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quarta-feira, 27 de maio de 2020

SOPA DE LETRINHAS

    Não é isso que quero escrever. Quero escrever que sinto saudades. Faz falta andar de bicicleta de madrugada. Faz falta escrever de madrugada à luz de velas como se isso fizesse o texto melhor. Sinto falta dessa ingenuidade… Conversar horas no telefone com minha amiga N., que não quer mais falar comigo. Com razão. Nunca fui um bom amigo nem a ela nem a F., W., O. etc. Sinto saudades deles todos como sinto de mim mesmo, que fui quem eu mais traí. Não que isso seja de modo algum uma reviravolta surpreendente ou uma obra de forças ocultas a que chamam de acaso, não é nada disso. São favas contadas. Eu só esperava, do fundo do coração, que tivesse se desenrolado diferente, com talvez, digamos, um atraso nas contas do carma ou um adiamento, quem sabe? Eu esperava que eu mesmo só aparecesse para estragar tudo no final da história, numa risada nervosa ou num ataque de fúria, deixando transparecer finalmente que eu não sou, não era, nunca fui direito quem lhes foi amigo, professor, amante, familiar. Eu, eu mesmo, não me sinto nada disso. Talvez, escritor. O caso é que eu sinto enormes saudades… Sinto falta agora, depois de ter visto filmes e ouvido tantas músicas, de conversar com meu amigo W., que já morreu, sobre esse eu que sentiu o que gostaria de compartilhar, mas está sozinho. Como sempre desejara estar. Sinto falta de mostrar meus textos a N., a primeira (a única, na verdade) a me esfregar na cara que eu era um merdinha de um parnasiano. Nunca mudei completamente, mas conversávamos sobre isso, e era tão bom… Perdeu-se. Sinto falta de uma certa injustiça, que era justamente a de me saber desconhecido dos que me amavam. Minha mãe, T., nunca me leu. Tampouco, meu pai, L. Hoje, com tantos textos tornados públicos (menos equivocado que “publicados”), sei que pouquíssimos me leem, e isso não me dói, ainda que haja no fundo um desejo de a ou b os lerem, mas não me dói sobremaneira que não o façam. Porém, sinto falta de sentir falta de ser lido. Existia alguma coisa de romântico naquilo que eu tinha e, principalmente, no que não tinha. Eu me fechava completamente ao mesmo tempo em que desejava ser aberto, mas algo acabava por entrar, contaminando. Com o tempo, essa sílica entranhada na carne emperolou-se numa enorme esfera de cinismo e insipidez que hoje gosto tanto de fazer confundir com literatura. Mas é só isso mesmo. Contudo, sinto saudades de ser uma ostra legítima, aquela que sofria legitimamente uma prenhez forçada de alguma coisa bela na escuridão do fundo do mar. Essa coisa, que eu escrevia, sangrava, silenciava, essa coisa tinha lá sua beleza. Sinto saudades de falar dela… Sinto saudades porque havia um certo encanto na inutilidade daquele martírio, e conversar com C., L., T., R. sobre aquilo me validava enquanto seu amigo. Sinto saudades de me embriagar com eles, ainda que não houvesse ali nenhum pertencimento de minha parte. Era só minha solidão compartilhada no fundo do copo. Mas, como me faz falta… Hoje, não sinto mais vontade de beber nem de sair para beber. Não sinto saudades do blues, que tanto ouvia com I. e com O. Mas sinto saudades de mim com eles. Eu estar com eles era eu. E isso já não existe mais definitivamente. Hoje, eu me contento, infelizmente, com saber de tudo isso. Saber que, se W. estivesse aqui, eu poderia ligar para ele e comentar sobre a descoberta tardia da Lhasa de Sela, via L., amiga nossa em comum, e dizer de todas as maravilhas que a voz dela me refez sentir. Se não tivesse me distanciado de R., de A. ou de M., eu poderia ou estar bebendo debruçado sobre uma crítica de filme ou pedalando numa noite qualquer dessas, rindo das pessoas no meio da rua. Poderia estar jogando vôlei com F., J. e K., poderia estar ouvindo Led Zeppelin com M. Poderia ter, se não houvesse acontecido tanto, de novo a companhia de F. numa de nossas aventuras impossíveis e absurdas de quem não tinha dinheiro e conseguia realizá-las. Saber disso é o que tenho. Isso e as letras, que tomaram o lugar de seus nomes numa sopinha de lembranças de um enfermo crônico de gripes e de crônicas. Padecer ainda é sonhar, e sonhar, bem… Sonhar ainda é interceder com violência contra essa vida besta drummondiana.

27/05/20

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