Número de sílabas (desde 11/2008)

counter

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

O PROBLEMA DO CORAÇÃO É QUE ELE BATE

Jaseon deCaires Taylor - The Garden of Hope
(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

Desacostumado.
Pedaços de cores
reclamam olhos,
e onde estão?
— invisíveis no tempo.
O cheiro da terra, das roupas, do sol!
Há uma guia,
um cordame em que a memória se desondeia.
Um rio.
As águas batem cada vez mais forte,
e as cores vão se desvelando em punhais de luzes:
uma espiral cadente feita de lâminas brilhantes,
um vórtice aniquilador
do tempo presente.

Enfim, deságuo, e o mar é enorme,
e as ondas, gentis.
Estou sozinho, e tudo é horizonte.

Escrevo histórias
de peixes e abismos,
deito tudo no leito
e descanso.

E eu sei que é unicamente meu
o eu que ali adormeço.

22/02/23

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

QUARTO MINGUANTE


Não espero que me adormeça
— há aqui já noites suficientes.
Velo eu mesmo o cadáver do sonho,
fantasma de si mesmo, que hoje assombro.

Dentro das luzes, a mística persiste,
e me cego de excessos
até que me desapareça de vez
a carne da memória dele
no mundilhão de novidades.

O sono vem, ceifa o que resta,
e, todas as noites, vou desaprendendo a dormir.
Sou no mar o Sol que se pôs
antes da primeira aurora,
antes da Serpente,
antes de Deus.
Sou longe,
Mas estou onde sou.

Guardo apenas a distância,
que aprendi que sou eu.
A noite, esta, olha o esquife ao meu lado
e me diz que não há mais sonhos,
mas que o pesadelo acabou.

08/02/23

domingo, 5 de fevereiro de 2023

SOB O CÉU

(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem)

Então vamos dizer
que a noite só é noite
porque há as estrelas
e a lua, e as almas, e a insônia?
Mas,
não é a noite mais
o modo como se desnudam
a pele sob a roupa
e a carne sob a pele,
e a alma sob a carne
ante a liberdade ou o inferno
de se estar só?
A noite é um útero
que vestimos para dormir
antes e depois de nascer
compulsoriamente.

05/02/23

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

CANTOCHÃO

(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar o endereço de origem.)

