Número de sílabas (desde 11/2008)

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quarta-feira, 27 de maio de 2020

SOPA DE LETRINHAS

    Não é isso que quero escrever. Quero escrever que sinto saudades. Faz falta andar de bicicleta de madrugada. Faz falta escrever de madrugada à luz de velas como se isso fizesse o texto melhor. Sinto falta dessa ingenuidade… Conversar horas no telefone com minha amiga N., que não quer mais falar comigo. Com razão. Nunca fui um bom amigo nem a ela nem a F., W., O. etc. Sinto saudades deles todos como sinto de mim mesmo, que fui quem eu mais traí. Não que isso seja de modo algum uma reviravolta surpreendente ou uma obra de forças ocultas a que chamam de acaso, não é nada disso. São favas contadas. Eu só esperava, do fundo do coração, que tivesse se desenrolado diferente, com talvez, digamos, um atraso nas contas do carma ou um adiamento, quem sabe? Eu esperava que eu mesmo só aparecesse para estragar tudo no final da história, numa risada nervosa ou num ataque de fúria, deixando transparecer finalmente que eu não sou, não era, nunca fui direito quem lhes foi amigo, professor, amante, familiar. Eu, eu mesmo, não me sinto nada disso. Talvez, escritor. O caso é que eu sinto enormes saudades… Sinto falta agora, depois de ter visto filmes e ouvido tantas músicas, de conversar com meu amigo W., que já morreu, sobre esse eu que sentiu o que gostaria de compartilhar, mas está sozinho. Como sempre desejara estar. Sinto falta de mostrar meus textos a N., a primeira (a única, na verdade) a me esfregar na cara que eu era um merdinha de um parnasiano. Nunca mudei completamente, mas conversávamos sobre isso, e era tão bom… Perdeu-se. Sinto falta de uma certa injustiça, que era justamente a de me saber desconhecido dos que me amavam. Minha mãe, T., nunca me leu. Tampouco, meu pai, L. Hoje, com tantos textos tornados públicos (menos equivocado que “publicados”), sei que pouquíssimos me leem, e isso não me dói, ainda que haja no fundo um desejo de a ou b os lerem, mas não me dói sobremaneira que não o façam. Porém, sinto falta de sentir falta de ser lido. Existia alguma coisa de romântico naquilo que eu tinha e, principalmente, no que não tinha. Eu me fechava completamente ao mesmo tempo em que desejava ser aberto, mas algo acabava por entrar, contaminando. Com o tempo, essa sílica entranhada na carne emperolou-se numa enorme esfera de cinismo e insipidez que hoje gosto tanto de fazer confundir com literatura. Mas é só isso mesmo. Contudo, sinto saudades de ser uma ostra legítima, aquela que sofria legitimamente uma prenhez forçada de alguma coisa bela na escuridão do fundo do mar. Essa coisa, que eu escrevia, sangrava, silenciava, essa coisa tinha lá sua beleza. Sinto saudades de falar dela… Sinto saudades porque havia um certo encanto na inutilidade daquele martírio, e conversar com C., L., T., R. sobre aquilo me validava enquanto seu amigo. Sinto saudades de me embriagar com eles, ainda que não houvesse ali nenhum pertencimento de minha parte. Era só minha solidão compartilhada no fundo do copo. Mas, como me faz falta… Hoje, não sinto mais vontade de beber nem de sair para beber. Não sinto saudades do blues, que tanto ouvia com I. e com O. Mas sinto saudades de mim com eles. Eu estar com eles era eu. E isso já não existe mais definitivamente. Hoje, eu me contento, infelizmente, com saber de tudo isso. Saber que, se W. estivesse aqui, eu poderia ligar para ele e comentar sobre a descoberta tardia da Lhasa de Sela, via L., amiga nossa em comum, e dizer de todas as maravilhas que a voz dela me refez sentir. Se não tivesse me distanciado de R., de A. ou de M., eu poderia ou estar bebendo debruçado sobre uma crítica de filme ou pedalando numa noite qualquer dessas, rindo das pessoas no meio da rua. Poderia estar jogando vôlei com F., J. e K., poderia estar ouvindo Led Zeppelin com M. Poderia ter, se não houvesse acontecido tanto, de novo a companhia de F. numa de nossas aventuras impossíveis e absurdas de quem não tinha dinheiro e conseguia realizá-las. Saber disso é o que tenho. Isso e as letras, que tomaram o lugar de seus nomes numa sopinha de lembranças de um enfermo crônico de gripes e de crônicas. Padecer ainda é sonhar, e sonhar, bem… Sonhar ainda é interceder com violência contra essa vida besta drummondiana.

