolentes do intestino urbano

18/10/18