   Deitou o copo na mesa, levemente. Reconheceu, no xadrez da infância, a concessão da derrota que lhe ensinaram no internato: “tombe-se o rei!”. A mesa do boteco servia-lhe perfeitamente de tabuleiro: bispos hereges, torres de alvenaria caiada e muitos, muitos peões cascabulhados pelas longas partidas da vida. Havia ali também muitas rainhas, todas de coroas preteridas. O baralho da mesa ao lado lhe despertou as copas que tão bem conhecia. Também, algumas de paus e de espadas de sua meninice nos terreiros. Mas, de ouros, nunca! Nenhuma! Nem ela!
   — Mais uma aqui, por favor.
   Já passara do ponto do crédito havia muito. Da pena, também. Virara um “costumeiro”, um item ornamental, um identificador do Santa Edwiges, o bar de Seu Xavier. Sem ele, a mesa do choro não tinha para quem puxar o Odeon nem a Escadaria. Ele fluía com a tarde, ronqueava com a voz gostosa seus salves, sempre carinhosos, às figurinhas ali também desgastadas pelo tempo: Martins, o do violão sempre prestes, o bêbado Tarcísio, coro sempre certo à dor de cotovelo das dez, a cambista Heloísa, que sempre o esperava chegar para encerrar atrasada as pules, e o garçom Liberato, que aprendera a cuidar da dignidade daquele mistério. Parecia ser a licença que se dava ao Santa para ser um bar: um alvará, uma bênção. Até mesmo a clientela encorpava depois de sua chegada. A sinuca, inclusive, só ficava séria depois que ele cumprimentava os jogadores, que passavam a casar as apostas na mão da Heloísa. Era a alma do lugar, uma essência que justificava frequentarem-no os bambas e os febris, as memórias que tomavam zinebra no balcão e as novidades que gargarejavam cervejinhas na calçada de anedotas. Sentava-se à esquerda da porta, ali pelas seis, após a permissão do angelus do rádio do Xavier.
   — Aqui, Seu Cordeiro. O Seu Xavier perguntou se vai pagar.
   — Diga a ele o de sempre: quem manda é o dia.
   — E o dia foi bom?
   — Me trouxe até aqui. Como sempre.
   — Vai de canja hoje?
   — Deus lhe pague, Liberato.
   — Ô Seu Xavier, mande uma canjinha aqui pro Seu Cordeiro, que ele precisa.
   O violão chorou um sambinha, chegou um pandeiro da mesa dos novatos, Seu Xavier sacou o cavaquinho e o rendeu ao grupo, pedindo “manda uma do Paulinho, gente!”. A música ali era sempre boa. Arrumaram Desilusão, e o peito de Seu Cordeiro batucou atrás, meio surdo. Parecia adoçar a derrota no sangue a cada bombada, sincopando ali o regional improvisado.
   Chegou a canja com um pão do dia. O primeiro de seu dia. Seu Cordeiro parecia um griô, na sua elegância imane e inata de preto-velho. Cruzava as pernas frágeis para fora da mesa, sentado de lado na cadeira, recostado à parede, que guardava, com a sua mancha de suor e poeira, o seu lugar em sua ausência.
   — Os meninos querem que o senhor cante. A rapaziada nova.
   — Deixe o santo baixar, Liberato. Ainda não cheguei.
   — Deixe o dia lá fora, meu camarada. Aqui dentro, é sempre noite. Dona Marlene perguntou se está boa a canja.
   — Melhor que a vida, meu amigo. Entregue a ela uma lembrancinha, faz favor?
   Deu a Liberato um pacotinho de papel-bíblia, uma página arrancada de um catecismo velhíssimo.
   — Diga a ela que achei.
   Aquilo não era uma novidade, exceto pelo último pedido. Sempre levava babilaques, coisinhas, presentinhos para Seu Xavier e sua esposa, Dona Marlene. Porém, o segredo impresso no “achei” ativou a experiência malandra de garçom acumulada por Liberato em décadas de torpedinhos e leva-e-traz entre as mesas.
   — O que é isso, Seu Cordeiro?
   — É um pedido dela. Uma encomenda pessoal.
   — Pessoal? E se o Seu Xavier quiser saber o que é, digo o quê?
   — Que é de antes dele. Que não se preocupe não, que nenhum mal foi feito. E que este negro aqui só lhe guarda amizade e gratidão. E que minha vigília e minha obrigação finalmente acabaram.
   Era coisa demais para o velho garçom. Ainda tocavam o “danço eu, dança você”, e Liberato intuiu. Pensou em devolver, mas adivinhou a proporção do momento no olhar de Seu Cordeiro, que nunca vira tão expectante em sua mansidão. Baixou a cabeça, penitente. Seu Cordeiro enxugava a última laminha de caldo da tigela com o miolo do pão, que levava à boca como uma hóstia. O sagrado de tudo aquilo que, sem ser dito, reverberava nas paredes do Santa Edwiges convenceu por fim o garçom de levar a cabo aquele rito.
   — O senhor ainda vai voltar? — perguntou.
   — Eu nunca fui a lugar nenhum, meu amigo…
   Apesar de suas roupas e pele estabelecerem o oposto, Liberato entendeu profundamente.
   — Pois adeus, meu velho. Fique com Deus.
   Cruzou o bar convertido, por seus passos, em uma nave, parou de cabeça baixa à frente do balcão, a mão posta em oferenda:
   — Seu Cordeiro mandou pra senhora,
   — O Cordeiro ainda acha que tem de pagar alguma coisa aqui? — sorriu vermelho Seu Xavier. — Tu acha, Marlene?
   Dona Marlene, de pele branca salpicada de sinaizinhos da idade, reconheceu aquela página amarelada de catecismo quase imediatamente, translucidando-se. Disfarçou o tremor e ergueu o olhar para o marido, que não entendeu aquele pedido de perdão. A mesa do choro já tinha engatado Não tenho lágrimas, e o bar ficara frio de repente. Lá fora, uma chuva fina lavava um corpo negro, delicadamente deitado no outro lado da rua, a mão esquerda ao peito, as pernas cruzadas, como se houvesse descido em rodopio de mestre-sala. Um grito seguiu-se a outros, precipitando todos ao cruzamento esvaziado de trânsito, fremindo no ar os ai-meu-Deus de suspensão.
   Seu Xavier nunca entendeu a explicação da esposa, que sobreveio e sobreviria até o fim sem lágrimas, sem medo e sem culpa, ainda que purpurecida de saudade:
   — Foi antes, quando eu ainda era mocinha, no internato. Padre Honório que me deu, e eu tinha perdido. Seu Cordeiro achou não sei como… Não sei como.
   O pequeno terço cor de rosa, com ave-marias peroladas e crucifixo de osso, fazia ainda menos sentido naquela fatalidade.
   No dedo anelar esquerdo do morto, uma antes nunca percebida aliança de finíssimos acabamentos, filigranada de ouro, sepultava ali tudo: a vida, o samba, o bar, a morte. Sobranceava na neblina um vento que pareceu a Liberato, naquele momento, um cantochão assobiado.
   — Adeus, meu velho — repetiu.

01/02/23