27/05/20

sábado, 9 de maio de 2020

O COLECIONADOR


    E se ele fosse desses homens que são definidos pelas posses? Desses, a quem a vida só marcou na coleção de canecas ou nos discos acumulados na estante? Agora, quando tudo parecia estar se pondo a termo, inclusive lá fora, a vida dos outros, inclusive a terra, o ar, os pandas-vermelhos, agora, ele seria desses com gavetas no caixão? Sofreria em vida com a avareza dos mortos, que, não mais tendo outra coisa que não a própria matéria, reconstroem-se no fetiche que outros poderão vir a sentir pela matéria acumulada por eles? A matéria, essa sim guarda os acontecimentos, porque acontecimentos, para serem memória, precisam estar documentados, registrados — “Aqui, esta pedra eu catei no jardim do passadiço que dava na entrada da casa dela, naquela noite de tanto medo e fatalidade, que se converteram em cãs, filhos, barriga e dívidas, inclusive e principalmente comigo mesmo…”. Disso ninguém saberá? Inaceitável! Mas são coisas demais… Tudo parece demais. Andou tendo amnésias do que não poderia esquecer, do antes, do imaterializado, do sem registro. Sua incomunicabilidade não lhe permitia passar adiante essas coisas. Mas essas coisas… essas coisas não se passam adiante, soa até errado, como um contágio, um espargimento de moléstias, ainda que sejam, de fato, em sua maioria, lástimas, lástimas pelo que não teve, pela consciência da impossibilidade de ter, lástima pelas perdas, e foram tantas… O que seria dele sem suas perdas? Havia por certo de mantê-las, mesmo que fossem materializadas em expressões, em silêncios e em inações. Haveriam de ser vistas, todos haveriam de sabê-las, elas não se perderiam no tempo. Lembrou Blade runner, estava chovendo. Onde estariam os pombos naquela chuva? Mas pombos espalham doenças, e lhe vieram de novo as visões de pragas e pandemias. E se escrevesse? E se rabiscasse tudo em alegorias floreadas, acumulasse as brochuras e deixasse, como último bilhete, o desejo de que fosse tudo incinerado junto com seu corpo, tornando-se tudo uma só matéria, esfumaçando a atmosfera em fuligem e pó, que incomodariam, que fariam todos saberem? Mas, de certa forma, a memória das coisas que incomodam tende a só ser recuperada na presença da causa. Ele, como causa, nunca mais seria presente… Tornou-se sem efeito sua divagação. Não havia jeito. Tinha de desfazer-se de tudo. Deletar-se, aniquilar-se. Na inexistência, talvez, na lacuna deixada como uma pergunta — “Ué, cadê?” —, causasse o efeito que tanto temia não causar. Talvez, inexistindo, existisse. Pôs em prática imediatamente o projeto. Etiquetou o que dava, arrolou tudo em listas, que deixou em locais estratégicos. Não faria estardalhaços. Nada de bilhetes, e-mails nem gritos na janela. Haviam de achar tudo, haviam de testemunhar seu desaparecimento em todas as coisas testamentadas, e só. Ao final, aflito e orgulhoso, abandonou-se no sofá. Diante dele, a tevê. Sentiu vontade de assistir à última programação, que era sempre a de costume. Endilemou-se entre ligá-la ou não, já que estava com alguns post-its no monitor. Pensou em como odiava a maneira canalha como a língua inglesa havia feito embaixada em sua vida. Post-it! Seria lembrado como aquele que deixara post-its? Arrefeceu, achou melhor ler alguma coisa na internet ou algum e-book de estimação. Os livros já estavam encaixotados, o celular teria de dar conta. Levantaria, abriria a caixinha original, colocaria de volta o chip e o cartão de memória — dera-lhe tanto trabalho etiquetá-los! —, veria alguma coisa… Não, era enfadonho demais. Olhou em volta, havia papeizinhos por toda parte. Pensou em sair, em fugir, em realizar o desejo do José, o do Drummond. Sorriu. Também não tinha parede nua para se encostar. Quem sabe, uma mulher nua, então? Àquelas horas, mas… não há tempo em que elas não trabalhem. Precisou de ar. Percorreu a sala, chegou à porta, mudou o último post-it de lugar a contragosto — dera-lhe tanto trabalho! —, saiu. Sentiu vontade de comer pão passado com café. Adorava café. Ao lado da padaria, haviam aberto uma papelaria moderninha, com esses post-its coreanos. Quem sabe, não seriam colecionáveis?

08/05/20