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sábado, 9 de maio de 2020

O COLECIONADOR


    E se ele fosse desses homens que são definidos pelas posses? Desses, a quem a vida só marcou na coleção de canecas ou nos discos acumulados na estante? Agora, quando tudo parecia estar se pondo a termo, inclusive lá fora, a vida dos outros, inclusive a terra, o ar, os pandas-vermelhos, agora, ele seria desses com gavetas no caixão? Sofreria em vida com a avareza dos mortos, que, não mais tendo outra coisa que não a própria matéria, reconstroem-se no fetiche que outros poderão vir a sentir pela matéria acumulada por eles? A matéria, essa sim guarda os acontecimentos, porque acontecimentos, para serem memória, precisam estar documentados, registrados — “Aqui, esta pedra eu catei no jardim do passadiço que dava na entrada da casa dela, naquela noite de tanto medo e fatalidade, que se converteram em cãs, filhos, barriga e dívidas, inclusive e principalmente comigo mesmo…”. Disso ninguém saberá? Inaceitável! Mas são coisas demais… Tudo parece demais. Andou tendo amnésias do que não poderia esquecer, do antes, do imaterializado, do sem registro. Sua incomunicabilidade não lhe permitia passar adiante essas coisas. Mas essas coisas… essas coisas não se passam adiante, soa até errado, como um contágio, um espargimento de moléstias, ainda que sejam, de fato, em sua maioria, lástimas, lástimas pelo que não teve, pela consciência da impossibilidade de ter, lástima pelas perdas, e foram tantas… O que seria dele sem suas perdas? Havia por certo de mantê-las, mesmo que fossem materializadas em expressões, em silêncios e em inações. Haveriam de ser vistas, todos haveriam de sabê-las, elas não se perderiam no tempo. Lembrou Blade runner, estava chovendo. Onde estariam os pombos naquela chuva? Mas pombos espalham doenças, e lhe vieram de novo as visões de pragas e pandemias. E se escrevesse? E se rabiscasse tudo em alegorias floreadas, acumulasse as brochuras e deixasse, como último bilhete, o desejo de que fosse tudo incinerado junto com seu corpo, tornando-se tudo uma só matéria, esfumaçando a atmosfera em fuligem e pó, que incomodariam, que fariam todos saberem? Mas, de certa forma, a memória das coisas que incomodam tende a só ser recuperada na presença da causa. Ele, como causa, nunca mais seria presente… Tornou-se sem efeito sua divagação. Não havia jeito. Tinha de desfazer-se de tudo. Deletar-se, aniquilar-se. Na inexistência, talvez, na lacuna deixada como uma pergunta — “Ué, cadê?” —, causasse o efeito que tanto temia não causar. Talvez, inexistindo, existisse. Pôs em prática imediatamente o projeto. Etiquetou o que dava, arrolou tudo em listas, que deixou em locais estratégicos. Não faria estardalhaços. Nada de bilhetes, e-mails nem gritos na janela. Haviam de achar tudo, haviam de testemunhar seu desaparecimento em todas as coisas testamentadas, e só. Ao final, aflito e orgulhoso, abandonou-se no sofá. Diante dele, a tevê. Sentiu vontade de assistir à última programação, que era sempre a de costume. Endilemou-se entre ligá-la ou não, já que estava com alguns post-its no monitor. Pensou em como odiava a maneira canalha como a língua inglesa havia feito embaixada em sua vida. Post-it! Seria lembrado como aquele que deixara post-its? Arrefeceu, achou melhor ler alguma coisa na internet ou algum e-book de estimação. Os livros já estavam encaixotados, o celular teria de dar conta. Levantaria, abriria a caixinha original, colocaria de volta o chip e o cartão de memória — dera-lhe tanto trabalho etiquetá-los! —, veria alguma coisa… Não, era enfadonho demais. Olhou em volta, havia papeizinhos por toda parte. Pensou em sair, em fugir, em realizar o desejo do José, o do Drummond. Sorriu. Também não tinha parede nua para se encostar. Quem sabe, uma mulher nua, então? Àquelas horas, mas… não há tempo em que elas não trabalhem. Precisou de ar. Percorreu a sala, chegou à porta, mudou o último post-it de lugar a contragosto — dera-lhe tanto trabalho! —, saiu. Sentiu vontade de comer pão passado com café. Adorava café. Ao lado da padaria, haviam aberto uma papelaria moderninha, com esses post-its coreanos. Quem sabe, não seriam colecionáveis?

08/05/20

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